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Crise política no Paraguai: um teste para a região?

Crise política no Paraguai um teste para a regiãoPor Carlos R. S. Milani, publicado originalmente no site da Carta Capital

A destituição sumária de Fernando Lugo no dia 22 de junho, por meio de julgamento político conduzido e votado pelo Congresso paraguaio em menos de 48 horas, reascendeu os debates acerca dos processos de institucionalização da democracia na América Latina, mas igualmente sobre o papel que podem desempenhar as organizações regionais, mais particularmente o Mercosul e a Unasul, na garantia da ordem democrática sem a ingerência de uma potência externa.

De um lado, alguns analistas têm ressaltado que todo o processo foi aprovado por ampla maioria dos deputados e senadores, como reza a Constituição paraguaia, tratando-se, portanto, de um julgamento ordenado, pacífico e respeitoso da legalidade e das instituições políticas.

Por outro, muitos têm denunciado o golpe de estado expresso ou o golpe parlamentar que, com forte midiatização, poderia se inscrever na série recente de golpes ou tentativas de golpe na América do Sul (Jamil Mahuad no Equador em 2000; Hugo Chávez em 2002 e Rafael Correa no Equador em 2010), no Caribe (Jean-Bertrand Aristide no Haiti em 2004) e na América Central (Manuel Zelaya em Honduras em 2009).

Em artigo publicado no jornal argentino La Nación em 24 de junho, Juan Gabriel Tokatlián chamou esse fenômeno de “neogolpismo”: golpes formalmente menos virulentos, liderados por civis com apoio ou cumplicidade dos militares e mantendo alguma aparência institucional.

No caso do Paraguai, a celeridade processual e o sentido de urgência do julgamento pelo Congresso surpreenderam analistas, diplomatas, políticos e movimentos sociais. Nas comunicações públicas das embaixadas sediadas em Assunção e nos Ministérios das Relações Exteriores nas capitais da região, não parece ter havido capacidade de antecipação do golpe paraguaio. No entanto, um olhar mais atento (embora ex post…) para a realidade doméstica paraguaia nos leva a reconhecer que o tímido governo popular de Lugo se sustentava em fraca coalizão partidária construída entre a Frente Guasú (de esquerda) e o Partido Liberal Radical Autêntico (de Federico Franco) contra o Partido Colorado – partido este que havia governado o Paraguai entre 1947 e 2008, incluindo a ditadura de Stroessner entre 1954 e 1989.

Os desentendimentos entre Lugo e seu vice inviabilizaram, desde o princípio do mandato, o surgimento de um denominador comum quanto às prioridades em matéria de políticas públicas para o desenvolvimento social e de institucionalização da democracia no Paraguai. Foram-se gerando impasses e, pouco a pouco, Lugo tornou-se refém do complexo poderio político e econômico resultante das relações entre oligarquias locais e latifundiárias, empresas transnacionais (como a Monsanto e a Cargill), grupos empresariais, mídia e Igreja Católica. Nada surpreende que o Núncio Apostólico tenha sido um dos primeiros dignitários a terem cumprimentado Federico Franco, logo após a sua posse em 23 de junho.

Conjunturalmente, o estopim para o julgamento de Lugo pelo Congresso foi o conflito agrário de Caraguaty de 15 de junho, quando morreram 18 pessoas durante o enfrentamento entre policiais e militantes de movimentos sociais. Estruturalmente, não podemos esquecer o paradoxo de que o pequeno Paraguai é, concomitantemente, um dos maiores centros de receptação de roubo, falsificação de produtos e contrabando, além de rota importante do narcotráfico. As relações entre a economia subterrânea e segmentos da elite política, no âmbito de uma ordem plutocrática e cleptocrática, parecem poder explicar, pelo menos em parte, como e por que, nesse país com alta concentração fundiária e o IDH mais baixo da América do Sul, o exercício de atividades ilegais se mantém praticamente sem controle ou preocupação das instituições. Um dos articuladores do golpe foi o senador Horacio Cortes, do Partido Colorado, com mandato de prisão expedido nos EUA por envolvimento com o narcotráfico.

Do ponto de vista fiscal, é importante lembrar que a incapacidade estatal de recolher impostos, haja vista a carga tributária de apenas 13% do PIB paraguaio, inviabiliza a prestação de serviços públicos. Diante desse quadro, Lugo confrontou os “donos do poder” ao tentar avançar muito modestamente a reforma agrária, ou ainda quando não autorizou o plantio da semente de algodão transgênico Bollgard BT da Monsanto.

O projeto de renda mínima, inspirado no programa Bolsa Família do Brasil, que usaria parte dos lucros de Itaipu a fim de atender 85 mil famílias vivendo em situação de pobreza, foi vetado pelo Congresso. Além disso, Fernando Lugo também enfrentou a oposição contundente do Congresso em matéria de política externa: a indicação pelo Executivo de um embaixador no Brasil somente foi aprovada pelo Senado em março de 2012, após quase quatro anos de governo.

Dificuldades semelhantes ocorreram no processo de ratificação do ingresso da Venezuela no Mercosul. Em termos de políticas públicas, uma pequena porém importante vitória de Lugo merece destaque: o estabelecimento da televisão pública como instrumento de democratização da comunicação social no Paraguai. Ironia da história, com todas as dificuldades encontradas dentro e fora das instituições políticas, Lugo acabou sofrendo processo de impeachment sob o pretexto de “mau desempenho” em suas funções.

E as Forças Armadas? Que papel tiveram? É interessante notar que, em setembro de 2009, o presidente Lugo decidiu não renovar o programa de cooperação militar com os Estados Unidos, assinado durante a presidência de Nicanor Duarte (permitindo a entrada em solo paraguaio de 500 militares norte-americanos com imunidade diplomática para fins de treinamento).

Cerca de um mês após essa recusa, Lugo trocou todo o comando militar. A seguir, em meados de agosto de 2011, houve reunião de 21 generais dos EUA com a Comissão de Defesa da Câmara, com o objetivo de construir base militar que vinha sendo reivindicada pela Unace (Unión Nacional de Colorados Éticos) como meio de contenção das “ameaças bolivarianas”. Lugo recusou-se a aceitar a construção da base norte-americana, porém concordou com a Iniciativa Zona Norte, que garantiu a ampla presença militar dos EUA em programas de combate contra o crime organizado e a participação da USAID em projetos sociais. Aqui se percebe que os interesses estratégicos norte-americanos não estiverem tão ausentes do cenário político doméstico paraguaio que antecedeu o 22 de junho.

Em 25 de junho, durante conferência de imprensa em Washington, a porta-voz do Departamento de Estado, Victoria Nuland, mencionou que os Estados Unidos não consideravam a hipótese de chamarem o seu embaixador em Assunção e que o governo Obama já havia iniciado consultas com países sul-americanos. No dia 26, ela afirmou que os EUA não qualificariam a crise paraguaia como resultante de um golpe de estado, pois os processos constitucionais haviam sigo respeitados (“constitutional processes that were followed”). Também enfatizou a necessidade de aguardar a reunião extraordinária do Conselho Permanente da OEA, que ocorreu no dia 26 e decidiu que o Secretário Geral, José Miguel Insulza, deve viajar ao Paraguai e a outros países da região a fim de coletar informações sobre os recentes acontecimentos. Tanto OEA quanto EUA mencionam em seus discursos oficiais a importância das eleições de 2013 no Paraguai, deixando para as entrelinhas do passado o debate sobre o processo sumário de impeachment de Fernando Lugo.

No contexto geopolítico regional, é bem verdade que não houve ingerência direta de Washington logo após o golpe a fim de orientar o comportamento dos principais Estados da região, que foram unânimes em condenar o que alguns chamaram de golpe (Venezuela, Argentina, Bolívia, Equador), precedente perigoso (Brasil) ou de desrespeito ao devido processo (Colômbia, Chile, Peru e Uruguai).

Como salientou Maria Regina Soares de Lima (OPSA Observador Online vol. 7, n. 6), Argentina, Bolívia, Equador e Venezuela retiraram seus embaixadores do país por tempo indeterminado, ao passo que o Brasil chamou o seu embaixador para consultas. Ademais, os países da região decidiram suspender temporariamente o Paraguai das atividades do Mercosul e da Unasul. Aspecto fundamental: tal decisão foi tomada em comum acordo e referendada multilateralmente, como prova da ação coletiva dos governos da região em defesa da democracia. No caso do Mercosul, segundo os termos do Protocolo de Ushuaia II, a alegação formal para a decisão foi a “ruptura da ordem democrática”, por meio de um processo que não permitiu o devido tempo a Fernando Lugo para o exercício do direito de defesa.

Também merece destaque o acordo entre os países do Mercosul de adotarem medidas de consenso que sejam mais amenas, pelo menos inicialmente: o país foi suspenso das reuniões e dos órgãos do Mercosul, mas não foi excluído das obrigações e direitos. A “cláusula democrática” do grupo e da também da Unasul não prevê critérios precisos, nem usa termos que sejam muito claros. No entanto, consideramos que o objetivo dessa proteção é político e não teórico; os conceitos podem ser debatidos no meio acadêmico. Dos políticos e das instituições não exigimos a tarefa de definir com precisão conceitual o que é um golpe, mas sim a função política primordial de promover e proteger a democracia na região.

No plano sistêmico, consideramos não menos relevante a ameaça gerada por esse cenário no tabuleiro geopolítico da região: em razão de sua localização territorial, dos reservatórios de água doce que possui, de suas fontes energéticas particularmente importantes para Brasil e Argentina, mas também graças à proximidade das reservas de gás boliviano, o Paraguai pode converter-se em fonte de contenção e desestabilização dos governos de esquerda e centro-esquerda na América do Sul. Esse aspecto, relacionado à instalação de bases militares norte-americanas na região e aos interesses domésticos de grupos oligárquicos e econômicos no Paraguai (e isso se aplica a outros países sul-americanos), poderia conferir ao governo recentemente empossado capacidade de confrontação de seus vizinhos mais poderosos.

*Carlos R. S. Milani é professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (UERJ)

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