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Desmodernização sistêmica e despossessão organizativa | Marcio Pochmann

A desindustrialização em curso desde os anos 1990 trouxe consigo o processo de desmodernização sistêmica no Brasil, cujos efeitos se generalizam por toda a sociedade brasileira.  Com o ingresso passivo e subordinado do Brasil na globalização, o projeto de modernização capitalista iniciado pela Revolução de 1930 foi interrompido.

Desde então, a ruína da antiga sociedade industrial foi acompanhada pelo desmonte de suas principais classes sociais. De um lado, a burguesia manufatureira se metamorfoseou.

Uma parte se converteu em rentista, amante dos juros altos que se mostram fundamentais para a valorização do estoque da riqueza velha acumulada pelo desfazimento das antigas empresas de manufaturas. Outra parte assumiu a perspectiva de comerciante, venerador do câmbio valorizado, estimulante necessário das importações alimentadoras da mera condição de indústrias maquiladoras, de montagem interna do que vem de fora.

De outro lado, temos a transfiguração da classe trabalhadora da manufatura. Enquanto parcela crescente, o trabalhador perdeu o vínculo de assalariado, embora tenha conseguido se manter ocupado como empreendedor de si próprio (pejotização, microempreendedor, contaproprista). Outra parcela teve que buscar sobreviver de bicos, aposentadorias e pensão, entre outras alternativas, diante do esvaziamento do emprego industrial no país.

Pela perda do dinamismo econômico das últimas décadas, o país passou a conviver com intensa população excedente às necessidades da acumulação de capital. O retrocesso na participação brasileira na Divisão Internacional do Trabalho concentrada em produtos primários de contida tecnologia, aumentou a dependência ao neoextrativismo vegetal e mineral e à contenção do custo do trabalho para os negócios.

Nesse contexto geral de esvaziamento da produção e ocupação industrial, o sistema produtivo em declínio se distanciou das novas tecnologias e se aproximou da lógica de valorização financeira da riqueza velha e da acumulação por despossessão. Ou seja, a ocupação privada para a rápida e consequente obtenção lucrativa nos espaços desmercantilizados urbanos de responsabilidade do Estado (privatização de empresas estatais e serviços públicos) e rurais sob domínio de comunidades locais (tradicionais como indígenas, ribeirinhas, de agricultores familiares e outras).

Em função disso, a terciarização da economia ganhou maior expressão, com majoritária localização das ocupações no setor de serviços. Em geral, postos de trabalho precários e instáveis, à margem dos direitos sociais e trabalhistas, dependentes mais da concentração da renda das famílias ricas do que da dinâmica econômica propriamente dita.

Uma espécie de novos agregados sociais se agiganta neste início da terceira década do século 21. As três principais ocupações do terciário brasileiro se configuram pelo exercício do trabalho doméstico, segurança privada e entregadores em plataforma digital.

O novo sujeito social que resulta do inchamento do setor de serviços apresenta singularidades na formação de identidade e pertencimento coletivo. Resulta do esvaziamento da centralidade do trabalho material, até então gerador da identidade e pertencimento à cultura e ação coletiva em torno da cidadania regulada e solidariedade orgânica enraizada por atividades em associação, sindicato e partido político.

Pelo enfraquecimento dos mecanismos de solidariedade orgânica presentes em associações, sindicatos e partidos políticos, temas afeitos à pessoalidade ganharam expressão, propiciados por engajamento espontâneo em organizações temporárias e de natureza horizontalizada.

Em resposta ao enfraquecimento da antiga classe trabalhadora industrial, sindicatos e partidos de base laboral terminaram comprometendo a retórica e o conteúdo abrangentes. Ao se voltarem para nichos de comunidades sociais imaginadas, a reunião em torno das identidades e pertencimentos coletivos debilitaram a força dos projetos comuns e de horizonte com expectativas elevadas.

Em paralelo, sobrevém a emergência das instituições de engajamento das massas tanto sobrantes aos requisitos da estagnação econômica como imersas na acumulação por despossessão. Exemplos disso se encontram em certo tipo de fanatismo religioso a construir solidariedade fundada na moral da prosperidade imediata, assim como nos empreendedores de atividades consideradas ilegais enquanto confrarias auto protetivas de sobrevivência de coletivos sociais.

Ambas as experiências têm significado nacional, parecendo se apoiar em projeto de dominação política, econômica, social e cultural capazes de ofertar prestígio e status cada vez mais ausentes no próprio curso da desmodernização nacional. Pelo avanço da estrutura das ocupações de serviços conformada no Brasil globalizado, as classes sociais se alteraram profundamente, com intensa fragmentação e despossesão das formas organizativas tradicionais.

  • Marcio Pochmann é Economista, professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais da UNICAMP, ex-presidente do IPEA, autor de vários livros e artigos publicados sobre economia social, trabalho e emprego.

Foto: Caroline Ferraz/Sul 21.com.br

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