Você deve ficar espantado quando lê nos jornais e revistas os valores dos contratos milionários dos jogadores de futebol ou artistas de cinema. É para ficar mesmo. Ainda mais porque, na maioria desses casos, enquanto você rala para pagar um ingresso, eles arrumam um jeito de não pagar impostos e de receber a grana em paraísos fiscais.
Mesmo assim, guarde seu espanto para coisa melhor. Veja o quadro abaixo, que traduzi e adaptei do livro de Les Leopold – How to Make a Million Dollars an Hour.
Atenção à lista. Os números são de 2010, um ano depois da grande quebra do mercado financeiro. O mercado pode ter quebrado, mas os banqueiros, não. Pelo contrário. Pegaram o dinheiro que Obama lhes deu “para salvar o país de uma crise sistêmica” e aumentaram seus bônus e prêmios.
Repare na comparação com a última linha da tabela, aquela que informa quanto tem de renda anual a família média americana.
Ainda outra coisa a observar. Na maior parte desses casos, você tem uma ideia do que os caras fazem. Que tipo de “produto” eles entregam, digamos assim. Mesmo para os presidentes de SAs como a General Electric, a Ford, a GM – administram a produção de máquinas e automóveis. Os artistas “entregam” shows, gravações, filmes. E assim por diante. O mistério é que tipo de “mercadoria” entregam os gestores de Fundos de Hedge, as organizações que vivem de pura especulação com papéis. O produto é mais sutil e menos palpável.
Já faz uns 30 anos que Robert Reich tinha dito que o capitalismo americano deixara de ser um capitalismo “de coisas” para virar um “capitalismo de papel”. Está na moda falar na internet das coisas, algo que está revolucionando a vida diária. Mas a internet dos “fluxos” já revirou o mundo muito antes.
E são esses “guys” que financiam as campanhas e mandam no presidente, no congresso, nos juízes. Mandam até nos emissários de Deus – por isso nem adianta você reclamar com o bispo.
Um dos traços interessantes que ele mostra é o perfil da “nova geração da riqueza”. Antes de 1980, diz ele, a maior parte dos cidadãos riquistanenses vinha de áreas como o petróleo, a indústria química, o aço, o setor imobiliário e a produção e venda de commodities. No final daquela década, porém, emergia o novo grupo dos Wall Streeters (habitantes de um determinado condado do Riquistão, no sul de Manhattan). Com a nova safra, houve um salto. O número de milionários (em dólar) triplicou naquela década. E o número de bilionários pulou de 13 para 67.
Censo do Riquistão. Seus estratos e tipos
Examinando essas camadas do novo país, Frank distingue três estratos:
Baixo Richistan – Com sete milhões de famílias, reúne os “bem-educados”, executivos das corporações e bancos, altos profissionais da medicina ou do direito, designers, analistas, etc. Habitam o país dos ricos, mas seu sucesso recém-construído os deixa com uma incômoda e persistente sensação de insegurança. Alguns riquistanenses dizem que o baixo Riquistão nem pertence de fato ao país. Talvez faça parte da mobília.
Médio Richistan – Aqueles riquistanenses com ativos entre US$10 milhões e US$100 mihões”. São mais ou menos 1,4 milhões de nababos, empreendedores, proprietários de empresas. Esta camada costuma ser mais “liberal” do que os do baixo Richistan. Isto é, mais inclinados para o Partido Democrata.
Alto Richistan – A camada de ativos superiores a US$100 milhões. São alguns milhares. Para gerir sua riqueza e mesmo sua vida pessoal, palácios, iates e ilhas, constituem “escritórios da família” – empresas de razoável tamanho apenas para cuidar do seu cotidiano. Dentro desse condado há uma aldeia ainda mais seletiva. Billionaireville, que em 1985 tinha menos de vinte habitantes, tem hoje mil bilionários (só nos EUA), pelo menos aqueles que são localizáveis pelo nosso radar.
Quanto ao perfil e trajetória, Frank distingue cinco categorias de Riquistanenses:
1. Fundadores – De Bill Gates (Microsoft) e Sheldon Adelson (rei dos cassinos) a Larry Ellison (Oracle Corporation) e Michael Dell (Dell Computers).
2. Stakeholders – São os executivos (não-fundadores) que possuem participação societária forte (sobretudo stock options) em uma companhia privada (não SA) e, assim, podem transformar isso em cash quando ela é publicamente negociada, em bolsa.
3. Os “Comprados” – Empreendedores ou altos executivos que venderam suas firmas para outra companhia ou comprador e assim se abarrotaram de cash, títulos e aplicações. Com isso, vivem a vida, promovendo pilantropia ou orgias, a depender do momento.
4. Os movimentadores de dinheiro – Dirigem e investem estes enormes caudais de grana e recolhem uma parte para eles próprios. Os bancos de Wall Street pagaram mais de US$36 bilhões em bônus em 2006. Goldman Sachs, sozinha, despejou US $16 bilhões para seus empregados top. Os administradores de Fundos de Hedge agora fazem com que os dirigentes de bancos de investimentos pareçam gente de classe média (algo lá do Middle Richistan). Os três principais managers de fundos desse tipo abocanharam mais de US$ 1 bi em 2004, mostra Frank. Cada um dos 25 do topo fez mais de US$ $130 milhões em 2004.
5. Os Assalariados Ricos – O pagamento dos CEOs Americanos saltou para mais de 170 vezes o pagamento médio dos trabalhadores do país. A proporção, nos anos 1970, era de 40 por 1.
Há uma camada (até o terceiro escalão das corporações) que entra ou tende a entrar nesse campo. Há perto de 5 mil managers que receberam mais de US$ 2 milhões no ano de 2006, em cash, bônus e/ou stock options, títulos e ações.
Eles manuseiam as regras, mas não se misturam
Na certidão de nascimento e no passaporte consta alguma nacionalidade. E os riquistanenses sabem modelar as leis e normas dos países. Mas eles têm uma “pátria” própria.
A emergência do Riquistão é um fenômeno geológico relevante. E uma transformação qualitativa. Mudou fundamentalmente o modo como as pessoas ficam ricas – não mais de modo “incremental”, mas repentinamente. É o mundo dos Instapreneurs, o empreendedor a jato. Sua meta principal não é “construir um negócio para gerações”. É elaborar uma “estratégia de saída”, a mais rápida e ampla loteria ou coleta. Fazer “seu negócio”, pegar a grana rapidamente e sair logo, deixando aos que ficam o trabalho de limpar a sujeira que eventualmente restar.
Isso tudo não se produz puramente pelas “forças do mercado”, Essas forças do “livre mercado” precisam ser engendradas, alimentadas e dirigidas pela atuação política, pelo Estado. Programas de privatização e desregulamentação, por exemplo, inflaram numerosas fortunas pessoais. E as politicas tributárias e contábeis cuidaram de mantê-las a salvo do fisco. Riquistanenses empregam parte de sua renda para comprar as normas. Como diz a anedota, eles não reclamam dos senadores, compram os seus.
Os riquistanenses vivem entre si. E seus rebentos idem, vivem cercados de outros riquistanis, neles se espelham, com eles competem. Insulados o mais que podem, numa bolha de opulência, em palácios, iates ou escolas fechadas. Uma anedota (real) conta a estória de uma filha de magnata que crescera, literalmente, dentro do jatinho privado da família. Quando fez 11 anos, como presente de aniversário ela pediu uma viagem em voo comercial. Queria experimentar essa coisa de que tinha ouvido falar.
As times goes by, os ricaços tendem a criar uma cultura própria. Não é mais a “cultura americana”, por exemplo. Os americanos espalharam o american way of life. Mas não é isso que ocorre com os riquistanenses. Eles frequentam os mesmos hotéis (como o Four Seasons, os Ritz Carltons), dirigem os mesmos carros (Bentleys, Rolls), comem as mesmas comidas (sushi fusion), usam mesmos apetrechos e roupas (Gucci, Vuitton, Franck Muller) e vão para os mesmos recantos de férias (St. Bart’s, Monaco, Maldives), embora vivam, é verdade, em férias permanentes nos mesmos tipos de palácios, jatinhos e iates.
Os ricaços se desligam do local. São cidadãos “globais”. Os americanos “comuns”, franceses (ou brasileiros) não são seus compatriotas. São “outras pessoas”, se pessoas.
Você lembra de Metrópolis, o filme de Fritz Lang, de 1926? Não está pintando esse clima?
Por Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes – professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.
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