Notícias
Home / Temas / Classes Trabalhadoras / Entrevista: A sociedade da sobrevivência, da emergência

Entrevista: A sociedade da sobrevivência, da emergência

Via Teoria e Debate

                           Reprodução – RBA

Nesta entrevista, o economista Marcio Pochmann fala sobre as transformações pelas quais passa o mundo do trabalho, com a era digital, na qual os países estão divididos entre os que produzem bens e serviços digitais e os que os consomem. Nesse cenário, em que o Brasil se encontra como um grande importador desses bens e serviços, segundo o economista, a reversão das atuais condições precárias de trabalho será possível caso seja “estabelecido um outro horizonte de expansão da produção, olhando justamente na disputa em torno das novas tecnologias, bem com uma nova CLT digital”.

Para ele a ideia de futuro parece que foi sendo desconstituída, estrategicamente pela elite do país, o que acaba com o sonho e a utopia. “As pessoas estão sem visão de futuro e circunscritas basicamente a sua sobrevivência”.

Pochmann é professor da UFABC e da Unicamp e presidente do Instituto Lula. Foi presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e da Fundação Perseu Abramo (FPA), além de secretário municipal do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade de São Paulo. Autor de Neocolonialismo à Espreita: mudanças estruturais na sociedade brasileira (Editora Sesc) e de A Grande Desistência Histórica e o Fim da Sociedade Industrial (Editora Ideias & Letras), entre mais de sessenta livros publicados.

Para essa conversa com Pochmann, convidamos Artur Henrique, diretor da Fundação Perseu Abramo e ex-presidente da CUT; Marilane Teixeira, doutora em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp e mestre em Economia Política pela PUC-SP, é pesquisadora no programa de pós-graduação do Cesit-IE-Unicamp; e Matheus Tancredo Toledo, cientista político com mestrado pela PUC-SP e analista do Núcleo de Opinião Pública e Pesquisas e Estudos (Noppe/FPA)

Artur Henrique: Cada vez mais presentes nas análises está a constatação de as políticas públicas neoliberais fracassaram e a desigualdade e a miséria da população aumentaram, situação agravada pela pandemia, mas que já vinha de um quadro de desigualdade de renda, gênero e raça. Gostaria de ouvi-lo sobre esse cenário, mas principalmente sobre o fato de que enquanto no mundo há um debate, por exemplo, sobre a importância de criar ou recriar à luz das novas tecnologias a regulação do trabalho, alguns países discutem até a redução de jornada, no Brasil isso passa longe pois falta trabalho e emprego…

Marcio Pochmann: Tenho a impressão de que estamos contaminados por um diagnóstico constituído desde a virada dos anos 1960 para os 1970, de um debate que é muito ocidental. Desde a visão que está relacionada à perda de centralidade do trabalho, a discussão de que a classe operária perdeu o papel revolucionário do ponto de vista que há uma redução da indústria; depois veio o tema da mudança tecnológica, que é uma discussão que só indica o cancelamento do futuro do trabalho. Há uma literatura de mais de duas décadas que aponta para “o fim do emprego”, “o fim do trabalho”. Nesse sentido, há um conjunto de autores que tem trabalhado com um horizonte mais longo, questionando de certa maneira o projeto de modernidade ocidental constituído desde a interrupção no comércio, das antigas rotas da seda, em 1453, quando caiu Constantinopla, hoje Istambul. De acordo com os historiadores econômicos, até o século 17, a maior parte da riqueza do mundo estava na Ásia, principalmente no Império do Meio (China) e no Antigo Império Hindu, que respondia por 35% da população do mundial, quando não havia um bilhão de habitantes no planeta, e produzia 55% da riqueza estimada.

O movimento no século 16 foi o de colocar o Ocidente no centro dinâmico do mundo. Isso se deu com investimentos em tecnologias de construção naval e orientação náutica. O ciclo das navegações, que se inicia nesse período em busca de chegar às Índias pelo Atlântico, leva ao “descobrimento” de um continente desconhecido até então, as Américas, que servem por três séculos de colonização, expropriação, desmonte de povos originários e suas organizações comunitárias de convivência com a natureza, os indígenas. Algumas até mais avançadas, como incas, maias e astecas, permitiram que a antiga Cidade do México concentrasse 250 mil habitantes, mais do que Paris, por exemplo, e que o Império Inca, dado a sua extensão, não ficava distante do que havia sido o Império Romano. Essas civilizações originárias foram desaparecendo por força da colonização que se constituiu na base da acumulação primitiva que permitiu a consolidação do capitalismo desde a Inglaterra com a Revolução Industrial na metade do século 18.

Há autores que diante da constatação do retrospecto atual apontam para o esgotamento do projeto de modernidade ocidental. Essa visão de mundo gerou duas perspectivas políticas distintas, adotadas por diferentes governos. De um lado, aqueles que embora saibam que voltar a crescer, ter emprego, como ocorreu no segundo pós-guerra, está cada vez mais difícil, buscam gerir a “decadência” do mundo ocidental, tratando de postergar os riscos de catástrofes variadas. O livro de Wolfgang Streeck, Tempo Comprado, analisa os governos sem estratégias de longo prazo, tratando de administrar emergências, minimizando problemas variados como a mudança climática, a escassez do emprego, a desigualdade crescente… Enfim, várias ações governamentais de gestão, cuja condução econômica passa a ser o fim e a política o meio. De outro lado, constata-se a ascensão da extrema-direita que, ao contrário de administrar emergências, trata de acelerar o processo do desmonte, buscando antecipar o colapso, a catástrofe generalizada. Imagina que das cinzas nascerá algo diferente frente as resistências dos grupos sociais organizados. O livro A Grande Regressão, organizado por Heinrich Geiselberger, oferece um panorama sobre a fase histórica das expectativas decrescentes.

Enfim, uma polarização intensa que captura atenção e estratégias políticas que tendem a ocultar alternativas. Por isso, partimos da compreensão que estamos diante de outra época, assim como no passado ocorreu a era agrária, a era industrial, estamos vivendo a Era digital. É outro paradigma produtivo, ocupacional e organizativo social e político, sobre o qual ainda há escassa reflexão, o que gera no campo progressista a perspectiva de buscar a voltar ao passado, mais que ousar a disputa sobre o sentido das transformações em curso. Não parece se tratar de revolução industrial, afinal os produtos industriais são praticamente os mesmos de muito tempo atrás (geladeira, fogão, automóvel, avião etc.), mas que se sofisticaram, incorporando computador e processador. O que se percebe parece ser um profundo salto tecnológico informacional, movido por inovações disruptivas, cuja mudança no papel do Estado é estratégica diante da grandiosidade e monopolização das concorrências por grandes corporações transnacionais privadas. Para essa nova era, uma inédita regulação, ação e instituições de diferentes tipos. Assim como na era agrária havia uma determinada organização sindical, que após o seu auge perdeu sua importância diante da emergência da classe trabalhadora da era industrial, surgiu o novo sindicalismo que se desenvolveu associado à regulação dos conflitos próprios da relação salarial. Penso que nós estamos assistindo à dissolução da relação salarial tradicional, deslocada relação “débito e crédito” própria da era digital. Os trabalhadores sabem o quanto custa viver, considerando os gastos com alimentação, transporte, moradia etc. Para uma família viver é necessário tanto (débito), mas o que ganha na relação salarial ou no trabalho tradicional se apresenta insuficiente (crédito). Então, a complementação necessária advém do dinheiro a ser obtido de distintas fontes legais ou ilegais (trabalhos gerais e eventuais que ampliam a jornada semanal), de programas governamentais de transferência de renda (aposentaria, pensão, bolsas e outras), o endividamento, entre outras. No Brasil, atualmente 8 a cada 10 famílias estão endividadas, participando da financeirização da riqueza que absorve cerca de um quinto da renda mensal. Há uma diversidade de atividades nas quais as pessoas buscam renda (crédito para atender ao débito consumista). Uma realidade de difícil compreensão, cujas informações estatísticas geradas por pesquisas tradicionais tendem a ocultar, pois adotam metodologias como se não houvesse uma nova era digital. Olhando para o Oriente, por exemplo, percebe-se que 40% da economia chinesa já está digitalizada (a brasileira, 13%). É um outro mundo. Se formos seguir por este caminho me parece que seria necessário refletir melhor em termos de organização do trabalho e geração de empregos.

Marilane Teixeira: No caso do Brasil chegamos a uma marca histórica de desemprego e o capitalismo segue sendo incapaz de gerar emprego para todas as pessoas que necessitam, e nesse contexto que você descreveu, em que as ocupações criadas são num setor dinâmico da economia, que é muito poupador de trabalho e gera emprego em diversas partes do mundo. Por exemplo, é possível no Brasil trabalhar para empresas de qualquer parte do mundo e vice-versa. Ou seja, estamos transferindo renda e gerando postos de trabalhos em diferentes partes do mundo. Por outro lado, no Brasil, não será a retomada do crescimento unicamente que irá assegurar a recuperação do emprego a patamares anteriores à crise. O tema é muito amplo, dessa forma o que podemos pensar para tentar reverter esse processo de desestruturação do mercado de trabalho? O Estado, como fez ao socorrer instituições financeiras, pode também ter essa finalidade com relação ao mercado de trabalho?

Marcio Pochmann: Cada vez sabemos menos do mundo do trabalho porque as estatísticas que nós temos estão muito vinculadas a um quadro que está ficando para trás. Há uma série de atividades por meio da internet que gera renda e pessoas com muito dinheiro, por exemplo, alguns influencers, que são poucos, só para ilustrar. Inclusive aqueles que tomam decisões do ponto de vista do capital financeiro utilizam cada vez menos os dados, por exemplo, do IBGE, que são muito importantes, mas são dados do passado. Uma empresa como a Ifood, por exemplo, tem muitos dados, com conhecimento do setor em que atua, identificando on line quantos produtos são vendidos, a que preço etc., o que gera um conjunto de informações para tomada de decisão que as estatísticas tradicionais não oferecem. Então, ao se manter o modo de fazer pesquisa tradicional, possivelmente o desemprego tende até se reduzir. As pessoas fazem qualquer coisa para sobreviver e isso o IBGE pode identificar como ocupação, subutilização. O Brasil do final do século 19, embora não tivesse pesquisa, os censos demográficos realizados não registravam desemprego. Na década de 1970, o desemprego medido pelo IBGE era menos de 3%, o que se poderia dizer do pleno emprego.

Não se trata de uma crítica ao IBGE, a nossa mais importante instituição que luta contra dificuldades. Mas, como pesquisador e estudioso, é importante chamar a atenção que o termômetro para medir a temperatura tem problemas. Isso requereria, de certa maneira, um esforço grande para trabalhar com outras variáveis e categorias.

É necessário também pensar um Estado muito diferente do que temos – um novo Estado digital, já que estamos falando de uma nova era. O que nós temos foi pensado também para a ideia de transição do agrarismo para a indústria. Não precisaria mais de muitos empregos que o Estado hoje suporta. Por exemplo, a fiscalização da tributação é fundamental num modelo de economia industrial, mas se é digitalizada há novas e mais eficazes formas de acompanhar e tributar o dinheiro, se quisermos.

Outro ponto que devemos considerar é a questão demográfica. Em 2009, atingimos o maior contingente de jovens, faixa etária de 16 a 29 anos, com 52,3 milhões. Hoje situa-se em 49 milhões e, se as projeções antes da pandemia se confirmarem, teremos, em 2060, 34,4 milhões e em 2100, 26 milhões de jovens. Uma mudança que abre oportunidades, mas também significa problemas de outra natureza. Por exemplo, com a queda na taxa de fecundidade, há menos crianças nascendo e, portanto, menos pressão escolar.

O Brasil atualmente é um dos países que mais fecha escola no mundo. De 1997 a 2020 foram fechadas 50 mil escolas no país. A opção tem sido fechar escolas com menos alunos e concentrar em poucas escolas, colocando as crianças para usar ônibus. Essa é uma saída que leva à compressão de uma categoria de trabalhadores que é uma das maiores, os professores. Se a opção fosse trabalhar com a escola integral, por exemplo, precisaria de mais professores. As oportunidades de trabalho estão relacionadas ao objetivo que se tem, se a meta for reduzir custos, daqui a pouco poderão divulgar que nem escola mais precisa. São opções políticas, o emprego não está determinado pela economia, mas pela decisão política tomada nesse sentido.

Se, de um lado, se reduz o peso das escolas, de outro aumentará sensivelmente o atendimento para as pessoas com mais idade. Isso já está avançando no setor privado, para quem tem renda, mas o envelhecimento ocorre para todos. O Estado terá uma atuação ampla nesse sentido ou não? Essa é uma decisão política. Havendo a decisão política, a economia se reorganiza.

No século 18 e 19, durante a primeira revolução industrial e o avanço da mecanização na Inglaterra, depois na Europa, houve grande excedente de mão de obra que saia do campo para as cidades. Foi um período em que a demografia aumentou, saiu de 1 milhão de habitantes para passar a crescer, quando os empregos gerados estavam cada vez mais nas cidades, embora de menor monta que os existentes no meio rural. A Europa resolveu o seu problema de excedente de força de trabalho pela grande emigração, colonizando a América, a Oceania.

Nos séculos 19 e 20 tivemos a segunda revolução também industrial, assentada no paradigma mecânico-químico, cujo objetivo da mecanização era substituir mão de obra por máquinas. Diante do novo salto na geração de população sobrante, com desemprego em alta, coube ao Estado ação de novo tipo, pois assentado no fundo público, conseguiu viabilizar atividades que até então o mercado não se interessava, como a educação, saúde, habitação, transporte, ademais da assistência social, aposentadorias etc.

Há um estudo que analisa o emprego no segundo pós-guerra, mostrando que salvo a Alemanha e os Estados Unidos, os demais países do Norte mantiveram praticamente o estoque de emprego privados, embora o pleno emprego tivesse sido alcançado pela atuação pública.

Essa alternativa do Estado como empreendedor, gerador de emprego, já foi experimentada. Daqui para frente, em geral, o Ocidente vai ter aumento populacional relativamente pequeno, comparado com o período anterior. Segundo as projeções, África e Oriente tendem a expandir as populações. No caso brasileiro, segundo o IBGE, a partir da década de 2040, a população em termos absolutos deve se reduzir. Sendo que no século 20 a população brasileira aumentou dez vezes. A projeção para o século 21 é de crescimento de 4% apenas.

Não haverá pressão demográfica aparentemente muito intensa, ou ocorrerá maior movimento imigratório, deslocamento dos países com maior população para outros, ou teremos formas de garantia de renda, ou atividades laborais com menos horas e mais renda, para manter minimamente a coesão social. Como contraponto, menciono as informações da Federação Internacional de Robótica: até 2019, por exemplo, os países que mais adotavam robôs, que mais utilizavam inteligência artificial, eram os países com menos problemas de desemprego, como Singapura, Coreia do Sul, Alemanha, Estados Unidos e China. Esses países tinham taxa de desemprego de 4% da força de trabalho.

Matheus Toledo: Uma visão quase unânime dos entrevistados e entrevistadas no estudo “Percepções e Valores da Sociedade Brasileira não Polarizada”, realizado pela Fundação Perseu Abramo, é que o Brasil vive em eterna crise,  seja financeira, política, sanitária… Se houve um período de prosperidade no governo Lula, este funcionou como um parênteses numa história de mal-estar social. Boa parte dessas pessoas tem trajetórias de vida marcadas por idas e vindas do trabalho informal, como é típico da base da pirâmide social brasileira, muitos experimentaram alguma ascensão e perderam nos últimos anos, outras passam por vulnerabilidade social.

Outra questão ainda é que de outro lado, embora a ideia meritocrática tenha arrefecido, as pessoas tratam a pobreza como fruto da desigualdade brasileira, de outro, algumas nomenclaturas, como trabalhador, passam por uma ressignificação. No caso desse estudo ser trabalhador não é mais um substantivo, mas um adjetivo. As pessoas se consideram trabalhadoras porque são “batalhadoras”, ou porque trabalham muito. Gostaria de saber o que você pensa desses resultados.

Marcio Pochmann: Interessante esses resultados. Penso que está em consonância com a estratégia mais ampla da elite dominante. Nós estamos vivendo a terceira grande mudança histórica do país, do ponto de vista do diagnóstico de época. A elite dirigente sabe que em período de mudanças, as formas de dominação tradicionais se fragilizam e, por isso, interessa a oferta de certo horizonte de expectativas decrescentes, desmotivando utopias e projetos de transformação radical. Não se fala, não se discute o que será o Brasil em 2030, 2040. O futuro como um não tema, ausente de tudo.

Pode ser estranho comentarmos isso, mas no início dos anos 1980 era comum debates sobre o futuro. Por exemplo, “o que será o Brasil no ano 2000?” era debatido tanto pela esquerda como pela direita, Celso Furtado, Roberto Campos. Havia especulação, horizontes a construir, expectativa de futuro a ser disputado. Hoje parece que foi sendo desconstituída a ideia de futuro. Isso acaba com o sonho, com a utopia. É o dia a dia, a sobrevivência. São governos de emergência, que trabalham como se fossem prontos-socorros. Óbvio que prontos-socorros são importantes, mas não é a única atribuição de um hospital, que tem de lidar com doenças estruturais.

Numa sociedade de classes, a ideia de futuro é basicamente tratada pela elite dominante, uma vez que os miseráveis estão condenados a pensar, no máximo, a sobrevivência do dia. Se perguntar para uma pessoa em situação de rua o que vai fazer ano que vem. “Mas que ano que vem? Nem sei se vou estar vivo amanhã, com esse frio, falta de alimentação”. Se falar com o operariado, o máximo que ele consegue planejar é o mês. “Juntar o ganho da hora extra realizada talvez permita almoçar fora de casa com a família”. Já a classe média consegue pensar o ano, talvez. “Somar o 13º salário com o adicional de férias e fazer uma reforma em casa…” Mas quem pensa o longo prazo é a elite dominante.

As instituições, os partidos, os sindicatos, teriam esse papel de pensar o longo prazo. De forma histórica, as duas principais mudanças de época que o povo brasileiro viveu foram a Abolição da Escravatura, com ingresso no capitalismo e a passagem para a sociedade urbana e industrial. O primeiro momento de mudança de época foi com a Abolição da Escravatura, quando depois de quase quatro séculos ocorreu o ingresso definitivo no capitalismo, com a formação da classe trabalhadora, porém sem correlação de forças favorável como a luta encaminhada pelos abolicionistas, como Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, que desejavam muito mais, mas os escravos estavam aprisionados em fazendas, o contato era difícil.

Tivemos uma segunda mudança na década de 1930. A transição do Brasil rural para o urbano e industrial decorreu do projeto dos tenentistas voltado a construção de uma outra sociedade. O Clube 3 de Outubro, liderado por Osvaldo Aranha, por exemplo, tinha proposições muito mais ousadas do que as realizadas, que foram as que resultaram da correlação de forças. Então, em mudança de época, há uma instabilidade no andar de cima e abre espaço para o andar de baixo. Por isso, me parece pelo que a pesquisa aponta que as pessoas estão sem visão de futuro e circunscritas basicamente a sua sobrevivência. A utopia, um projeto de maior prazo, que não seja a gestão do curto prazo, são fundamentais. Precisaríamos fundar uma nova base de ousadia de projetos que desse conta das possibilidades que temos pela frente. O papel das instituições de interesses como sindicatos, partidos e associações é fundamental.

Artur Henrique: Qual o papel da educação no mundo do trabalho, numa sociedade que se modifica e que a cada dia tem novas tecnologias? A formação política e a formação sindical, que como e educação, do ponto de vista da organização sindical, da organização dos trabalhadores, também têm necessidade de atualização, preparação para esse conjunto de inovações, assim como a esquerda. Como resgatar o tema da solidariedade em contraposição ao individualismo que vem corroendo o debate?

Marcio Pochmann: Penso que à educação caberá um papel muito mais importante do que teve até agora. Em primeiro lugar porque os valores que anteriormente eram produzidos a partir da família tendem a ficar mais restritos. A família vem sofrendo modificações importantes, com menor número de filhos. O tempo familiar hoje tem sido ocupado pela tecnologia de informação. Juntas, em casa, as pessoas estão assistindo televisão, ou cada um com seu celular. O diálogo familiar tem sido cada vez mais restrito. Onde construir os valores de solidariedade, de fraternidade, de convivência comum se não na escola, que é o espaço comunitário mais amplo? Claro que a escola que temos hoje tem dificuldade de cumprir plenamente esse papel. Já é uma escola muitas vezes assentada no espírito neoliberal de formar lideranças, competidores… A concorrência está instalada dentro da escola e ela vai corroendo esses valores comuns. Há uma questão que parece de método, um esvaziamento do se entende por família e sua capacidade de difundir valores e o papel que a escola deveria ter.

Estamos completando 90 anos do manifesto dos pioneiros da escola nova, de 1932. Foi nesse momento que se pensou a escola pública no Brasil, para a sociedade urbana. Uma escola que reunisse crianças, adolescentes de diferentes origens e realidades e oferecesse um sentido de nação, o hino nacional, a simbologia, valores de cidadania e aprendizagem para vida laboral.

Parece que estamos necessitando de um outro manifesto que olhe a educação pública para o século 21, já que mais de 70% da população ocupada está no setor terciário, de serviços. É outra realidade, que escola é essa? Aí é que parece encaixar a ideia de “escola para a vida toda”. Com o avanço da internet parece que há um aumento do contingente de iletrados. Eu, por exemplo, me considero iletrado, sei usar minimante a internet, o celular. Penso que não estou sozinho. Existe um problema geracional, e isso demonstra que a escola, a educação, a aprendizagem, a curiosidade, nos acompanhará não apenas na perspectiva de criança, adolescente e jovens, como era o projeto da escola nova. Nesta nova sociedade, a escola é necessária para a vida toda.

E veja que estamos falando de uma primeira fase da era digital, na qual fomos colocando nossos dados do cotidiano para dentro da internet, agendas, transferência de recursos, gastos, vídeos etc. Transferimos nossas informações de forma gratuita para as empresas gestoras. Um modelo de negócio com uma lucratividade excepcional apropriada por poucas e grandes empresas estrangeiras.

Nessa primeira fase as organizações da sociedade ficaram para trás, perderam espaço. E nós tivemos uma postura de natureza neoliberal. Os dirigentes do sindicato, do partido, da associação de bairro, têm boa internet e telefone, mas a sua base não tem. Na cidade de São Paulo, nos bairros pobres há uma torre de transmissão para cada 10 mil habitantes e nos bairros mais bem aquinhoados, há dez torres para 10 mil habitantes.

O movimento sindical nos 1930 lutou por uma cesta básica de alimentos, que virou o decreto 399/38, que era a base do salário-mínimo. Não estaria em tempo de o movimento sindical também associar a sua luta à defesa da cesta de acesso comum à boa tecnologia? Deixado ao livre mercado, a desigualdade tecnológica só tem a crescer.

Temos estudado no Instituto Lula (IL) a experiência do 5G na China, um dos aspectos interessantes é que permitiu ao pequeno produtor colocar seus produtos no centro consumidor sem passar por intermediário. Outra pesquisa que realizamos no IL, entre sindicatos, associações, revela que, de 2020 para cá, essas instituições perderam um terço de seus filiados. E a principal dificuldade alegada foi por problema de conexão. Os sindicatos até têm site, Twitter, WhatsApp, mas não conseguem atrair sua base social.

Esses são desafios que não conseguimos enfrentar na primeira fase de digitalização da sociedade. Imagine como será a segunda fase, do metaverso numa sociedade de avatares? Será um mundo novo e o passado serve apenas como informação de como era, mas pouco ajuda no sentido de oferecer alternativas. Por isso, me parece que a educação é central.

Marilane Teixeira: Convivemos com uma multiplicidade de formas de trabalho. Desde o trabalho em home office que coloca o desafio de romper com os paradigmas anteriores, pois mesmo estando vinculado à empresa, com assalariamento, jornada de trabalho, coloca o trabalhador como empreendedor, pois terá que criar as suas próprias condições de trabalho atuando como um empreendedor.

E há um outro lado que está fora dos circuitos mercantis capitalistas em que prevalecem a desregulamentação, a busca pela sobrevivência e a completa ausência do Estado, a exemplo dos motoboys, motofrentistas, mototáxi, catadores de materiais reciclados, pessoas que lutam para terem seus direitos reconhecidos, ter um contrato, ou fazer parte de um coletivo que tivesse as suas condições de trabalho valorizadas. É muita coisa para enfrentar. Queria saber de você como construir políticas que atendam essas demandas, se há como termos uma política pública universal.

Marcio Pochmann: Se olharmos essa questão que você coloca do ponto de vista geográfico, dos anos 1970 para cá, houve um esforço do capitalismo ocidental pelo retorno ao que eram as relações de trabalho pré-primeira guerra, em que a renda estava vinculada não ao tempo de trabalho, mas ao produto, à meta de produção e venda. A luta sindical por estabelecer remuneração em função do tempo de trabalho mudou basicamente e deu condições para que o salário se transformasse num custo fixo para as empresas. A empresa contrata o trabalhador e trinta dias depois teria de pagar o salário, independentemente de saber se o produto do trabalhador gerou renda ou não. Isso permitiu uma estabilidade de rendimentos e diferenciou enormemente o capitalismo ocidental do oriental.

Tenho a impressão de que estamos voltando no tempo. O trabalho em casa, essas novas regras, mudam o que era pagamento por tempo, se tornando pagamento por produto, por meta de produção, pela entrega. Usando as informações disponíveis, para as pessoas que trabalham em casa em geral a jornada é muito maior do que aquela que executaria no local determinado. Para o capitalismo, a terceirização, as empresas compartilharam os riscos de produzir pagando apenas e tão somente aquilo que ela conseguiu obter na atividade econômica. Isso eu não sei se é verdade para o Oriente, que vem oferecendo situações de trabalho em tese melhores que tinham anteriormente. Algo que tem a ver com a divisão internacional do trabalho, que é gerado em grande medida pelo deslocamento das indústrias para o Oriente, mas também pelo fato de que na era digital os melhores empregos e salários são possíveis onde se produz e exporta bens e serviços digitais.

No caso do Brasil e da América Latina, entramos nessa divisão do trabalho como consumidores, importadores. O Brasil é décima terceira economia do mundo, tem a sexta maior população, é o quinto maior país em extensão de terra e o quarto maior consumidor de bens e serviços digitais. Um país nessas condições dificilmente tem possibilidades de gerar empregos melhores do que os que estão sendo gerados.

Há uma questão anterior que é como o país se coloca na divisão internacional do trabalho. No Brasil, o acesso às novas tecnologias da era digital transcorre através do pagamento gerado pela renda da exportação de produtos primários. Ou seja, dependemos do agronegócio para ter acesso à tecnologia que vem de fora.

O Brasil regrediu o seu sistema produtivo ao que se parece a forma de um queijo suíço, com várias dependências do exterior. Em diferentes setores o país depende até 70% de produtos chineses. Nessa condição, as possibilidades de gerar empregos de qualidade são muito limitadas. Isso passa pela mudança na correlação de forças, na construção de uma maioria política, que entenda que é necessário produzir internamente. Acredito até que as condições internacionais são mais propícias do que foram quando fomos governo há 20 anos, quando falar em conteúdo nacional era um escândalo. Hoje é essa perspectiva que o governo Biden e vários governos europeus estabelecem. Talvez nós tenhamos uma oportunidade singular de construir, a partir de 2023, uma perspectiva em que a produção nacional possa ganhar escala, magnitude, sem falar de outros aspectos sobre os quais temos tido pouca capacidade de investimento e compreensão, como a produção, emprego e renda em diferentes biomas nacionais, incluído o mar e o espaço sideral.

Penso que há possibilidades da reversão das atuais condições precárias de trabalho estimuladas pelo processo da desregulação social e trabalhista. Depois de uma grande fase de reformas trabalhistas para pior, creio que há algum sinal, que não vem apenas da Espanha, que tentou reverter em parte a reforma desregulatória que tiveram em 2012, mas também das recentes reformas realizadas no México e Vietnã que parecem muito interessantes do ponto de vista do fortalecimento da negociação coletiva, do reconhecimento dos sindicatos. Há espaço para recuperar a negociação, o papel do sindicato, provavelmente em novas bases, principalmente se for estabelecido um outro horizonte de expansão da produção, olhando justamente na disputa em torno das novas tecnologias, bem com uma nova CLT digital.

Veja também

Contra os cortes neoliberais e pelo fim da escala 6X1

O PT (assim como outros partidos de esquerda) assinou nota com as entidades representativas do …

Comente com o Facebook