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Confecom: Nunca antes neste país…

Nunca antes neste país, cerca de 30 mil pessoas discutiram, ao longo de três meses, o tema Comunicações ou Mídia. Nunca antes neste país, cerca de mil pessoas ligadas a movimentos sociais, entidades sindicais e, inclusive, associações empresariais debateram, junto com o governo, políticas públicas para as Comunicações.

Marcos Dantas *

Tema até hoje restrito aos grupos empresariais interessados, aos profissionais do ramo ou a círculos acadêmicos especializados, os problemas, as grandes questões, os rumos das Comunicações brasileiras começam a ser apropriados, compreendidos e questionados por amplos segmentos da nossa sociedade. Se não houvesse nenhum outro saldo, somente este, a democratização do debate, já traduziria o grande resultado positivo da Iª Conferência Nacional de Comunicação (Iª Confecom), cuja etapa final foi realizada em Brasília entre os dias 14 a 17 de dezembro passado.

Apesar de boicotada pela Rede Globo, à frente da Abert, e pelo cartel dos grandes jornais, nucleados na ANJ, a Iª Confecom foi um sucesso. Enfrentou não poucos problemas ao longo da sua construção, esteve a pique de naufragar em alguns momentos mais acirrados, nas suas Plenárias finais, mas ao cabo resultou numa estrondosa, até emocionante, vitória do governo, das entidades da sociedade e de milhares de pessoas que se empenharam na sua realização. A Confecom foi um sucesso não somente pela mobilização que promoveu, mas também por ter demonstrado a empresários e não-empresários ser possível sustentar posições divergentes sem mútuas agressões e ser possível construir posições convergentes com mútuas concessões. Com certeza, para a Associação Brasileira de Radiodifusão (Abra) e para a Telebrasil, entidades empresariais que não acompanharam o radicalismo da Globo/Abert e da Folha/ANJ, a Confecom resultou num positivo aprendizado democrático.

Ao contrário de tantas outras conferências convocadas e organizadas pelo Governo Lula, esta se caracterizava pela necessidade de se assegurar a presença do empresariado no debate. Para esvaziá-la, a Abert, a ANJ e seus satélites caíram fora. Mas as contradições no campo empresarial falaram mais alto, o governo soube negociar com elas, daí que a Abra e a Telebrasil, depois de obterem salvaguardas que julgavam necessárias, aceitaram seguir participando do processo e, assim, qualificaram-se e se legitimaram para ocupar posições cada vez mais politicamente influentes nos debates que se seguirão.

Essas salvaguardas foram muito criticadas pelas representações e porta-vozes do campo popular, inclusive pelo autor dessas linhas. No entanto, ao contrário do que podiam esperar até quem as acatou temendo que, sem elas, a Confecom não se realizasse, as salvaguardas acabaram ajudando a filtrar as questões realmente relevantes para o debate, e não impediram que centenas de outras propostas fossem aprovadas por consenso ou votação amplamente majoritária, apoiadas inclusive pela representação empresarial.

Das quase 1.400 teses levadas a Brasília, metade delas foi liminarmente rejeitada ainda nos grupos de trabalho. Para tanto, bastava não somarem mais de 30% de votos favoráveis em seus grupos. Parece que o bom senso prevaleceu nos GTs… Aquelas que somassem mais de 80%, iriam direto para o relatório final como “aprovadas por consenso” ou “por mais de 80%”: foram 601, número bastante elevado e politicamente muito significativo. Nas demais, cada um dos dois segmentos da sociedade civil, em cada GT, selecionaria quatro de maior interesse para remeter às Plenárias finais, podendo o governo selecionar duas. Assim, 140 propostas chegaram às Plenárias para serem votadas ou, eventualmente, sujeitarem-se ao mecanismo da “questão sensível” – se algum segmento levantasse “questão sensível”, a proposta somente poderia ser aprovada se somasse 60% mais 1 dos votos e, pelo menos, 1 voto em cada um dos três segmentos. Ainda assim, 71 propostas foram aprovadas. Apenas 13 não lograram aprovação devido ao mecanismo. Outras duas foram rejeitadas por maioria simples e as demais não foram apreciadas por falta de tempo.

Ficou claro que poucas, embora decisivas questões opõem o empresariado ao campo democrático, ou o capital ao trabalho, como se diria em outros tempos… Um ponto de muito polêmica e que ainda deverá ser melhor discutido trata do uso dos recursos do Fust para financiar a universalização da banda larga. O empresariado quer, mas a CUT não quer que esses recursos possam ser devolvidos às operadoras privadas que prestariam o serviço. Para a CUT, essa operadora deveria ser uma revitalizada Telebrás estatal. Outro ponto sobre o qual não foi possível acordo trata da multiplexação dos canais de TV aberta digital. A Abra gostaria de usar essa possibilidade tecnológica para permitir, na prática, que cada emissora ofereça mais três, quatro ou cinco canais de programação em um mesmo canal de concessão. O Coletivo Intervozes orientou o campo democrático-popular a não concordar com isso: para cada concessão, só um canal.

Sem força legal, as resoluções da Confecom poderão e deverão vir a ser transformadas em projetos de lei do Executivo ou do Legislativo, nos próximos anos. Ao contrário da legislação atualmente em vigor, gerada em gabinetes fechados de governos anteriores e aprovada a força de lobbies empresariais e de sabidos (mas nunca investigados) mensalões passados, uma nova legislação que venha a ser respaldada nas resoluções desta primeira e das próximas Confecons, estará politicamente respaldada e legitimada pelo debate aberto e franco envolvendo os diversos e diferentes segmentos da sociedade. Nos termos das resoluções desta primeira Confecom, o Executivo ou o Legislativo já poderiam considerar a possibilidade de debater uma ou mais de uma lei envolvendo os aspectos abaixo relacionados.

– Criação do Conselho Nacional de Comunicação Social. Comemorado como uma das principais conquistas das forças populares, trata-se de antigo projeto, proposto inicialmente na Constituinte de 1988, cujas origens remontam ao Conselho Nacional de Comunicações, instituído pelo Código de Comunicações de 1962 e extinto pela ditadura militar. Nas condições políticas atuais, o Conselho seria composto por representantes do governo, do empresariado e da sociedade civil não-empresarial, tendo poderes para formular e implementar políticas de comunicações. Também foram aprovadas propostas prevendo a criação de conselhos estaduais e municipais.

– Criação do Conselho Federal de Jornalismo e elaboração de uma nova Lei de Imprensa. Independentemente da obrigatoriedade ou não do diploma específico para exercício da profissão, a atividade em si necessita de regulamentação, seja para assegurar, à sociedade, o livre acesso à informação (o recente boicote, pelo “Jornal Nacional”, à notícia da premiação do presidente Lula como Homem do Ano pelo Le Monde, é um autêntico escândalo!), seja para garantir aos profissionais condições reais para cumprirem, ou serem punidos se não cumprirem, o “código de ética” do jornalismo. Uma das teses aprovadas prevê incluir numa futura lei, a “cláusula de consciência” pela qual o profissional não poderia sofrer intimidações por escrever contra os interesses do seu patrão.

– Proibição de publicidade dirigida a menores de 12 anos. Sublinhando, por testemunho do autor destas linhas, que tal resultou de um acordo aceito pela Telebrasil e pela Abra, a Confecom deu importante respaldo à crescente mobilização da sociedade brasileira para proteger a nossa infância e nossa juventude da influência de mensagens publicitárias que visam formá-las como consumidores compulsivos, antes que se formem como cidadãos. Se uma lei nessa direção vier a ser aprovada, pode-se esperar algumas mudanças, para melhor, nas mentalidades de futuras gerações.

– Incentivo à produção audiovisual nacional, independente, regional ou comunitária. Foram dezenas as propostas aprovadas, por consenso, a favor de políticas de fomento e incentivo, inclusive com introdução de cotas ou criação de fundos, à produção nacional, ou independente, ou regional, ou comunitária, ou educativa etc. Uma delas diz com todas as letras: “Garantir um mínimo de 50% do mercado nacional de radiodifusão e TV por assinatura para a produção de conteúdo nacional” (GT 4/PL 516). O Congresso Nacional está portanto autorizado a introduzir cota de 50% para produção nacional na programação dos canais estrangeiros em TV por assinatura, no lugar das atuais ridículas 3hs30m semanais, conforme consta em projeto de lei recentemente aprovado na Câmara (PL-29), agora a caminho do Senado.

– Universalização da banda larga e da internet. Diversas propostas aprovadas por consenso nos grupos de trabalho, confirmam a importância, mesmo prioridade, que a sociedade brasileira passou a dar a políticas públicas voltadas para a universalização da banda larga e do acesso à internet. No entanto, como operacionalizá-las ainda é motivo de forte dissenso, opondo as operadoras privadas às representações dos trabalhadores e dos movimentos sociais. Sabendo-se que por aqui avançarão as fronteiras capitalistas de acumulação nos próximos anos, entende-se a maior dificuldade, neste ponto, de um acordo.

– Obediência à Constituição, em especial aos seus artigos 221 e 222. A Confecom concordou que os meios de comunicação, independentemente das plataformas tecnológicas, devem todos obedecerem aos princípios constitucionais que estabelecem suas finalidades educativas e culturais (cabendo, pois, regulamentá-los), bem como limitam a participação de capital estrangeiro nesses serviços. Uma das propostas aprovadas estabelece que o capital estrangeiro deverá ser reduzido de 30 para 10 por cento. Se depender da Confecom, a própria Constituição deveria ser revista para eliminar a distinção que hoje faz entre radiodifusão e telecomunicações, deixando assim as operadoras de telecomunicações livres para prover conteúdos sem obediência aos princípios que regem apenas (por enquanto) as emissoras de radiodifusão.

– Desenvolvimento tecnológico e industrial. Sem muito alarde, foram aprovadas por consenso duas teses, no GT específico, reivindicando políticas de fomento ao desenvolvimento industrial e tecnológico, inclusive aproveitando as novas oportunidades de mercado a serem abertas pela provável expansão da infra-estrutura de banda-larga, nos próximos anos.

– Garantia de direitos. Sem maiores polêmicas, foram aprovadas quase todas as teses que reivindicavam respeito aos, ou promoção dos direitos de minorias, mulheres, trabalhadores e cidadãos e cidadãs em geral.

– Rádios e TVs comunitárias. Este segmento, nucleado pela Abraço e pela ABCCom, foi um dos que mais se mobilizou pela realização da Confecom. Foi brindado, ao final, com a aprovação de quase todas as suas teses de fomento à radiodifusão comunitária e de condenação à criminalização, em curso inclusive sob o governo Lula, de ativistas do movimento.

A Confecom proporcionou-nos a todos e todas um grande aprendizado de democracia e diálogo. Criou pontes de comunicação entre segmentos que antes mal se cumprimentavam. Identificou atores e lideranças que poderão, a partir de agora, aprendidas de parte a parte as lições, tentar construir um novo, democrático e nacional marco regulatório para as comunicações brasileiras. Por outro lado, não poderemos ignorar, nos encaminhamentos futuros, as posturas atrasadas e atrabiliárias da Globo, da Folha de S. Paulo, Estadão e similares, ainda recusando o diálogo e a negociação, isto é, ainda ignorando as novas configurações democráticas que vai assumindo a sociedade brasileira. Resta esperar que, apesar dos seus indefectíveis editoriais de ocasião, nos seus interiores já se esteja sabendo avaliar o real significado desta e de outras tantas derrotas recentes. Ou ainda apostam que reverterão todo esse processo em outubro próximo?
* Marcos Dantas é professor da Escola de Comunicação da UFRJ, doutor em Engenharia de Produção pela COPPE-UFRJ, ex-secretário de Educação a Distância do MEC. Foi delegado do Estado do Rio à Iª Confecom, pela sociedade civil não-empresarial. É filiado ao PT-RJ.

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