Por Dr. Rosinha, publicado originalmente no Viomundo
Uns dizem que a terra é pública, do Estado. Um fazendeiro diz que a terra é dele, mas não apresenta prova convincente. Esta mesma área é ocupada por alguns trabalhadores rurais, menos de uma centena de famílias.
Um juiz dá uma ordem de despejo. Acusa-se o fazendeiro de ter infiltrado, entre os trabalhadores, homens fortemente armados. Policiais, também armados, chegam para cumprir a ordem de despejo dada pelo juiz, ligado ao partido de oposição ao governo e sobre quem há suspeita de que tenha sido corrompido.
Durante a execução da ordem, ocorre um conflito. Nele, morrem 17 pessoas, sete ou oito policiais e nove ou dez campesinos. Pelo menos outras 50 pessoas saem feridas. Os números não são precisos, dependem da fonte. Este é um breve relato do sangrento conflito agrário ocorrido no último dia 15 em Canindeyú, região Noroeste do Paraguai, fronteira com o Brasil.
Dirigente do Movimento dos Campesinos, José Rodríguez afirma o seguinte: “As famílias estabelecidas na fazenda só resistiram ao despejo e não foram as culpadas dos disparos contra a polícia”. Chega a afirmar também que “pudo haber sido un autoatentado de la policía” [“Desalojo, sangre y fuego en Paraguay”, Página 12, 16/06/2012], para justificar as mortes dos sem-terra. Se isto for verdade, mostra do que são capazes a polícia corrupta e os que se dizem donos de grandes extensões de terra no Paraguai, inclusive alguns brasileiros.
Quem afirma que a terra lhe pertence é o empresário e fazendeiro Blas Riquelme, ex-senador do Partido Colorado, de oposição ao governo Lugo. Riquelme afirma que comprou a terra do Estado durante a ditadura do general Alfredo Stroessner (1954-1989). Militantes pela reforma agrária afirmam que a terra é pública, e que o ex-senador foi favorecido pelo ditador que lhe concedeu a área.
A partir destes fatos, a oposição, entre os quais o Partido Colorado (partido do fazendeiro e do juiz) e a Unión Nacional de Ciudadanos Éticos (ironia no próprio nome), partido dos oviedistas (seguidores de Lino Oviedo), com apoio do Partido Liberal Radical Autêntico, a que pertence o vice-presidente, passam a responsabilizar o presidente Fernando Lugo pelas mortes.
Quarta feira, 20 de junho: Lugo anuncia a criação de uma comissão especial para investigar a razão da violência e as causas das mortes. Antes, porém, no dia 16, o presidente já havia aceitado, como exigia a oposição, a renúncia do seu ministro do Interior, Carlos Filizzola, e de seu chefe de Polícia. Não foi suficiente, pois a oposição quer o golpe. Um golpe com cara de legalidade, semelhante àquele que ocorreu em Honduras, há exatos três anos, em junho de 2009.
A comissão especial não começou a trabalhar. Mas seu trabalho não interessava a oposição, pois esta trabalha com versões e não com fatos. E as versões continuam: alguns afirmam que os campesinos emboscaram os policiais. Outros culpam a polícia. O que menos importa para a oposição é apurar como tudo ocorreu. Apurar a verdade.
A ela importa a versão do fato e, a partir daí, punir o ‘culpado’ (Fernando Lugo). Culpado não pelo trágico fato, mas o culpado identificado pela versão que a oposição criou.
O conflito ocorreu no dia 15, e já no dia seguinte começou a ser veiculado publicamente que a oposição tentaria um impeachment, batizado pela própria oposição de “juicio político” de Lugo. A oposição utilizou o conflito com o objetivo de criar a condição para o “juicio político” do presidente.
Sobre este “juicio”, o ministro do Interior (agora ex), Carlos Filizzola, afirmou que “no existen ni pies ni cabezas, ni argumento alguno” [“Desalojo, sangre y fuego en Paraguay”, Página 12, 16/06/2012] para solicitar o “juicio” político de Lugo como pediu o presidente da Unión de Gremios de la Producción (a UDR do Paraguai, onde se aglutinam os “ruralistas”, brasileiros ou não, daquele país), Héctor Cristaldo. Já no dia seguinte ao conflito, foi pedido o impeachment.
A questão da terra no Paraguai é um dos mais complexos problemas. Os grandes proprietários são acusados, com algumas exceções, de apoderarem-se da terra através de métodos ilegais, como, por exemplo, favorecimento do ditador Stroessner. O ditador expropriava a terra de seus adversários e dava a seus correligionários do Partido Colorado. E nesta questionada situação está a terra de Blas Riquelme.
O empresário, fazendeiro e ex-senador do Partido Colorado é conhecido pela riqueza e por várias frases célebres, tais como: “o sujeito lavou as mãos como Pitágoras”, ou “a la oposición nada le gusta, nada le conforma, son como el perro de Don Ortellado, no comen ni dejan comer” [‘Político, empresário e dirigente’, Pagina12, 16/6/2012). Porém, agora, a oposição, da qual faz parte Riquelme, soltou todos seus ferozes cães contra Lugo e, mais uma vez, contra o povo paraguaio.
Riquelme também foi denunciado por suposta fraude eleitoral nas eleições internas do Partido Colorado, realizadas em 27 de dezembro de 1992 (repare a data: 27 de dezembro, entre natal e ano novo). Também foi presidente do Cerro Porteño entre 1972 e 1974 e é hoje um dos homens mais ricos do Paraguai.
No final da tarde do dia 21 (quinta-feira), depois de o impeachment ter sido já aprovado (73 votos a favor e um contra) pelos deputados, sem sequer direito de defesa, fiquei ouvindo uma rádio (não me recordo o nome), via internet, de Assunção.
Ouvi de alguns parlamentares paraguaios algumas pérolas, se não da qualidade das de Blas Riquelme, muito próximas. Como a audição não estava perfeita, não consegui anotar os nomes, mas parte do que afirmavam.
Um parlamentar justificava que não era um golpe de Estado, que não é a ruptura de um processo democrático, pois há “um vice democraticamente eleito”. Outro, na eminência da cassação, dizia que Lugo não quer “renunciar porque não quer soltar a mamadeira”.
Um terceiro argumentava que a renúncia seria importante para “descomprimir a situação”. Já um quarto, abusando da condição de o presidente ser um ex-bispo, pedia a Deus para que iluminasse a “Lugo pela primeira vez”.
Estes parlamentares não apresentaram, enquanto ouvi, nenhum argumento sério que justificasse o impeachment de Lugo. Era quase que o pedido de “pelo amor de Deus”, renuncie. Tive a impressão de que eles queriam lavar as mãos (Riquelme deve responder se como Pilatos ou como Pitágoras) para não cometer uma injustiça, mais um ato contra a democracia, contra o Estado de Direito.
Quando o pedido de “juicio” político chegou ao Senado, as cartas já estavam dadas e marcadas, tanto que o senador e presidente do Congresso Nacional paraguaio, Jorge Oviedo Matto, eleito pelo Unase, partido fundado pelo General golpista Lino Oviedo, acusou o presidente Lugo de ser cúmplice das mortes no conflito de Camendiyú:
“Acá no hay que hablar de jefe de policía ni de ministro, acá el presidente Lugo es el responsable de la seguridad interna, las fuerzas del orden están a su cargo. Esto no puede seguir así”, enfatizó. Ante la posibilidad de que los autores del asesinato de los policías fueran miembros del grupo denominado Ejército del Pueblo Paraguayo (EPP), indicó que el mismo hace tiempo debía haber sido eliminado por las fuerzas de seguridad, de existir voluntad para ello (“El congreso amenaza a Lugo”, Página 12, 16/06/2012).
Sabem os paraguaios que o EPP é mais ficção e versão que fato.
As declarações do senador Oviedo, horas depois do conflito, mostra a predisposição da oposição: não apurar os fatos, mas trabalhar com uma versão.
Em declaração a Dario Pignotto (“Paraguai: fazendeiros estariam por trás da morte de camponeses”, Agência Carta Maior, 17/6/2012), Damasio Quiroga, secretário geral do Movimento Campesino Paraguaio, declarou:
“O que aconteceu foi uma matança contra nossos companheiros, muitas mentiras estão sendo ditas para prejudicar o que a gente disse dos camponeses que estão lutando por terra para trabalhar, que estão lutando pelo direito à reforma agrária. Confirmo que, até esse momento, são 12 os companheiros que foram assassinados […] Também ficamos sabendo que alguns foram executados depois de terem sido presos”.
Versões continuaram desde o conflito até o dia do impeachment. A oposição canta vitória, no entanto, não se sabe como exatamente ocorreram os fatos. Não se conhece a verdade. Foi conflito ou enfrentamento? Quantas pessoas participaram? Quantas eram? Quantos foram os feridos? Havia capangas infiltrados? Houve execução? Houve autoatentado? Nada disso interessa para a oposição. A ela não importa o fato, mas sim a versão. Usando a versão, cassaram um presidente. Deram um golpe (branco) de Estado.
Fernando Lugo foi eleito presidente do Paraguai em 2008 quebrando uma hegemonia de 35 anos do Partido Colorado. Tomou posse em 15 de agosto de 2008 para um mandato de cinco anos, até agosto de 2013. Foi o primeiro governo, desde o fim da ditadura, sem vínculos com o ditador Stroessner.
Nunca foi tolerado pelo Partido Colorado, pelo Unase e tampouco pelo PLRA (Partido Liberal Radical Autentico), este último, seu “aliado”.
Todos no Paraguai sabem que a polícia, o exército e todo o aparato estatal do Paraguai sempre foi instrumento dos ricos empresários, fazendeiros e da elite política.
Lugo não teve apoio do Congresso paraguaio para desbaratar este aparato estatal. Consequência: mais uma vez, não apenas Lugo, mas o povo paraguaio é vítima deste Estado.
Dr. Rosinha é deputado-federal (PT-PR), vice-presidente brasileiro do Parlamento do Mercosul e membro da Coordenação Nacional da DS.
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