A questão da autoridade
Friedrich Engels (1820-1895) escreveu “Sobre a Autoridade” (1873). No texto, polemizou com os anarquistas que eram contra o princípio da autoridade porque, esta, implicaria a relação de imposição de uma vontade com a subordinação de outrem. Expressões desagradáveis aos ouvidos treinados na democracia. O sistema capitalista acentuaria a questão, sendo um regime social que “tende a deslocar cada vez mais a ação isolada pela ação combinada dos indivíduos… examinando as condições econômicas, industriais e agrícolas que constituem a base da atual sociedade burguesa”.
Mesmo que uma revolução social houvesse suplantado o capitalismo, cuja vontade dirige o processo produtivo e a circulação da riqueza, a noção de autoridade continuaria a existir. Apenas teria mudado de forma. Engels toma como exemplo a fábrica de fios de algodão, nas operações sucessivas para executar o trabalho. Toda a atividade é regulada. “Pela autoridade do vapor, que zomba da autonomia individual… o que é necessário antes de tudo é que os operários se ponham em acordo sobre as horas de trabalho; a esse horário submetem-se todos sem nenhuma exceção… sob pena de parar toda a produção”.
“O mecanismo automático da grande fábrica é muito mais tirânico do que foram os pequenos capitalistas que empregavam operários… Na porta dessas fábricas se poderia escrever no que se refere ao período de trabalho: Lasciate ogni autonomia, voi che entrate! (Aquele que aqui entrar, ponha de lado toda autonomia!).” Na sequência, Engels mencionou uma ferrovia, e a sincronia de tempo imprescindível para evitar desastres. Admoestou os antiautoritários perguntando-lhes: “Por que não se limitam a clamar contra a autoridade política do Estado?” Haveria acordo nas várias tendências socialistas.
Ao propor que o ato inaugural de uma revolução social seja a abolição da autoridade, os antiautoritários esqueceríam o óbvio: “Uma revolução é a coisa mais autoritária que existe, é o ato através do qual uma parte da população impõe sua vontade à outra parte por meio de fuzis, baionetas e canhões, meios autoritários desde que existem.” Alguns autores relatam que, na guerra civil espanhola que opôs os republicanos aos fascistas, os anarcos realizavam assembleias para determinar a estratégia militar nos campos de batalha. É provável que se trate de uma caricatura, mas ilustra o democratismo arraigado dos bravos militantes perfilados no episódio épico ao lado da democracia.
Crianças, mulheres e idosos
“Onde mais ressalta, a necessidade da autoridade, e de uma autoridade imperiosa, é num barco em alto mar. Ali, no momento de perigo, a vida de cada um depende da obediência instantânea e absoluta de todos à vontade de um só.” Tal se dá não por arbítrio de um comandante atrabiliário. Vem de tempos remotos a lei marítima que determina que, em situações de naufrágio (alegoria de uma ameaça sobre o conjunto da humanidade), os botes salva-vidas sejam utilizados, primeiro, pelas crianças, as mulheres e a terceira idade.
Há uma razão para isso. As crianças acenam com o futuro, as mulheres remetem à possibilidade de a espécie se reproduzir pós-tragédia e, os idosos, têm acumulada a memória de experiências passadas relevantes para a reconstrução social.
A importância da autoridade, no ambiente familiar, foi descrita na obra: “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado” (1884). “Na família tem-se, de um lado, a produção de meios de existência, de produtos alimentícios, habitação e instrumentos necessários; de outro lado, a produção do homem (isto é, do ser humano), a continuação da espécie… A primeira divisão do trabalho é a que se fez entre homem e mulher para a procriação dos filhos.” Sublinhe-se, aqui, a continuação da espécie.
Assim, Engels concebeu a constituição da civilização. Se a autoridade suprema no patriarcalismo pertencia ao homem, com o incremento das lutas por equanimidade, a autoridade tende a ser num crescendo repartida na criação da prole.
Crimes e transgressões
Inevitavelmente, ao refletir sobre autoridade, além da negação ideológica que ocorre no anarquismo, pensamos na sua negação por intermédio de crimes e transgressões. Uma definição clássica de crime encontramos em William Blackstone (1723-1780): “Delitos públicos ou crimes e contravenções são uma infração e violação dos direitos e deveres públicos devidos a toda a comunidade, em sua condição social coletiva” (Dicionário do Pensamento Social do Século XX, 1996). Repita-se: em sua condição social coletiva, ou seja, naquilo que atinge a substância (a mente e o coração) da sociedade.
Nas sociedades chamadas primitivas, ágrafas, um crime seria uma contrariedade aos hábitos e costumes. O Antigo Egito possuía a escrita, mas não empregava-a para redigir as leis penais. Acreditava que a legislação tolheria o faraó da liberdade de declarar sua vontade. Na República Popular da China, na Alemanha nazista e na Rússia soviética um delito com frequência correspondia ao que as autoridades quisessem que fosse. Considerava-se crime o ato punível pelo Estado. Quem pensou na fase áurea e seletiva da Lava Jato, acertou em cheio. Se for um juiz ou um procurador, precisa rever os conceitos fascistas.
Na Inglaterra, onde transbordam leis do Código Penal: “Se tornou difícil discernir um princípio coerente, subjacente à definição ou aplicação das ideias de crime. Existem ‘crimes’ que não se amoldam a nenhuma noção convencional do que seja um criminoso.” (Ibidem, verbete “Crime”). Tornou-se complicado então classificar The Beatles ao tocarem, sem aviso ou autorização prévia, no famoso terraço de um edifício londrino.
Era uma transgressão não criminalizável contra o bem-estar público, com desconforto social? Ou era uma contravenção passível de ser enquadrada em um crime? O que alegou a polícia ao interromper o concerto? Não gostava de rock, guitarras elétricas, bateria, jovens de cabelos longos? Incomodava a sesta da rainha no Palácio de Buckingham?
O conceito elástico de deviance
Afora a confusão conceitual, a criminalidade já incorporou-se em muitas áreas da sociedade, ao aceitar condutas para levar vantagem (o conto do bilhete em que a vítima procura se aproveitar da ingenuidade de alguém, e cai numa armadilha), nos pequenos subornos (pecúnia para o garçom conseguir uma mesa no restaurante lotado), na compra de objetos furtados de baixo valor (um ingresso para a partida de futebol)…
Sem falar nos delitos sem vítimas (drogas, prostituição, jogo, etc), mostrando o vasto poderio adquirido hoje pelo Estado para designar o que é um crime.
As transgressões (o topless nas praias brasileiras, andar sem máscara ou promover aglomerações em uma pandemia) foram encaixotadas no campo comportamental do desvio (deviance). Um vocábulo denotativo (errado!) e conotativo (imoral!) para censurar violações de regras sociais. A criminologia e a psiquiatria abusaram do elástico significado de deviance, que vai de birutas a pervertidos, passando por irresponsáveis.
Nos Estados de exceção, desvios suscitavam outro tratamento. Opositores da ditadura militar foram tidos por desviantes na década de 60, na América Latina. Nem sempre tratados como casos leves. Amiúde tornados vítimas de desaparecimentos ou torturas.
Utilidade e necessidade do Mal
Émile Durkheim (1858-1917), primeiro professor de Sociologia da França e fundador da L’Année Sociologique, pensou crimes e transgressões a partir de três valores: a vida, a propriedade e a honra. Diga-se de passagem, o Supremo Tribunal Federal (STF), do Brasil, firmou entendimento de que “a tese de legítima defesa da honra é inconstitucional, por violar os dispositivos constitucionais da dignidade da pessoa, da proteção à vida e da igualdade de gênero ” (15/03/2021). A tese ainda era esgrimada, na contemporaneidade, em crimes de feminicídio. E garantia aos autores procrastinação nos tribunais.
O que atentasse contra os valores da existência da pessoa e seus bens era crime. A diferença é que, para Durkheim, os fenômenos criminais ou transgressores deviam ser encarados – sociologicamente – como normais (parte integrante das sociedades) e até úteis e necessários (por acionarem a coesão social e a solidariedade entre os indivíduos) na condenação dos que desrespeitam as normas sociais. Afinal, “os danos causados à sociedade podem ser cancelados pela sentença, se ela funciona de forma consistente”.
A sentença tem sentido social. Individualmente, o malefício à vítima e ao entorno pode ser irreversível. O errado e imoral interviriam qual fatores de estímulo à saúde pública, contrariando o juízo dos criminólogos (Les Régles de la Méthode Sociologique, 1895).
Fatores de saúde pública por despertarem o desejo de repressão aos delitos e de proteção à sociedade. Na falta da repressão, da coesão e da solidariedade, a coletividade descambaria para o egoísmo e o individualismo, antesala da anomia social que aumentaria o número de ações fora dos padrões. Na teoria durkheimiana o ofício do sociólogo teria por núcleo articulador a visão holística para a compreensão da dinâmica in toto. Caberia aos investigadores da alma da sociedade estudá-la com a preocupação filogenética (centrada na evolução da espécie), não ontogenética (centrada na evolução do indivíduo).
Isabella, Rafael, Henry – Presentes!
Está na memória de todos a comoção social provocada pelas maldades, com ampla cobertura dos meios de comunicação, que envolveram: Isabella, 5 anos, asfixiada e arremessada do quinto andar (SP, 29/03/2008); Rafael, 11 anos, assassinado por estrangulamento (RS, 15/05/2020); Henry, 4 anos, morto por espancamento (RJ, 08/03/2021). Nos tristes e revoltantes episódios, as autoridades com a obrigação legal e afetiva de cuidados no zelo da infância assumiram os papéis de algozes.
Cabia às autoridades encarregadas da tutela desenvolver, nas vulneráveis criaturas, o amor por ambos os gêneros por intermédio da identificação com as figuras paterna e materna. Mas o que fizeram as malévolas autoridades foi conduzi-las à morte, sem apelação. Atiraram ódios à substância humanizadora da sociedade. A covardia sangrou “a condição social coletiva”, denotando de modo literal uma inumanidade e conotando de modo figurado a barbárie dos leões, ao comerem os próprios filhotes. Um horror.
Os tutores, que moravam sob o mesmo teto das sofridas vítimas, foram os responsáveis diretos pelas violências que horrorizaram a comunidade nacional e internacional. Os crimes impetrados com frieza emocional exprimiram, simbolicamente, um ataque frontal à espécie humana. Crianças, mulheres e idosos merecem profunda consideração, conforme era do conhecimento dos marinheiros que navegavam pelos oceanos, em priscas épocas.
Os gregos dispunham de três palavras para distinguir três tipos de amores:
a) Eros, nome do cupido na mitologia antiga, caracterizava-se pelo romance, a paixão e o desejo, associados ao prazer, à atração física e ao sexo;
b) Philia, que significa amizade, abrangia a lealdade, a família e a comunidade. Relacionava-se com o bem que os indivíduos praticavam junto aos semelhantes. Aristóteles ilustrou o sentimento: “O que tece a verdadeira amizade são as gentilezas realizadas de maneira espontânea e não proclamadas por quem as fez” e;
c) Ágape, que remonta ao amor por todos os seres, implica uma conexão com a natureza, a humanidade e o universo. Impossível não lembrar de São Francisco.
Isabella, Rafael e Henry não tiveram direito às modalidades de amor descritas acima. Não tiveram a chance de viver um romance, não desfrutaram da amizade no lar (l’enfer, infierno, inferno, hell), não contaram com a lealdade dos mais próximos, “que não souberam distinguir entre sua mão direita e a sua mão esquerda” (Jonas 4:11). Em lugar de gentilezas, receberam a brutalidade que doeu na sociedade como um punhal. “Non videmus manticae quod in tergo est (Não podemos ver a carga que carregamos nas costas)”.
Batendo em quatro mil óbitos diários por causa da incompetência, da incúria e do premeditado genocídio do povo brasileiro, por parte do desgoverno Bolsonaro/Mourão, era para estarmos acostumados dada a infindável dor com as perdas. Não estamos. Não naturalizamos o sofrimento. O morticínio integra uma lógica histórico-política, ao invés de obedecer a um desdobramento da natureza. Os passamentos brutais das crianças lembradas vertem lágrimas nos sobreviventes aos petardos de monstruosidade, disparados contra a continuação da espécie e da civilização. Os crimes em tela, sem confusão conceitual, condensam o Mal que recai em todos e todas nos dias atuais. As digressões são uma homenagem à menina e aos meninos que as barbáries tombaram covardemente.
- Luiz Marques é professor de Ciência Política, UFRGS
Imagem de S. Hermann & F. Richter por Pixabay
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