O prefeito Sebastião Melo (MDB) em artigo assinado na ZH (28/07/2023) foi taxativo: “Desestatizar a Carris é Preciso”. Os argumentos apresentados no texto, no entanto, não possuem a mesma consistência. Ou são generalidades sem nenhuma base histórica real, “o sistema de ônibus já estava falido antes e consolidou o desequilíbrio na pandemia”, ou a ladainha ideológica neoliberal de que “não é mais papel da prefeitura ter empresas”.
Afinal, de quem é a crise? Da Carris ou do sistema? Como fiscalizar e saber a real situação do conjunto, se o outro governo do MDB, do Prefeito Fogaça, entregou para o consórcio das empresas privadas o controle da bilhetagem e da caixa de compensação entre as empresas? Os governos Fogaça (MDB) e Melo (MDB) esvaziaram a EPTC e uma de suas principais funções, o efetivo controle financeiro do sistema.
Qual a fonte do prefeito Melo (MDB) para afirmar que outra razão para “desestatizar a Carris – que custa 20% a mais do que a operação privada e pesa na tarifa do cidadão?” Para a Carris, basta ser superavitária, ter capacidade própria de investimento, ter equilíbrio orçamentário etc., diferente das empresas privadas, que além disso colocam em suas planilhas taxas de retorno, ou seja, seus lucros. O argumento do prefeito Melo (MDB) é uma declaração de incompetência, pois apenas demonstra a péssima gestão dos diretores que coloca na empresa.
Em seus 150 anos de existência, a Carris viveu grandes transformações. O sistema radial convergindo ao centro histórico construiu o primeiro grande sistema de transporte coletivo da capital e influiu no crescimento urbano dos bairros servidos pelas grandes avenidas radiais. Sua maior crise foi no regime militar e dos prefeitos nomeados quando a malha ferroviária elétrica foi abandonada pelo transporte rodoviário e as linhas tradicionais e mais rentáveis entregues a mais de uma dezena de empresas. Para a Carris sobraram as linhas menos rentáveis, mais difíceis e mais distantes, mas a empresa sobreviveu e continuou cumprindo seu papel no transporte coletivo da capital.
Nos governos da Administração Popular a empresa recuperou o fôlego e com gestões capazes, passou a cumprir um novo papel, principalmente, com o crescente sistema
transversal das linhas T. Estas passaram a prestar um serviço complementar ao sistema radial, que já não dava conta do novo perfil do crescimento urbano, permitindo a ligação entre bairros sem passar pelo centro histórico.
Como vice-prefeito (1993/96) e prefeito (1997/2000) de Porto Alegre acompanhei de perto esses processos e sou testemunha da transformação da empresa em excelência de gestão e resultados, graças aos seus diretores e funcionários. A Carris aprofunda seu planejamento, adota modernos sistemas de gerenciamento e qualidade e inscreve se no crivo do Prêmio de Qualidade da Associação Nacional de Transporte Público (ANTP). Decide, também, obter certificado internacional de qualidade baseado nas normas do ISO 9000 e, no ano seguinte, a ISO 9002.
Em 1999, a Carris conquista o Prêmio de Melhor Empresa de Transporte Coletivo do Brasil (Prêmio ANTP) concorrendo com empresas públicas e privadas. Em 2001, novamente, a Carris é reconhecida pelo mesmo certame como a melhor empresa de transporte coletivo do país. A empresa estabeleceu uma sólida relação com seus funcionários através do mecanismo de formação profissional e na relação com a cidade, como o Conselho de Clientes, que envolvia a participação das macrorregiões e temática do Orçamento Participativo, grandes usuários como PUCRS e UFRGS e a União das Associações de Moradores de Porto Alegre (UAMPA).
Essa empresa pública que foi a primeira a operar com ônibus adaptados para acessibilidade de pessoas com deficiências, que dotou o transporte coletivo com ar condicionado e estabeleceu uma relação direta com os seus usuários – na disponibilidade dos boletins informativos da prefeitura, nas campanhas de saúde e na difusão da cultura com os Poemas nos Ônibus – apresentava números sólidos na virada do século. A frota possuía 285 ônibus, 1650 funcionários, atuando em 21 linhas na cidade, com idade média da frota em 3,8 anos, 21,4% do transporte coletivo da capital e mais de 71 milhões de passageiros transportados no ano de 1999.
A Carris e seus funcionários provaram que são uma empresa viável e necessária a qualquer administração pública comprometida com a população. É o melhor parâmetro, a melhor referência para um efetivo controle de custos das planilhas de referência para o preço do bilhete ao usuário. Se a crise é do sistema, como diz o prefeito Melo, o que justifica transferências e subsídios às empresas privadas? Nada melhor do que transformar todo o sistema em público e transparente, e aí sustentá-lo com tarifas e recursos de outras fontes públicas, democraticamente decididas.
Os últimos governos neoliberais, ditos “inovadores”, não deram continuidade a nenhum projeto para enfrentar a crise ou apresentar alternativas. Não tomaram iniciativas para enfrentar a irracionalidade do transporte metropolitano, nem levaram a cabo o projeto Terminal Triângulo, feito para essa integração naquele eixo de transporte.
O Governo subsidia o transporte sem ter controle de custos e não cobra nenhuma contrapartida, por exemplo, em relação ao uso de ônibus elétricos ou integração tarifária de duas ou mais viagens com o mesmo bilhete. O Governo atual só sabe flexibilizar idade da frota, não exigir ar-condicionado, extinguir o cobrador (fraudando a desoneração da folha para manter emprego), não fiscalizando número de ônibus e tabelas de horário, não regrando o uso de aplicativos, privatizando os estacionamentos públicos rotativos. Ou seja, não gera recursos nem fiscaliza para qualificar o transporte coletivo e quer que o usuário não o abandone. Isso é tão ilusório como esperar que as iniciativas e melhorias atrativas na frota brotem de quem raciocina apenas em diminuir custos e maximizar ganhos.
Por fim, mais uma lembrança, o Plano Diretor de Transporte de Porto Alegre do início do século previa que, em 2020, já estaríamos desfrutando de veículos leves sobre trilhos (VLT) ou ônibus elétricos, aproveitando a malha que a cidade preservou e ampliou com as Perimetrais. Esse é o caminho que o futuro exige.
Raul Pont
Ex-prefeito de Porto Alegre
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