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Construir a onda de mobilizações | Luiz Marques

História da subordinação

Por muito tempo, o vocábulo neoliberalismo foi empregado para designar um paradigma econômico fundado na primazia do mercado que, em nome de um Estado-gestor, garantisse as liberdades individuais. As quais se confundiam com as liberdades de comércio e circulação de mercadorias sem entraves alfandegários, portanto, em sinônimo da globalização hard da economia, Com o esvaziamento da intervenção estatal, apoiado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial, dizia-se que o Brasil sairia do subdesenvolvimento e deixaria de ser o eterno “país do futuro”, na famosa expressão de Stefan Zweig. A mídia corporativa incensou à exaustão a projeção redentora. Conformou-se o que Ignacio Ramonet chamou de pensée unique, para ressaltar a supremacia neoliberal.

No viés colonizado do governo Collor de Mello (1990-1992) e, em especial, nos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) irrompia a modernidade. Ficava no passado a Teoria do Desenvolvimento (continuum), que concebia o subdesenvolvimento e o desenvolvimento como  etapas de um processo evolutivo universal, em que o segredo de Polichinelo estaria em repetir a fórmula dos que chegaram antes. Brilhava a Teoria da Dependência que, apesar da inflexão da substituição de importações para incentivar o crescimento por dentro, pregava a associação com os países centrais (desenvolvidos). Seria o caminho auspicioso para os dividendos econômicos nos países periféricos (atrasados).

Para a versão liberal da Teoria da Dependência (F. H. Cardoso, Enzo Faletto), que prevaleceu sobre a socialista (Ruy Mauro Marini), haveria interdependência entre as duas realidades (a tradicional e a moderna). A “cloroquina” se acharia na inserção da economia nacional (capital privado, Estado) no mercado global (internacionalização). O objetivo não se resumiria à industrialização, implicava a perspectiva industrializante-associada. Na verdade, resultou em maior dependência, com o aumento da exploração dos trabalhadores e uma brutal desindustrialização (a eletroeletrônica sumiu). Na presidência, o tucano cumpriu os dez pontos do Consenso de Washington, desfraldando uma servil agenda de vira-lata.

Desde então, o capital financeiro formata o modo de ser dos trópicos, não somente na economia. Os institutos liberais (think thanks) são o elo no país da rede internacional em que se constituiu o pensamento e o sentimento aos moldes neoliberais. Entende-se que a antiga Sociedade Tocqueville, fundada por Meira Penna (embaixador em Israel à época da Guerra dos Seis Dias) e pelo esquecível olavista Ricardo Vélez Rodrigues (ex-ministro da Educação, de Jair Bolsonaro, numa flagrante contradição de termos), tenha trocado a nomenclatura para Instituto Mises do Brasil, a fim de estampar com clareza a passagem do liberalismo para o neoliberalismo. O rótulo apontou um ato de fala performático, per se.

A forma de vida neoliberal

A doutrina que se organizou na Société Mont-Pèlerin (Lippmann, Von Mises, Hayek, 1947), renovada pela Escola de Chicago (Stigler, Friedman, anos 60) e condensada no receituário de políticas de austeridade, privatização e monetarização do famigerado encontro na capital do Estados Unidos, dominou o cenário mundial a partir da década de 80. A Europa Central, com suporte em movimentos sociais favoráveis ao Estado de Bem-Estar Social, resistiu mais à financeirização das economias nacionais do que a América Latina, onde o Estado nunca se constituiu num valor majoritário defensável na percepção do senso comum. Os países orientais, em geral, sempre tiveram no Estado o agente do progresso e das conquistas sociais. O canto de sereia neoliberal não logrou persuadir seus concidadãos. Pudera. A China obteve avanços impressionantes nos últimos cinquenta anos, como jamais se viu na milenar história, graças à presença do Estado nas atividades econômico-empresariais.

No Brasil, mesmo ao tempo dos governos sob a liderança de Lula da Silva que obtiveram ampla aceitação (87%), conforme as pesquisas, a população frente à pergunta sobre se o Estado favorecia mais os ricos ou os pobres quase alcançou a linha dos 50% de respondentes, com a afirmação de que beneficiava os segmentos carentes. Mas não ultrapassou a linha demarcatória. Há um fosso histórico entre o Estado e o povo. A hegemonia neoliberal ao longo de duas gerações (perdidas?) aprofundou a distância.

Reflexões psicanalíticas e sociológicas têm se debruçado sobre a neoliberalização da subjetividade dos indivíduos[i]. Diferente do sujeito produtivo fordista, o neoliberalismo inaugurou um novo modelo de sujeito típico da sociedade pós-industrial, caracterizado por um individualismo sombrio sob a capa da meritocracia. No cinema, esta persona foi o yuppie representado pelo ator Leonardo DiCaprio no filme O Lobo de Wall Street (2013), dirigido por Martin Scorsese. A saber, o indivíduo que aspira a riqueza, que ascende financeiramente no mercado de ações, consome bens de luxo – e fura a fila do bufê.

O neoliberalismo é uma forma de vida, baseada no reconhecimento mercadológico e em uma política para o sofrimento. Para os liberais clássicos, o sofrimento estorvava a produção e o cálculo da felicidade no trabalho (máximo de prazer, mínimo de desprazer). Na forma de vida neoliberal, trata-se de potencializar a produtividade com gozo na própria sofrença. O que começou com metas de redução de custos, e passou por uma reengenharia de gestão e uma flexibilização de funções, desembocou na competição entre setores e empregados no interior das empresas, para provar o valor agregado setorialmente e para manter a empregabilidade de cada um. Os inovadores desdobramentos criaram a estrutura emocional que emergiu com o Homo Economicus, em todas as múltiplas dimensões da existência.

A cultura da indiferença

“Encontrar o melhor aproveitamento do sofrimento no trabalho, extraindo o máximo de cansaço com o mínimo de risco jurídico, o máximo de engajamento no projeto com o mínimo de fidelização recíproca da empresa, torna-se a regra espontânea de uma vida na qual cada relação deve apresentar um balanço… Não existem zonas protegidas ‘fora do mercado’, e quem é contra isso é contra o neoliberalismo, e quem é contra o neoliberalismo é a favor do Estado. Tudo é mercado. Educação é investimento. Saúde é segurança. Relações são networking. Imagem é marketing pessoal. Cultura é entretenimento. Pessoa é o empreendedor de si mesmo”, sintetiza Christian Dunker. Eis a normalopatia contemporânea.

Vladimir Safatle corrobora o raciocínio: “Note-se que ser contra a austeridade é, inicialmente, uma falta moral, um desrespeito ao trabalho de terceiros, além de uma incapacidade infantil de retenção e poupança. Criticar a austeridade é assim colocar-se fora da possibilidade de ser reconhecido como sujeito moral autônomo e responsável… A recusa ao primado da propriedade privada e da competitividade não seria apenas um equívoco econômico, mas principalmente uma falta moral”. A majestade da economia, alçada a um patamar superior a qualquer consideração política, transformou-a numa poderosa psicologia moral, acima das disputas partidárias e das distintas visões sobre a sociedade e o Estado.

Individualizar as normalopatias neoliberais foi a maneira que o sistema achou de evitar as críticas à máquina de moer corpos e almas. O problema é dos indivíduos, tout court. A solução, igualmente. O colapso da produção industrial foi identificado com a depressão; o do consumo, com as anorexias. Quem não se adapta à coisificação das engrenagens é diagnosticado com personalidade borderline. E estigmatizado como “imprestável”. Não à toa, as telas foram invadidas por zumbis distópicos, sem passado nem futuro. Da cultura do narcisismo de indivíduos ensimesmados, a sociedade migrou para a cultura da indiferença, – que o olhar cristão do Papa Francisco denunciou como “perda do amor e da compaixão”.

O sofrimento já não causa empatia, não traz consigo uma aura de dignidade. O ato dos jovens, em Brasília, ao atear fogo em miseráveis que dormiam ao relento, confrontados com a rejeição simbólica ao vírus consumista que contaminou o modus vivendi na atualidade, mostrou a que ponto cruel leva a desumanização neoliberal & fascista de outrem. Prefeituras que cimentam pedras pontiagudas debaixo dos viadutos, com a intenção de espantar “gente que não parece gente”, praticam políticas de eugenia para não enxergar as sequelas da acumulação capitalista. Enquanto o coordenador da Pastoral do Povo da Rua padece ameaças e xingamentos. Os últimos, lançados por uma deputada da extrema-direita que, por hábito adquirido em troca de “quarenta moedas”, queria o impeachment dele. É de rir.

Totalitarismo do mercado

O totalitarismo do mercado retira a razão de ser da política e dos governos. Faz os rituais democráticos sem serventia concreta, e despeja no lixo temas relativos ao desenvolvimento, ao planejamento, à desigualdade, à justiça social, aos direitos humanos, ao espaço público, consentâneo à cartilha dos altos funcionários do dinheiro. É o que se depreende:

a) Da Proposta de Emenda Constitucional que congelou investimentos na Educação e na Saúde por vinte anos (governo Temer), embora o DataFolha registrasse que 60% da população ouvida tinha posição contrária à aprovação pelo Congresso Nacional e;

b) Da PEC que entregou o Banco Central aos rentistas e banqueiros (governo Bolsonaro), autorizando a compra de ativos privados como debêntures, carteiras de créditos e certificados de depósitos bancários (CDBs) de bancos e fundos de investimentos.

Com os remendos constitucionais se bloqueou a entrada do país na quarta revolução tecnológica (na ordem: indústria, infraestrutura, energia, saúde) pela porta da frente, e se inviabilizou a via educacional como fator de transcrescimento social. Mais, legalizou-se a expropriação do poder popular e o assalto ao Erário, com a autonomização dos mecanismos de controle. Como no ditado, foram introduzidas raposas para cuidarem do galinheiro. Ao Judiciário e à Polícia Federal coube a fiscalização para o sucesso das burlas à nação e à democracia. Com celeridade, os vetores do mercado são disseminados nas instituições.

Para João Manuel Cardoso Mello (Focus Brasil, 27/09/2021): “É o ápice da podridão. Hannah Arendt em ‘As Origens do Totalitarismo’ usa a categoria ‘ralé’, que diz respeito aos ressentidos, aos que odeiam. O nazismo foi obra da ralé que está em todas as classes – no empresariado, no agronegócio, na classe média e entre os pobres”. O ex-PM dono da Gocil Serviços de Vigilância e Segurança, o véio da Havan e o da Riachuelo querem sentar à mesa das grandes deliberações – “porque são ricos”. É o argumento que serve de justificativa ao ressentimento da ralé com cifrões. A plêiade de comerciantes, “semi-letrada”, possui compromisso zero com a nação. “O comércio varejista é como na República Velha, colou-se à economia primária exportadora e à regressão econômica. Descolou-se da indústria”. Prossegue o professor, certeiro. “Hoje o rentismo (tirar renda de qualquer ativo, o que inclui superinflação, aumento da Taxa Selic) é o problema do país. Se alguém quiser governar aqui e não quiser enfrentar esse problema, melhor nem ser candidato… Quem manda no país são as finanças. Se não quebrar isso, você não governa”, conclui o alerta. A rigor, um recado.

Neoliberalismo vs. Democracia

O neoliberalismo prescinde da democracia. O bolsonarismo foi incentivado pelas elites (econômicas, no más) para acabar com os governos progressistas, que implementavam políticas de oportunização para a ascensão social das classes trabalhadoras, cotas afirmativas para acelerar a mobilidade social por meio do ensino superior e reajustes salariais que ampliaram as alternativas de lazer e entretenimento. Fenômeno que, para os colunistas sociais (que los hay, los hay), transmutou os aeroportos em rodoviárias. O programa da esquerda não questionava os fundamentos do capitalismo neoliberal, mas atendia demandas democrático-republicanas da maioria da população. O golpe de 2016, amparado nos tribunais e na opinião midiatizada, antecipou outros movimentos do xadrez político como o impedimento da candidatura Lula em 2018, made in USA. Uns não entenderam metade da missa. “O Brasil não é para principiantes”, advertia Tom Jobim.

No momento, as classes dominantes estão divididas dado o descalabro do desgoverno em curso: lesa-pátria em nível nacional, pária repelente em nível internacional. O ex-ministro da Fazenda, agora sócio da Tendências Consultoria Integrada, Maílson da Nóbrega, afirma que o capital financeiro entre Lula e Bolsonaro ficará com o primeiro. O presidente da holding controladora do Banco Itaú, Alfredo Setúbal, defende a “terceira via” com adepto do laissez-faire manchesteriano mais dócil, menos ignorante, sem o clã. Na caricatura feita pelo ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, busca o Bolsonaro “com verniz”.

O dilema não se reflete nas eleições vindouras – simplesmente. Remete à crise da democracia liberal, na cartografia da modernidade. O totalitarismo do mercado cobra um Estado forte para assegurar os valores mercantis na economia, com um aparato legal que confira segurança jurídica ao capital e acondicione os atores econômicos no teatro da concorrência. O próprio Estado deve subordinar-se às normas concorrenciais e submeter-se aos ditames estabelecidos, mercadologicamente. Em igual proporção, aliás, a cidadania deve desinvestir-se de responsabilidades coletivas. Significa assumir um viés empreendedor, em vez de social. Azar, se os preços da gasolina, do diesel e do gás de cozinha dispararem.

A racionalidade neoliberal desconstrói as ideologias. Dilui o direito público no direito privado ao instituir critérios de rentabilidade e produtividade, para ambos. Enfraquece a ação dos Legislativos, mas também dos Executivos, posto que a administração precisa ter caráter técnico, ao invés de político-social. “O cinismo, a mentira, o menosprezo, a aversão à arte e à cultura, o desleixo da linguagem e dos modos, a ignorância, a arrogância do dinheiro e a brutalidade da dominação valem como títulos para governar em nome da ‘eficácia’”, avaliam Pierre Dardot e Christian Laval. Neste contexto, a democracia liberal mapeada em priscas eras pela ciência política volatiza-se, fica só a casca. No lugar, surge uma “democracia totalitária” regida pelos resultados, segundo os cânones do mercado.

Não obstante, há opção: a união dos democratas de várias cores ideológicas para enfrentar o neoliberalismo e o bolsonarismo. Para resgatar, com a boa política, a força da palavra e da participação ativa nas estratégias de transformação do establishment. Para construir a onda de mobilizações que vai recolocar o Brasil e a América Latina no rumo do futuro. Outra sociedade é possível. Começa por afastar o pedregulho do caminho. Fora Bolsonaro, xô!

 

  • Luiz Marques é professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul (governo Olívio Dutra).

[i]     Sobre o tema: SAFLATE, Vladimir et alli, “Neoliberalismo: como gestão do sofrimento psiquíco”, Autêntica, 2021. DUNKER, Christian, “Reinvenção da Intimidade: políticas do sofrimento cotidiano”, Ubu, 2017. DARDOT, Pierre, LAVAL, Christian, “ Nova Razão do Mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal”, Boitempo, 2016.

Foto: Stefano Figalo/Brasil de Fato

Publicação original: Carta Maior

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