Algumas das feições rurais herdadas das décadas passadas, e que apesar dos esforços governamentais e da sociedade civil ainda vigoram, são os latifúndios improdutivos, o trabalho escravo e a devastação ambiental. São feições oriundas do crescimento desigual e, por isso, tão difíceis de se corrigir. Sofremos as consequências desastrosas da falta de política agrária e de política agrícola. E sofremos por longo tempo.
Foi apenas nos últimos anos, com o rearranjo das políticas urbanas e rurais, que começamos a romper com essa realidade. Aos poucos, nos vemos crescendo de forma diferente. Não extinguimos a miséria, mas estamos reduzindo as desigualdades na cidade e no campo. Não por acaso, 20 milhões de brasileiros deixaram de ocupar as classes D e E, passando a ter condições melhores de vida. No ano passado, o país alcançou uma geração recorde de 1,6 milhão de empregos.
GUILHERME CASSEL
É momento de debater o Brasil rural e as possíveis formas de seu crescimento: com igualdade ou com desigualdade. São dois caminhos que agora parecem mais nítidos, afinal, já vivenciamos a concentração fundiária, a favelização rural e a ausência de políticas agrárias por muitos anos. Foi um lento processo de aprendizagem até começarmos a implantar políticas públicas que de fato mantivessem trabalhadores e trabalhadoras rurais com trabalho e renda no campo. E esse é um processo ainda em construção. A questão agrária e a pobreza no campo são discussões que remontam ao século 19. Jamais foram solucionadas porque jamais crescemos com igualdade. Os anos 70 são um modelo desse tipo de crescimento distorcido. Muitos de nós ainda jovens, outros sequer nascidos, todos experimentamos os efeitos do “milagre econômico”. Embalados por esse jargão, em pleno período de ditadura militar, pensamos estar crescendo econômica e socialmente e, mesmo ali, jamais nos vimos crescendo iguais. Passamos a conviver com bolsões de pobreza nas grandes cidades e o avanço da violência urbana. Conhecemos o que era recessão, má qualidade de vida e os resultados da degradação ambiental. Do campo, milhares de famílias foram expulsas.
Algumas das feições rurais herdadas das décadas passadas, e que apesar dos esforços governamentais e da sociedade civil ainda vigoram, são os latifúndios improdutivos, o trabalho escravo e a devastação ambiental. São feições oriundas do crescimento desigual e, por isso, tão difíceis de se corrigir. Sofremos as consequências desastrosas da falta de política agrária e de política agrícola. E sofremos por longo tempo.
Foi apenas nos últimos anos, com o rearranjo das políticas urbanas e rurais, que começamos a romper com essa realidade. Aos poucos, nos vemos crescendo de forma diferente. Não extinguimos a miséria, mas estamos reduzindo as desigualdades na cidade e no campo. Não por acaso, 20 milhões de brasileiros deixaram de ocupar as classes D e E, passando a ter condições melhores de vida. No ano passado, o país alcançou uma geração recorde de 1,6 milhão de empregos.
E o campo mostrou sua faceta recompensadora a todos os que defendem políticas públicas específicas para o seu crescimento. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) confirma a safra recorde de grãos em 2007, de 133 milhões de toneladas. Dados preliminares do censo agropecuário demonstram que o número de propriedades rurais cresceu, de 4,8 milhões para 5,2 milhões, ao mesmo tempo em que o tamanho médio delas diminuiu. Já a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) atesta que a renda da agricultura familiar aumentou 7%. Esses números refletem políticas implementadas especialmente desde 2003. Estamos esboçando uma nova malha fundiária e ampliando a renda de quem precisa e produz.
Esses são os primeiros passos de uma caminhada que tem de ser feita com firmeza e rapidez. E, além disso, com muita persistência para que grandes extensões de terras despovoadas passem a ser cenário do passado. Porque outra realidade é possível: a de homens, mulheres, jovens, idosos e crianças em vida plena e comunitária no campo.
E eles não precisam compor famílias que só cultivam pela subsistência. Seu horizonte hoje está amplificado com o crédito cada vez mais alto do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), que incentiva a produtividade, a mecanização e a comercialização dos alimentos; e do seguro agrícola, que propicia mais segurança contra intempéries climáticas e oscilações de preços. Essa é uma política que demoramos a construir. O Pronaf completa 12 anos em 2008, mas sua conformação mais inclusiva e diversificada para os trabalhadores rurais só ocorreu depois de muita lapidação. E o aprimoramento continua.
Com o advento do biodiesel e o potencial de integração da agricultura familiar na sua cadeia de produção, os agricultores encontram uma nova forma de ampliação da renda. O Selo Combustível Social do Ministério do Desenvolvimento Agrário tem sido um instrumento decisivo nessa nova política de inclusão produtiva. Tudo isso sem esquecer a missão primordial da agricultura familiar: a produção de alimentos. A agricultura familiar começa a englobar pessoas que descobrem novos caminhos produtivos e escolhem o que preferem fazer no seu chão. Agora, elas têm chão.
Hoje já conseguimos antever um outro tipo de crescimento no meio rural, mais igual e solidário: dispomos de um número maior de proprietários rurais, de produção diversificada de alimentos, de geração de mais trabalho e mais renda. Crescer com igualdade é o desafio contemporâneo do meio rural brasileiro. É apostar em gente trabalhando e agregando valor à produção, sendo assistida por técnicos que compartilham as inovações tecnológicas, tendo água encanada, saneamento e energia elétrica mesmo nos pontos mais longínquos. E vendo os filhos freqüentarem todos os dias a escola. Escola próxima, de preferência.
Por isso, o governo federal lançou no mês de fevereiro o programa Territórios da Cidadania, para que essa dinâmica econômica e social já constatada em alguns lugares seja disseminada pelo país. O programa tem um objetivo claro: superar as condições de pobreza que ainda persistem no meio rural. Queremos fazer o que o Estado brasileiro nunca foi capaz: garantir o acesso a direitos e a políticas públicas de infra-estrutura e desenvolvimento econômico lá nos territórios esquecidos, nos lugares mais pobres, onde moram e trabalham homens e mulheres que pelas mais diversas razões têm sido condenados à invisibilidade. Queremos restituir a milhares de brasileiros o direito de usufruir deste novo ciclo de crescimento e abrir para essas regiões novas possibilidades de desenvolvimento.
Poderíamos retroceder, deixar de destacar tantos recursos para a agricultura familiar, que responde por 60% de todos os alimentos que consumimos no Brasil, e para a reforma agrária massiva e de qualidade. Poderíamos voltar a concentrar a malha fundiária, sem nos preocupar com o escoamento da produção dos agricultores familiares e assentados, com o desmatamento ou a convivência racional com a Floresta Amazônica. Poderíamos crescer sem nos indagar se a água finalmente irrigará as pequenas comunidades rurais do Nordeste e sem concretizar o Projeto do Rio São Francisco de forma inclusiva. Depois de descobrir que é possível crescer sem sermos tão desiguais, será que temos esse direito?
Guilherme Cassel, engenheiro civil, é Ministro de Estado do Desenvolvimento Agrário.
Publicado no Valor Econômico de 12 de março de 2008
Comente com o Facebook