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Dia do Fogo na Amazônia: acabou a hipocrisia sobre quem puxa o gatilho do desmatamento | Carlos de Guedes

Foto: Jose Cruz/Agência Brasil

Entre os dias 10 e 11 de agosto, assistimos a uma manifestação de apoio ao Presidente da República inusitada e criminosa: para demonstrar que o Brasil é uma nação soberana, e que não precisa da Alemanha e Noruega para proteger a nossa biodiversidade,“donos” de grandes terras realizaram o Dia do Fogo, aumentando a devastação na Amazônia. Essa manifestação gerou um efeito não intencional; comprovou de quem é de fato o dedo no gatilho do desmatamento, e o que acontece quando não há o contrapeso da ação do Estado na região; é, no mínimo, ingenuidade esperar uma ação voluntária de preservação ambiental em espaços de capital em expansão.

Esse episódio também permite encerrar uma narrativa perversa sobre o controle do desmatamento na Amazônia. Por um bom tempo, ruralistas, alguns ambientalistas, membros de órgãos de controle como o Ministério Público e Tribunal de Contas da União, formularam uma pactuação sobre esse desafio.

Vaticinavam por meio da mídia corporativa que o maior responsável pela supressão das florestas seria a reforma agrária e seu órgão executor, o Incra, e pressionavam o próprio Governo Federal nessa linha. As terras indígenas e as Unidades de Conservação seriam as referências de proteção; o capital em expansão teria seu apetite controlado por acordos setoriais e fiscalização; como contrapartida, os mercados internacionais estariam de portas abertas para as commodities agrícolas brasileiras. Nesse tabuleiro amazônico, sobrava, justamente, uma parte para pesar a mão: as áreas de reforma agrária.

O Incra foi o órgão responsável pelo processo de ocupação da Amazônia durante a ditadura militar, e, por isso mesmo, sua ação moldou a região como a conhecemos: estados como Rondônia, por exemplo, podem ser considerados resultado de um “grande assentamento”; no entorno das rodovias federais nasceram centenas de municípios, oriundos de Agrópolis e Rurópolis criadas pelo Incra.

A partir dos anos 2000, no entanto, o Incra e o extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário mudaram o perfil da intervenção agrária na região. A destinação das terras públicas foi priorizada ao invés das desapropriações [1]. Ao mesmo tempo, foram criados projetos ambientalmente diferenciados em vez de projetos convencionais de assentamento. As famílias beneficiadas pela reforma agrária não eram mais deslocadas pela ação do Estado, e sim, retiradas da invisibilidade com a garantia do território onde vivem e usam, ou acolhidas nas mobilizações de luta pela terra, após viverem o desalento de falta de oportunidades de trabalho e renda na região. Experiências de assentamentos sustentáveis [2] surgiram como referência de uma mudança de paradigma do Incra, que buscou associar a convergência entre as agendas de inclusão social, produtiva e ambiental. Entre 2011 e 2015, 37 mil famílias assentadas da região Norte saíram da extrema pobreza, e mais de 28 mil famílias ascenderam acima da linha da pobreza, [3] no mesmo período em que o desmatamento estava controlado.

A dinâmica de pressão sobre a natureza é muito diferente quando comparamos uma ocupação de base familiar, intensiva em trabalho, da exercida pelo capital em expansão. Os órgãos de meio ambiente estaduais estimam que a supressão de 2 a 3 hectares por ano é típica do trabalho familiar. Quando os dados apontam queda no desmatamento como um todo, obviamente, aumenta a participação da atuação familiar, que é residual mas perene. Assim, é possível caracterizar o desmatamento ocorrido nos assentamentos por iniciativas das famílias[4], atacar suas causas e propor alternativas a partir de pactuações específicas [5]. Mas, quando se observam grandes áreas abertas em assentamentos, ou mesmo uma quantidade acima do normal de pequenos desmates, é indício de que agentes externos estão atuando no espaço das famílias assentadas. No entanto, infelizmente, a escolha daqueles agentes da pactuação foi responsabilizar a reforma agrária e o Incra por ação ou omissão, e pressionar o Governo Federal para ser mais duro e dar o exemplo. No Dia do Fogo ficou transparente a essência do processo de desmatamento. Primeiro, ficou nítido, como o fogo, que quem tem o poder de apertar o gatilho, de acelerar ou desacelerar o desmatamento, não vive nos assentamentos, e não é beneficiário da reforma agrária. Segundo, não se deve esperar pela ação voluntária do capital em expansão para cumprimento de acordos que limitam… a sua expansão.

A fragilização do Incra serviu como laboratório para um ataque mais amplo à atuação do Estado, e agora os órgãos ambientais estão sentindo os efeitos de uma estratégia que enfraquece a ação regulatória, e desequilibra a relação que sustentava a própria pactuação. Um acordo desses somente funciona com pesos e contrapesos. E o atual governo já deu provas de que não tem interesse em limitar a ação devastadora.

No momento que voltam à mídia manifestações que apontam o Incra como maior responsável pelo desmatamento na Amazônia, usando como argumento diagnósticos de órgãos de controle[6], pode-se ter certeza de que estamos tratando de uma retórica requentada que, ao fim e ao cabo, contava com aliados e que tinha um único objetivo: proteger o capital em expansão na Amazônia e, de quebra, vilanizar o Incra e a reforma agrária. Agora que rompeu-se a pactuação por parte de quem apertou o gatilho do desmatamento, espera-se que as entidades realmente preocupadas com a situação assumam sua parte de responsabilidade nessa narrativa, e revejam suas posturas antes que tudo saia do controle.

Serve como contribuição ao debate que se pressione o Governo do Brasil a aplicar internamente o Princípio das Responsabilidades Comuns porém Diferenciada, conforme as Capacidades,[7] para tirar o dedo do gatilho de quem é o responsável de fato pelo desmatamento. A insanidade de atear fogo na vegetação nativa é crime. É abuso do direito de propriedade, descumprindo a função ambiental da propriedade preconizada pela Constituição Federal de 1988. Não há regulamentação? Que se aplique o novo Código Florestal[8], pois tal crime gera efeitos negativos sobre toda sociedade. A morte de um casal carbonizado dentro de um assentamento tentando conter o fogo no seu lote é um episódio que fala por si[9]. Também seria necessário que o Incra reassumisse papel de protagonista na estratégia de conservação da Amazônia, sem negligenciar sua cota de responsabilidade, nem a mais e nem a menos. Vamos tratar de vez a questão como ela é: um crime contra a humanidade.

Carlos de Guedes é analista em Reforma e Desenvolvimento Agrário, foi Presidente do Incra entre julho de 2012 e março de 2015. Economista, Mestre em Desenvolvimento Rural pela UFRGS.
Artigo originalmente publicado em Sul21.

Notas

[1] Dados do Incra apontam que a partir de 2003 apenas 10% da área destinada à reforma agrária na Amazônia se deu por meio de “desapropriações” ou “compra e venda” de grandes propriedades. Ver em  Acessado em 17 ago. 2019.

[2] “Assentamentos Sustentáveis” . Acessado em 17 ago. 2019.

[3] “Estratégias de superação da pobreza no brasil e impactos no meio rural.” Acessado em 19 ago. 2019.

[4] “Desmatamento nos Assentamentos da Amazônia – Ipam.”  Acessado em 17 ago. 2019.

[5] “Programa Assentamentos Verdes (PAV) terá participação e controle ….” 9 dez. 2014,  Acessado em 17 ago. 2019.

[6] “Agronegócio vai ao ataque | | Edgar Lisboa.” 16 ago. 2019, Acessado em 17 ago. 2019.

[7] “Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima ….” . Acessado em 17 ago. 2019.

[8] “Lei 12.651, de 2012 – Planalto.” 25 mai. 2012, . Acessado em 17 ago. 2019.

[9] “Casal morre carbonizado dentro de casa em Machadinho D’Oeste ….” 15 ago. 2019,. Acessado em 18 ago. 2019.

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