O primeiro turno demonstrou que as forças democráticas e populares estão bem posicionadas para conquistar a maioria dos eleitores.
1.
O fato mais decisivo do primeiro turno das eleições de 2022 foi a quase maioria alcançada pela chapa Lula-Alckmin no primeiro turno. É um fato histórico: nunca antes uma candidatura de esquerda alcançou 48, 2 % em eleições presidenciais no primeiro turno. Representa diante das eleições de 2018 um crescimento em todas as regiões, faixas de renda, de cor, de escolaridade.
Lula quase dobrou a votação obtida no perimo turno de 2018 pela campanha de Fernando Haddad, expressão da resistência nas condições mais adversas. O voto em Lula cresceu nas regiões sul, sudeste, norte, centro-oeste e atingiu a sua máxima força no nordeste. Não é um fenômeno apenas eleitoral nem mesmo apenas concentrado na liderança de Lula. Há uma vasta rede de lideranças e movimentos sociais organizados que sustentam esta votação. Houve um crescimento importante das bancadas democráticas e populares na Câmara Federal, no Senado, nas Assembleias Legislativas, em governos estaduais.
Trata-se de uma magnífica e histórica manifestação da consciência popular, das classes trabalhadoras mais pauperizadas, que não aceitaram vender o seu voto. É esta maioria das classes trabalhadoras, dos negros, das mulheres, dos nordestinos, dos povos originários e dos que lutam pelos direitos LGBTI+, que está oferecendo a resistência fundamental, nas condições mais adversas, ao avanço do fascismo no Brasil.
2.
Há decerto um importante e decisivo campo possível de expansão da votação democrática e popular para alcançar uma vitória expressiva neste segundo turno.
Foi decisiva no primeiro turno a unidade do campo democrático e popular e a experiência das federações, sendo agora chave a busca de apoio de todas as forças anti-fascistas.
Os resultados das eleições de 2022 expressam bem a vitória da unidade das forças democráticas e populares, em seu grau mais expressivo desde 2002. Esta nova consciência da unidade veio crescendo nas frentes de movimentos sociais (a construção da Frente Brasil Popular, da Frente Povo sem Medo e a unidade delas, a unidade das centrais sindicais e agora a Formação da Frente pela Vida em defesa do SUS), alcançou uma projeção partidária mais orgânica com a formação das duas federações e se consolidou com a decisão amplamente majoritária no congresso do PSOL e apoiar Lula no primeiro turno, defendendo um programa anti-neoliberal.
O PT e o PSOL saíram fortalecidos, evidenciando que a unidade do campo democrático e popular não conspira contra a identidade mas potencializa o sentido pluralista das tradições. Esta unidade permitiu atrair o PSB para a centro-esquerda, o PV, a Rede, a liderança importante de Marina Silva. Como contraponto, a atitude sectária de Ciro Gomes levou o PDT ao seu maior isolamento e derrota histórica.
A unidade com neoliberais no primeiro turno não parece ter tido grande peso na votação da Lula (mesmo em São Paulo, onde mais pontuou a importância da unidade com o PSOL, com a magnífica votação obtida por Guilherme Boulos). O apoio de lideranças históricas do PSDB tardou e não parece ter tido grande influência eleitoral. Mas certamente será muito importante neste segundo turno dialogar e negociar o apoio daqueles setores neoliberais que mantêm algum grau de resistência democrática à dinâmica fascistizante de Bolsonaro ou precisam do apoio das forças democráticas e populares em disputas regionais.
3.
A questão decisiva continua sendo a de formar uma maioria popular, sendo fundamental apresentar e concretizar propostas que respondam às necessidades mais sentidas do povo brasileiro.
Como uma força política que apresenta as melhores condições para formar uma maioria eleitoral, a campanha Lula-Alckmin deveria apresentar propostas e compromissos concretos que se tornem pontos de referência de formação e consolidação da consciência das classes trabalhadoras e dos setores populares. Eles devem se apoiar na memória vitoriosa dos governos Lula, mas não fazer do passado o centro: é o futuro que está em disputa. É a partir delas que se podem fazer os melhores contrapontos com toda a tragédia do governo de Jair Bolsonaro.
Será também importante desde já construir antídotos – peças publicitárias disponíveis desde já para as redes – às fake news conservadoras da campanha Bolsonaro, já conhecidas como a acusação de corrupção, de fechamento de igrejas, de sexualização das crianças e aquelas típicas do anti-comunismo mais reacionário. Com a experiência já vivida pelo povo brasileiro, será possível atacar de forma frontal e decisiva todo o rol de crimes cometidos por Jair Bolsonaro. É Jair Bolsonaro quem deve ficar na defensiva e reiteradamente cobrado por seus crimes.
4.
As eleições de 2022 mostraram que o caminho é combinar e não contrapor ou separar as lutas das classes trabalhadoras e as lutas feminista, anti-racista e dos povos originários, pelos direitos LGBTI+.
Certamente as bancadas eleitas pelo campo democrático e popular expressam em sua diversidade uma nova e poderosa unidade do povo brasileiro em sua luta pela superação da exploração e da opressão. Cai por terra a política de opor a reivindicação das identidades oprimidas e as lutas classistas.
A campanha de Lula foi inteiramente marcada por falas críticas às políticas neoliberais e em defesa dos direitos dos trabalhadores, com a importante exceção do tema da independência do Banco Central. O aumento das bancadas dos Sem-Terra e da agricultura familiar, das pessoas trans, de lideranças dos povos originários, de mulheres negras expressam bem esta conquista, que vem no bojo da construção das frentes unitárias.
5.
O movimento bolsonarista passou da condição de uma candidatura competitiva para a condição de uma candidatura que disputa com chances de vitória as eleições presidenciais, não devendo ser de modo algum desprezado a sua força organizada no Estado e na sociedade, bem como a sua capacidade política de operar grandes movimentos centralizados de voto.
Desde meados de 2021, quando chegou a revelar o início de uma crise de governo que lhe poderia ser fatal, o movimento bolsonarista veio recompondo a sua base orgânica e a sua capacidade de disputar os rumos da sociedade brasileira. A aliança com a direita fisiológica na Câmara Federal, renovada e estruturada com o escandaloso “orçamento secreto”, lhe garantiu o bloqueio do processo de impeachment e uma reorganização partidária centrada no PL.
Após muitos conflitos na cúpula militar, conseguiu estabilizar um apoio majoritário nas Forças Armadas, trazendo inclusive um general do Exército para ser seu vice. Consolidou a sua base majoritária e organizada nos meios evangélicos, o que lhe dá raiz de disputa em meios populares, retomando agressivamente uma agenda fundamentalista no plano dos costumes.
Conseguiu um certo grau de controle inflacionário, através do controle do dinheiro público do preço dos combustíveis, e relançou um vultoso programa eleitoreiro de auxílios de renda que, se insuficiente para fazer frente à montante do desemprego e da fome, lhe dá um discurso de disputa. Manteve fiel, em grande medida a base do agronegócio. No plano internacional, além de procurar interlocução com o governo Joe Biden e Vladimir Putin, aprofundou os vínculos com a rede organizada da extrema direita. E, enfim, continuou com uma poderosa rede de comunicação na internet, ao mesmo tempo centralizada e capilarizada.
É este movimento orgânico, que expressa hoje a política das classes dominantes brasileiras, que veio se deslocando desde as eleições de 2018 para o bolsonarismo, apesar de suas dissensões, que estamos enfrentando neste dramático segundo turno. A sua ascensão eleitoral expressa este acúmulo político: de cerca de um quarto de votos em meados de 2021, para cerca de um terço dos votos neste cenário de disputa do primeiro turno (fechando os espaços para uma outra alternativa neoliberal de disputa) e, agora, para mais de 40 % dos votos. É uma força política que pretende neutralizar a sua rejeição majoritária pelo povo brasileiro, que se manteve sempre muito alta, com a exacerbação do antipetismo através de toda a rede de fake news organicamente construída.
6.
É absolutamente necessário garantir através de um esforço heroico de militância e unidade impedir que Bolsonaro vença as eleições, o que lhe abriria condições institucionais para construir um regime fascista no Brasil.
A luta de classes é feita de longos períodos de acúmulo e de momentos decisivos, nos quais se definem o curso da história. Estamos vivendo um destes momentos decisivos neste mês que nos faz lembrar de outros outubros. As eleições de 2022 já se realizam, apesar da neutralização da capacidade de Bolsonaro articular um golpe de Estado, em uma situação escandalosamente anti-democrática, com Bolsonaro já controlando, de forma anti-republicana, o governo federal, a Câmara Federal, a Polícia Federal, a Procuradoria Geral da República, a CGU e exercendo uma pressão permanente sobre o STF.
Uma segunda vitória eleitoral, consolidaria o seu domínio sobre o Congresso Nacional, permitindo-lhe inclusive novas condições de operar contra a mínima independência do STF, sempre com o respaldo das Forças Armadas, operando por dentro a passagem para um regime de tipo fascista. O principal objetivo de um regime fascista seria promover a destruição da força política democrática e popular, através do exercício miliciano, policial e militar da violência.
7.
A possível vitória de Lula neste segundo turno será muito provável se as forças democráticas e populares exercerem toda a sua inteligência, unidade e energia socialista e democrática.
Há situações políticas que, diante da correlação de forças acumuladas e das possibilidades possíveis de disputa, o horizonte máximo é de uma resistência organizada para criar mais adiante capacidade de disputar com chances de vitória o futuro. Mesmo na resistência mais aguda é importante manter a esperança de uma vitória que a alimenta.
Este não é decididamente o quadro atual: com esta campanha vitoriosa de primeiro turno, reconstruímos nacionalmente a esperança do povo brasileiro. Ela já foi capaz de se revelar maior que o bolsonarismo. Estamos na ofensiva. O desafio é promover a maior derrota política eleitoral possível de Jair Bolsonaro, que organizará um período de reconstrução da democracia brasileira e de cerco e isolamento político e social do bolsonarismo.
Esta capacidade ofensiva se revela em primeiro lugar em nossa capacidade de agendar o debate neste segundo turno, com uma campanha anunciadora do governo que faremos, atendendo às mais urgentes necessidades econômicas e políticas e, ao mesmo tempo, expondo todo o rol de crimes do bolsonarismo.
Os socialistas democráticos devem agora colocar todo o seu corpo militante, coletivo e individual, neste grande desafio histórico.
Juarez Guimarães é professor de ciência política na UFMG. Autor, entre outros livros, de Democracia e marxismo: Crítica à razão liberal (Xamã).
Via A terra é redonda
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