Por Raul Pont, na edição online do Le Monde Diplomatique Brasil
A figura da emenda parlamentar do Orçamento da União é recente como prática congressual. Historicamente, os parlamentares encaminhavam ou buscavam influenciar obras e serviços nos Ministérios e junto ao governo. Constituía-se num clientelismo restrito, uma influência exercida para “atender reivindicações” regionais e locais. Já possuía o sentido clássico do deputado ou do senador “despachante”, que consegue as “obras” que a população precisa em troca de apoio ao governo.
Nas duas últimas décadas, essa prática cresceu, ultrapassou o privilégio de ser da situação, e se generalizou para todos os deputados e senadores. Virou um “direito” do parlamentar e com uma cota anual crescente, que hoje atinge em torno de R$ 10 milhões.
É mais uma prática funesta, clientelística, deseducadora da política democrática e republicana e, cada vez mais, estimuladora da corrupção.
É claro que não é a única mazela do Congresso Nacional. O financiamento privado via pessoas jurídicas, o voto nominal, as coligações proporcionais, a ausência de proporcionalidade idêntica para todos os Estados na representação da cidadania são problemas talvez maiores. Mas todos contribuem para o sistema político-eleitoral anacrônico, antidemocrático e subordinado ao poder econômico do qual somos vítimas.
A emenda parlamentar é uma agressão ao artigo 37 da Constituição Federal, que diz que a administração pública obedecerá aos princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade e eficiência no gasto público.
Apesar disso, o uso dessa instituição brasileira vem sendo explicado como necessidade da “governabilidade” congressual. Os executivos eleitos não conseguem base parlamentar via sistema eleitoral montado e organizado para gerar essa situação e aí apelam para o mecanismo da “troca de favores” para conseguir maioria ou neutralizar a oposição.
A prática consolidou-se de tal forma que, recentemente (27/08/2013), os deputados federais aprovaram um Projeto de Emenda Constitucional para tornar as emendas parlamentares compulsórias ao Poder Executivo. A razão disso é que muitas vezes seus projetos são frustrados pela ineficiência, atrasos, pouca simpatia ou constrangimento dos Ministérios e órgãos por onde se viabilizam as propostas.
A mesma Câmara Federal que não vota a reforma eleitoral, o fim da guerra fiscal, o imposto sobre grandes fortunas, a reforma tributária progressiva, que derrubou a contribuição sobre as operações financeiras para a saúde, com maior facilidade reuniu 376 votos favoráveis para aprovar a PEC das emendas parlamentares.
Na contramão dos movimentos sociais de junho e julho, que não se veem representados nesse Congresso, todos os partidos indicaram o voto sim de suas bancadas nesse ataque ao artigo 37 da Constituição Federal, nesse vergonhoso voto em benefício próprio dos parlamentares. A bancada do PT foi a exceção ao liberar o voto de seus deputados, mas, com isso, igualou-se aos demais, pois não determinou o voto contrário, ferindo seu próprio Estatuto e Código de Ética. Os 50 votos contrários, faça-se justiça, foram majoritariamente petistas.
A emenda parlamentar não é apenas absurda como forma de estabelecer o gasto público. Sem eficiência, nem planejamento, em torno de R$ 6 bilhões do Orçamento Geral da União são picotados, pulverizados, sem nenhuma avaliação de prioridades regionais e setoriais ou ouvindo a população de forma organizada e deliberativa.
Essa prática também distorce a disputa democrática nas eleições, com os adversários e dentro dos próprios partidos. Ao longo do mandato, o parlamentar pode manipular uns R$ 40 milhões e estabelece uma rede de clientelismo com o recurso público comprometendo prefeitos, vereadores, lideranças comunitárias e sindicais, com o “favor” da emenda pessoalmente conseguida. Nessas condições, qual a chance de uma liderança nova almejar uma eleição? Além dos milhões em clientelismo, soma-se, crescentemente, o financiamento empresarial das campanhas. O resultado disso é a estarrecedora estatística que prova que mais de 70% dos eleitos na Câmara Federal, coincidem com as 513 campanhas mais caras do país.
A emenda parlamentar é a antessala da corrupção. Ali começam os negócios com as empreiteiras, com a prefeitura e com vereadores que serão beneficiados. A emenda normalmente já vem acompanhada do projeto da obra e/ou serviço e de quem poderá fazê-la. Em muitos casos, são as empreiteiras que “sugerem” obras e respectivos projetos.
É claro que esse não é o único caminho para a governabilidade. É possível , mesmo em minoria parlamentar, governar buscando a legitimação nos mecanismos da democracia participativa, estimulando a participação popular através das formas orgânicas já existentes.
No sistema presidencial brasileiro é o Executivo que elabora e executa o Orçamento. Ele tem mecanismos legais no artigo 1º da Constituição Federal, nas Constituições Estaduais e nas Leis Orgânicas Municipais, bem como na própria Lei de Responsabilidade Fiscal, que apontam para o exercício direto da cidadania e da consulta e deliberação o mais ampla e regional possível do gasto público. Nada impede que o Executivo Federal tenha iniciativas desse tipo mobilizando os movimentos sociais e as suas formas orgânicas já existentes na elaboração do orçamento público.
Governamos Porto Alegre por 16 anos e muitas outras cidades gaúchas, e mesmo o Estado, sem maioria nos parlamentos respectivos. Isso não nos impediu de fazer bons e reconhecidos governos com profunda participação popular via Orçamento Participativo e empoderamento dos Conselhos Estaduais e Municipais, onde alicerçávamos nossa governabilidade. São experiências concretas, vividas, e que estamos vivendo, que provam que é possível buscar outra legitimidade, outra governabilidade que não seja a troca de favores e o processo corruptor de práticas como as “emendas parlamentares” praticadas no país.
Por fim, se a Câmara Federal quer mesmo discutir caráter impositivo no Orçamento, que o faça pelos canais corretos do debate democrático e constitucional. Vamos não só discutir e aprovar a reforma político-eleitoral, mas também o próprio regime presidencialista ou o regime parlamentarista, já que os deputados estão tão dispostos a deliberar e executar o Orçamento público.
* Raul Pont é deputado estadual PT/RS e membro da Coordenação Nacional da DS.
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