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De golpes e contragolpes na tradição brasileira – IV | Flávio Aguiar

Imagem: Lucas Vinicius Pontes

As tentativas de golpes frustradas no Brasil de 1954 a 1964

Os dez anos entre 1954 e 1964 foram marcados por uma série de tentativas frustradas de golpes de variada espécie, a maioria deles do tipo “militar”, mas com um deles pelo menos, de origem civil: (1) Café Filho/Carlos Luz; (2) Jacareacanga (Aeronáutica); (3) Aragarças (Aeronáutica e algum apoio de militares do Exército); (4) 1961 (os três ministros militares). Entre as raízes do insucesso destes golpes estava a divisão dos comandantes militares, apesar do progressivo predomínio nas três armas dos oficiais “americanófilos” e anticomunistas. Também as direitas brasileiras estavam muito divididas, apesar da liderança golpista de Carlos Lacerda, apelidado de “o Corvo”, e da União Democrática Nacional (UDN).

Ele e ela se sentiram ameaçados quando, na eleição parlamentar realizada em novembro de 1954, a UDN perdeu dez cadeiras no Parlamento, num claro repúdio à sua atuação golpista. A partir daí os udenistas começaram uma campanha cerrada pondo em dúvida a lisura do sistema eleitoral (música que voltou a tocar no atual desgoverno). Os comandantes militares se dividiram, entre aqueles que apoiavam a pregação udenista, os que sustentavam a lisura do sistema eleitoral, e os que ficavam em cima do muro, observando os acontecimentos.

O Ministro da Guerra, general Lott, estava entre os observadores, mas acabou pendendo para os apoiadores do sistema, neutralizando uma tentativa de golpe confusa e meio desesperada por parte de Café Filho, o vice que assumira depois do suicídio de Vargas, e de Carlos Luz, que era presidente da Câmara de Deputados e chegou a suceder Café Filho, quando este se licenciou para tratamento de saúde.

Os detalhes desta tentativa podem ser lidos nos arquivos do CPDOC, no verbete dedicado ao general Lott. Resumindo, os golpistas, com apoio de Lacerda e da UDN, quiseram impedir a posse de Juscelino Kubitschek, eleito em 1955 com 36% dos votos, superando três outros candidatos: Juarez Távora, pela UDN, Adhemar de Barros, pelo Partido Social Progressista, e o integralista Plínio Salgado, pelo Partido da Representação Popular. Lacerda e a UDN pregavam abertamente contra a eleição, pedindo a intervenção dos militares para pôr fim à “anarquia civil”. Não conseguindo novas adesões significativas, terminaram por ceder, lançando, sem sucesso, a candidatura de Juarez Távora.

Juscelino, eleito, era visto por eles como perigosamente ligado ao herdeiro de Vargas, João Goulart, eleito vice-presidente (as eleições eram separadas, não por chapa), tivera apoio do PTB e de uma frente de partidos ligados ao sindicalismo, e também, por baixo do pano, dos comunistas, embora o PCB (na época, PC do B) estivesse na ilegalidade. Era uma ilegalidade branda: em Porto Alegre o Partidão tinha uma livraria e até um bar, onde um primo de meu pai trabalhou como garçom: mais proletário do que isto, impossível.

Através de uma série de manobras parlamentares, Café Filho e Carlos Luz tentaram anular o pleito e provocar novas eleições. As cúpulas militares se dividiram, horizontalmente e verticalmente. A maioria dos generais pendeu para o lado da legalidade, apoiando o resultado da eleição constitucional; outros apoiaram os golpistas. Ao mesmo tempo, o apoio ao movimento golpista cresceu entre os coronéis. Disposto a levar o golpe adiante, Luz demitiu Lott do ministério. Depois de alguma hesitação, o general Lott agiu célere. Não aceitou a demissão, mobilizou seus comandados defendendo a hierarquia militar e a unidade definida pela maior parte dos oficiais superiores. Depôs Carlos Luz e deteve Café Filho em prisão domiciliar. Dispôs-se a neutralizar ou enquadrar o comando militar de São Paulo, que poderia apoiar Luz, com ajuda do governador Jânio Quadros. Carlos Luz e seus acompanhante acabaram ficando numa situação anódina, até cômica.

Vendo que Lott dominara a situação no Rio de Janeiro, Luz embarcou com outros golpistas, entre eles Lacerda, no navio Almirante Tamandaré, rumando para Santos, em busca do esperado apoio em São Paulo. Entretanto Lott continuou agindo célere, e controlou completamente a situação militar em São Paulo. Quando o Almirante Tamandaré chegou a Santos, já não tinha quem apoiasse seus passageiros, nem mesmo o governador Jânio Quadros; o navio retornou então ao Rio de Janeiro, ficando ancorado na Baía de Guanabara até o final da crise. Deixando o navio, Lacerda chegou a pedir asilo à embaixada de Cuba, então sob a ditadura de Fulgêncio Batista, o que acabou não se concretizando. Na marra, Lott deu posse como presidente ao político catarinense Nereu Ramos, que na ocasião presidia o Senado Federal.

A crise terminou com a posse, em 31 de janeiro, de Juscelino e Jango. Com seu sorriso imbatível e seus tapinhas nas costas, Juscelino acabou perdoando todos, através de uma lei de anistia aprovada no Congresso. Mas Lott, que continuou a comandar o Ministério da Guerra, também continuou a agir com celeridade: retirou do comando direto de tropas todos os oficiais golpistas, enviando-os para diferentes pontos do país como encarregados do recrutamento. Este seu movimento contribuiu de modo fundamental para o insucesso da próxima grande tentativa de golpe, a de 1961, quando, depois da renúncia surprendente de Jânio Quadros, os três ministros militares tentaram impedir a posse do vice, de novo o especialista neste cargo, João Goulart.

Detalhe: no meio da crise um grupo de jovens professores da Universidade de São Paulo, militantes do Partido Socialista Brasileiro, escreveu um manifesto de apoio a Luz, contra Lott. O grupo se dirigiu à casa de seu mestre, o professor Fernando de Azevedo, para colher sua assinatura. Este recebeu a comitiva, mas disse-lhes para engavetar o manifesto: para ele, Lott é quem tinha razão, não Luz, que era golpista e queria impedir a posse do presidente constitucionalmente eleito. O grupo desanimou e obedeceu. Quem me contou o episódio foi um dos então jovens professores: Antonio Candido.

No meio do caminho houve duas outras tentativas canhestras de golpe, ambas lideradas por oficiais da Aeronáutica, que se sentiam desprestigiados (esta ladainha também está de volta) e ameaçados pelo comunismo montante, para eles sob a liderança do governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. Na primeira, em 1956, os golpistas concentraram aviões em Jacareacanga, no estado do Pará. Na segunda, concentraram-se em Aragarças, em 1959, no interior de Goiás, depois de sequestrarem alguns aviões, inclusive um de voo comercial, com passageiros civis. Queriam, mais uma vez, depor Juscelino e Jango. No primeiro caso, chamou a atenção a relutância de oficiais superiores da Aeronáutica em reprimir o movimento.

Na segunda, os golpistas conseguiram a adesão de alguns oficiais do Exército. Mas em ambos os casos o apoio foi insuficiente, não conseguindo, por exemplo, nem mesmo a adesão de Carlos Lacerda. A duração da revolta de Jacareacanga foi mais longa: 19 dias; a de Aragarças foi menor: em 36 horas ela estava dominada. No caso de Jacareacanga houve muitos atos de insubordinação, com militares de diferentes pontos do país se recusando a reprimir o movimento. Houve muitas prisões em várias cidades. No caso de Aragarças a ação do governo foi mais rápida e contundente. Em ambos os casos, os revoltosos desistiram, entregaram-se alguns e foram presos, outros se exilaram nos países vizinhos. Juscelino perdoou os revoltosos de Jacareacanga, através da mesma lei aprovada no Congresso que anistiava os golpistas de 1955. Os de Aragarças que tinham fugido para o exterior só voltaram ao país depois da posse de Jânio, a quem apoiavam. Detidos na chegada, foram libertados em seguida, alegando que seu movimento fora de natureza “anti-comunista”.

Apesar do fracasso, as duas revoltas estimularam novas conspirações. No caso de Aragarças os revoltosos chegaram a cantar vitória, porque um dos estopins de sua revolta fora o anúncio, por parte de Jânio, que não concorreria às eleições de 1960, já que brigara com a UDN ou vice-versa. Jânio voltou atrás, concorreu e ganhou, derrotando Lott, a quem os oficiais revoltosos detestavam por sua conduta legalista em 1955. Lott concorrera pelo PTB. Como as eleições de presidente e vice eram separadas, Jango concorreu e ganhou. Houve até quem sugerisse que por baixo do pano houvera uma campanha pela dupla Jan-Jan, já que Lott, como candidato, era um fracasso no palanque, tanto quanto Jânio era um sucesso, com sua campanha da “vassourinha” contra a corrupção. Meu pai, por exemplo, votou na dupla: em Jânio, pelo combate à corrupção, em Jango, “pela fidelidade ao PTB”. Depois ele se arrependeria do primeiro voto.

A vitória e a posse de Jânio provocaram um racha na UDN. De um lado ficou a chamada “Banda de Música”, sempre golpista, liderada por Lacerda. Do outro, a “Ala Bossa Nova”, pregando uma postura mais legalista, liderada, entre outras vozes, pela de um certo José Sarney. Aquela ala chegou a acusar esta de “comunista”, sobretudo depois que a “Bossa Nova” buscou uma aproximação com João Goulart, que sucedeu a Jânio quando da renúncia deste.

Sobre a tentativa de golpe em 1961 já se escreveu muito, inclusive de minha parte. Aqui vou destacar apenas algumas das razões que, na minha opinião, levaram o movimento ao fracasso. A primeira razão de seu insucesso esteve no motivo imediato que desencadeou a tentativa de golpe: a renúncia de Jânio Quadros. Ela pegou todo mundo de surpresa, golpistas e não golpistas. Num primeiro momento, o governador Leonel Brizola chegou a sugerir que Jânio fosse para o Rio Grande do Sul, pois acreditava que o presidente estava sendo vítima de um golpe.

Há duas versões sobre os motivos da renúncia. A primeira, mais corrente, é a de que ela seria uma tentativa de auto-golpe. Jânio renunciaria para ser reconduzido ao poder nos braços do povo e dos militares à sua volta, com poderes discricionários e livre para fazer o que quisesse. Estrategicamente, ele teria enviado Jango, o vice, para a China, a fim de incompatibiliza-lo mais ainda com os militares da direita. Se de fato fosse esse o motivo, faltou combinar a manobra com o povo e com aqueles militares. Estes bem que quiseram impedir a posse de Jango, mas não lhes passou pela cabeça reconduzir Jânio ao Palácio do Planalto. Afinal, no passado recente, com sua política errática, ele condecorara Ernesto Che Guevara e reconhecera a Cuba revolucionária.

A outra versão, que não contradiz a primeira, foi dada posteriormente, em entrevista, pelo arqui-golpista Golbery do Couto e Silva. Na época, ele era Chefe de Gabinete do Conselho de Segurança Nacional, um órgão de assessoria direta do Presidente da República Perguntado por que Jânio renunciara, Golbery respondeu: “porque faltou alguém que o trancasse no banheiro”.

O fato, podendo corroborar ambas as versões, é que Jânio padecia de momentos de profunda depressão e desequilíbrio emocional durante os solitários fins de semana em Brasília, quando quase todos os outros políticos abandonavam a recém-inaugurada e ainda inóspita Novacap, em direção a seus redutos eleitorais. Havia comentários na época de que nas sextas e sábados Jânio ia para a sala de cinema do Palácio do Planalto, levando uma garrafa de uísque, para ver faroestes, e lá ficava até que os filmes e a garrafa terminassem, sobretudo ela.

Estava rompido com Carlos Lacerda, que o apoiara quando da eleição. Lacerda condenava a política externa de Jânio, porque incluía o reconhecimento da Cuba de Fidel Castro. Ao mesmo tempo, queria favores do governo federal para socorrer seu jornal, o Tribuna da Imprensa, em dificuldades financeiras. Tentou obtê-los com uma audiência em Brasília, segundo comentário do jornalista Paulo Markun. A tentativa aumentou o desentendimento, porque depois de algumas conversas entrecortadas por filmes de comédias e faroestes, Jânio deu-lhe um prolongado chá de cadeira, sem recebe-lo. O motivo, ainda segundo Markun, seria a preferência de Jânio, naquele momento, pela companhia de alguma misteriosa beldade feminina que ele cortejava. Despeitado, Lacerda abandonou ambos, o Palácio do Planalto e o presidente. Na noite do já fatídico dia 24 de agosto, Lacerda foi à televisão e fez um discurso inflamado contra Jânio, acusando-o de querer dar um “golpe de gabinete”. No dia seguinte de manhã, Jânio renunciou, depois de ler nos jornais a notícia do pronunciamento de Lacerda. Naquele tempo não havia transmissões nacionais de TV.

Outro fator que atrapalhou o golpe foi a mobilização popular desencadeada pelo Movimento pela Legalidade, que Brizola deflagrara desde o Palácio Piratiní, em Porto Alegre. Os três ministros militares, aparentemente, não contavam com aquelas reações e seu alcance. Tanto não contavam que um dos generais golpistas chegou a telefonar para o governador ordenando-lhe que parasse com aquela “subversão”. “Ninguém vai dar golpe pelo telefone”, foi a resposta. A seguir Brizola bateu o telefone na cara, quer dizer, no ouvido, do general: depoimento de Paulo Schilling, que era assessor de imprensa do governo estadual, a este entrevistador.

Como não houvera conspiração prévia, o empresariado, mesmo o anti-janguista, também foi pego de surpresa. A Igreja idem: o conservador arcebispo de Porto Alegre, D. Vicente Scherer, acabou apoiando Brizola para evitar “derramamento de sangue na capital dos gaúchos”. Brizola requisitara a Rádio Guaíba e enviara um destacamento da Brigada Militar para proteger suas torres de trnsmissão numa das ilhas do Rio Guaíba. Foi o começo da Rede da Legalidade, que espalhou seus pronunciamentos pelos país inteiro, em cadeia com outras rádios ou pelas ondas curtas. Houve até um “Hino da Legalidade”, composto por Paulo Pereio e Lara de Lemos: “Avante, brasileiros, de pé/Unidos pela liberdade/Marchemos todos juntos co’a bandeira/Que prega a lealdade//Protesta contra o tirano/Que prega a traição/Que um povo só será grande/Se for livre sua nação!/ Segundo Pereio, que compôs a música, ele se inspirou na da “Marselhesa”. De todo modo, era vibrante.

Por fim, last but not least, os comandos militares se dividiram. Entre a alta oficialidade com comando de tropa, particularmente no Exército, o número de militares legalistas era alto, e isto foi decisivo para inclinar o comandante do III* Exército, sediado em Porto Alegre, general José Machado Lopes, pela adesão ao movimento de Brizola e o rompimento com os ministros golpistas. Para tanto foi fundamental a atuação dos generais Pery Constant Bevilacqua e Oromar Osório, ambos comandantes de divisões de Infantaria no Rio Grande do Sul, e também do coronel Joaquim Ignacio Baptista Cardoso, no comando da 1a. Brigada de Cavalaria Mecanizada, com sede no município de Santiago, no centro-oeste do estado. O coronel Cardoso e o general Oromar Osório organizaram uma coluna que avançou rapidamente até a divisa entre os estados do Paraná e de São Paulo. Um fator importante para a mobilização dos oficiais legalistas foi um pronunciamento do General Lott em favor da posse de Jango, “pela defesa da Constituição”.

Outra atuação decisiva na frente militar foi a dos sargentos da 5a. Zona Aérea, com sede em Canoas, na Grande Porto Alegre. Nos dias 28 e 29 de agosto os ministros militares deram duas ordens sucessivas ao brigadeiro Aureliano Passos, comandante da base, para que bombardeasse o Palácio Piratiní, silenciando o governador Brizola e a Rede da Legalidade. Segundo depoimentos da época (entre eles o do escritor Oswaldo França Júnior, então piloto da FAB, que entrevistei; foi cassado em 64), os oficiais de voo mostravam-se dispostos a efetuar o ataque. Quem os impediu de realiza-lo foram os sargentos, sabotando os aviões e bloqueando a pista. Na sequência um destacamento do III Exército ocupou a base aérea. O brigadeiro Aureliano Passos e mais alguns oficiais fugiram para São Paulo. Assumiu o comando o tenente-coronel aviador Alfeu de Alcântara Monteiro, legalista, que seria assassinado na própria base em 4 de abril de 1964, logo depois do golpe de 1º. de abril.

Pelo mesmo aparelho de rádio em que eu ouvira a Carta Testamento, ouvi a emocionada e emocionante despedida de Brizola, quando chegou a seu conhecimento a ordem de bombardeio do Palácio Piratini. Dizia que ficava no Palácio até o fim. A senha para o comando da base aérea, interceptada por um rádio-amador, foi “Tudo azul em Cumbica”. Os caças Gloster-Meteor deveriam bombardear a sede do governo estadual, no centro da cidade, e seguir para a base aérea em Guarulhos. Minha mãe pediu que eu fosse fechar as janelas da frente do sobrado onde morávamos, a uns setecentos metros do Palácio. Neste momento assisti cenas que pareciam de algum filme da Segunda Guerra: famílias da vizinhança fugiam, levando malas e até carrocinhas com seus pertences. Naquelas noites fomos dormir na casa de uma amiga da família, distante do centro. Ela era udenista, mas se revoltara com a ordem do bombardeio. O brigadeiro Aureliano era seu parente político, pelo lado de seu ex-marido. Ela telefonou para sua residência, querendo cumprimenta-lo pelo não cumprimento da ordem. Neste momento ela soube – e nós também – que ele fugira para São Paulo.

Outra ordem expedida pelo comando golpista foi para que navios da Marinha, estacionados no cais do porto da capital gaúcha, bombardeassem o Palácio Piratini. Por ordem do general Machado Lopes uma coluna de tanques saiu do Quartel do bairro da Serraria em direção ao centro da cidade. A notícia chegou a provocar grande comoção entre o povo que se concentrava, aos milhares, na Praça da Matriz, em frente ao Palácio. A coluna de blindados dirigiu-se, entretanto, ao cais do porto, postando-se na frente dos navios, impedindo-os de cumprir a ordem. Enquanto isto, Machado Lopes se dirigia de carro para a Praça da Matriz. Ao chegar, a compacta multidão tolheu o passado carro. O general desceu. A multidão começou a cantar o hino nacional. O general cantou junto e anunciou de viva voz que vinha se solidarizar com Brizola. A multidão abriu caminhoneira ele. De minha casa, ouvi o Hino. Um pouco depois, pela janela, vi um carro preto, oficial, que passava pela rua, em alta velocidade, em direção à rua Bento Martins, que levava ao QG do III Exército. No banco de trás, espremido entre duas fardas de cor verde-oliva, reconheci o governador Brizola. Pensei que ia preso. Na verdade, o acordo seria fechado, pela legalidade.

Se o golpe militar fracassou, a crise desembocou numa manobra parlamentar, com o Congresso votando às pressas uma emenda constitucional que instituiu provisoriamente o regime parlamentarista, limitando os poderes de Jango. Ainda assim, quando o vice-presidente se dispôs a voar de Porto Alegre (para onde regressara, vindo da China, via Paris, Nova Iorque e Montevidéu), para Brasília, um contingente de oficiais da FAB dispôs-se a derrubar o avião, na chamada Operação Mosquito. A tentativa também fracassou, porque outros oficiais recusaram-se a cumprir as ordens e porque os militares legalistas, a partir de Porto Alegre, organizaram a chamada Operação Tática, com manobras de despistamento das coordenadas do voo que seguiu para a capital. Chegaram a espalhar falsos boletins meteorológicos, dizendo que um suposto mau tempo fechara os aeroportos no sul do Brasil. Também em outros pontos do país houve atos de insubordinação por parte de sargentos e suboficiais, inclusive na Marinha, opondo-se aos oficiais golpistas. Para completar o quadro, um destacamento do Exército, com comando legalista, ocupou o aeroporto militar de Brasília, garantindo o pouso da aeronave.

Em janeiro de 1963 um plebiscito derrubou a emenda parlamentarista, por 9,5 milhões de votos contra 2 milhões, restabelecendo e regime presidencialista e devolvendo os poderes de João Goulart, antes usurpados.

A palavra-chave desta série de acontecimentos foi “legalidade”. Ela mobilizou conjuntamente civis e militares contra o golpe de estado. Ao mesmo tempo, definiu a força, os contornos e também os limites da resistência democrática pois, quando o Congresso votou a emenda parlamentarista e João Goulart a aceitou, ela impediu que os mais radicais transformassem o movimento popular numa insurreição contra a emenda que limitava os poderes do novo presidente.

João Goulart anunciou sua aceitação da emenda parlamentarista quando estava no Palácio Piratiní, epicentro da Rede da Legalidade. Ao ouvir a notícia, a multidão que se concentrava na Praça da Matriz, em frente ao Palácio, foi tomada de fúria, e começou a gritar palavrões contra o vice-presidente. Temendo por sua segurança, Brizola fê-lo sair pelos fundos, em direção ao local onde se hospedava. Chovia, melancolicamente.

Esse final decepcionante para um dos maiores movimentos de resistência popular na nossa história não abateu os ânimos. Durante o mês de setembro realizaram-se várias comemorações em Porto Alegre, incluindo desfiles militares pelas ruas, celebrando o movimento. Os militares legalistas do III Exército, os da Brigada Militar estadual, os sargentos da Base Aérea de Canoas e o tenente-coronel aviador Alfeu de Alcântara Monteiro foram aclamados como heróis. Este foi nomeado piloto do avião presidencial.

Em Brasília, o coronel Golbery do Couto e Silva renunciou a seu cargo e passou para a reserva com o posto de general de exército (na época a reforma de um militar lhe garantia a promoção para dois postos acima do que ocupava na ativa). Algum tempo depois fundou o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais – IPÊS – logo transformado no principal laboratório do novo golpe que se tramava.

 

Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).

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