Logo após sua volta da Alemanha, a presidenta Dilma Roussef recebeu o jornalista Luis Nassif para uma entrevista exclusiva, no Palácio do Planalto.
A presidenta falou com o jornalista por cerca de 90 minutos, sobre o tratamento dado pelos países ricos à crise econômica internacional, a estratégia brasileira para se defender das políticas abertamente protecionistas praticadas em outros países e as constantes crises políticas criadas pela grande imprensa.
Para a presidenta, a mídia adotou uma forma de cobertura política “quase fantasmagórica”, onde os conflitos cotidianos – que ela considera inerente ao presidencialismo brasileiro – são transformados em anabolizadas crises políticas permanentes.
Reproduzimos abaixo os principais pontos da entrevista, originalmente publicada no Blog do Luis Nassif.
Como os países ricos estão tratando a crise
É importante analisar como os países ricos tratam a crise.
Comecemos pelos Estados Unidos. O governo Barack Obama assumiu que queria política de crescimento imediato e correção de rumos fiscais no médio prazo. O problema foi a derrota no Congresso que o obrigou a optar pelo “quantitative easing” (programa de expansão monetária). Empurraram a crise com a barriga, aumentaram a quantidade de dinheiro nos bancos, mas não rolaram as dívidas das famílias, o que poderia ter destravado o mercado interno. Só agora nas eleições, depois de quatro anos de crise, começam a rolar as dívidas das famílias.
O “quantitative easing” é um mix de política macro, com taxas de juros lá embaixo, expansão monetária acelerada e objetivo de segurar o lado fiscal. É evidente que por trás dela há a intenção de desvalorizar o dólar e melhorar o emprego interno.
O governo Obama foi levado a isso politicamente.
No caso da Europa, não: optaram por isso. O último relatório do BIS (o banco central dos bancos centrais) mostra que a estratégia visa dois objetivos principais: impede a crise bancária e ganha tempo para dois mecanismos: desvalorizar o euro e jogar a conta sobre países emergentes que têm câmbio flutuante. Mas, por outro lado, pode estar criando uma enorme bolha monetária.
Não há unanimidade no governo alemão com respeito ao tamanho da liquidez. Para eles foi importante para evitar um Lehman Brothers alemão, mas só isso. Não existe unanimidade na Alemanha nem sobre isso nem em relação à Grécia.
Por trás da expansão das bolhas, há o medo da inflação, pelo histórico alemão com a hiperinflação. Medo que nós compartilhamos.
A arbitragem com países de câmbio flutuante
No filme “Muito Grande para Falir”, na cena final o Secretário do Tesouro Paulson pergunta a Ben Bernanke se estava satisfeito com o fato dos grandes bancos terem absorvido os empréstimos para rolar dívidas. Bernanke, quieto, responde: não tenho certeza se eles vão emprestar. De fato, não emprestaram: uma parte ficou depositada no próprio FED, outra parte foi devolvida.
No caso da Europa, são um trilhão de euros emprestados a 1% ao ano, que em breve entrarão na ciranda financeira. Irão investir em títulos da Itália e Espanha, aumentando sua exposição? Não: virão fazer arbitragem aqui e em outros países. Tem uma enorme bolha a caminho.
O problema é que essa desvalorização cambial artificial é a forma de protecionismo mais feroz que se tem. Há um discurso dos países centrais, de que são defensores do livre comércio. Mas praticam o protecionismo mais feroz que se tem. E essa desvalorização artificial da moeda não está regulada pela Organização Mundial do Comércio (OMC). Então não venham reclamar de algumas medidas absolutamente defensivas que o Brasil toma.
Hoje em dia, via tsunami monetária, está em curso no mundo a prática das desvalorizações competitivas, o que se chama de “empobreça seu vizinho”.
É uma situação esquizofrênica na Europa, que não consegue uma solução de crescimento.
Muitos países estão com graus de desemprego do ponto de vista político incompatível com sistemas democráticos abertos. A dívida grega não é financiável, assim como a de Portugal. Como conviver com nível de desemprego que chega a atingir 45% dos jovens? Destrói o tecido social, tira das pessoas a esperança.
A estratégia brasileira
No Brasil, vamos ter que perceber duas coisas:
Primeiro, as condições do mercado internacional mudaram. Estamos vivendo situação diferenciada. Não se pode perder a consciência do tsunami monetário. Tem que fazer avaliação sobre as estratégias a serem tomadas, e não se faz de forma abrupta e apaixonada. Com muita cautela, frieza, tranquilidade, iremos acompanhar o desenrolar da situação e tomar as medidas cabíveis.
Não tenho como adiantar as medidas cabíveis, mas para o governo brasileiro esta é a questão principal.
Se perguntar hoje qual é o maior cuidado do governo, respondo: é acompanhar como o Brasil se defende dessas políticas que são abertamente protecionistas praticadas pelos governos desenvolvidos.
A necessidade do investimento no Brasil
A própria China está promovendo uma transição do modelo de exportações para o mercado interno. Não vão parar de importar, mas irão se situar de forma diferente no mundo.
Por todas as manifestações que lemos: acho que os chineses se sentiram muito fragilizados diante da crise dos seus maiores mercados. Não podem mais confiar só no mercado externo.
Wen Jiabao disse que o modelo era desequilibrado, insustentável, eminentemente desequilibrado: levará a impasses que terão que ser resolvidos.
A China caiu na armadilha do sobre investimento elevado, o que cria rigidez econômica muito forte. Agora, tentam fazer a versão.
No Brasil, ainda estamos na fase de acelerar investimento. Em breve pretendo fazer uma reunião pessoal com os maiores empresários do país sobre a questão do investimento. Uma parte da decisão depende da expectativa, do que Delfim gosta de chamar de “espírito animal”. O Brasil oferece todas as condições.
Em todos os lugares que vamos são as mesmas avaliações dos empresários internacionais. No último dia na Alemanha tivemos reunião com Angela Merkel na ABDI (o equivalente à nossa Confederação Nacional da Indústria).
A reunião foi para que nos falassem como pretender investir no Brasil. Havia uma porção de setores, quase uma rodada de negócios. E todos eles vinham, diziam que tinham empresa tal, na área tal, e todo interesse em investir no Brasil. Hoje em dia a maior parte da população alemã é de aposentados e crianças. E o Brasil tem o bônus demográfico. Eles olham para isso, para nosso mercado, para a estabilidade macroeconômica e política, para nossa tradição de respeitar contratos.
Revertendo a queda na indústria
Aqui não temos dúvida de que a economia mundial caminha para recessão com excesso de liquidez. A China reduzirá crescimento para 7,5% com a clara intenção de reverter o modelo para dentro. Outros grandes países vão perseguir esse fortalecimento do mercado interno, com a possível exceção da Índia que tem um déficit externo muito complicado.
Temos que ter consciência disso.
A situação atual não é a mesma de 2011. Nós tínhamos absorvido a expansão monetária dos Estados Unidos que de uma forma ou outra foi encaixada. Agora é absolutamente diferente, é recessão com uma gigantesca expansão monetária acumulada e uma tendência a uma volta aos mercados domésticos.
Vamos ter uma política clara em relação ao Brasil, da qual o melhor exemplo é a revisão do acordo automotivo com o México. Foi feito em 2002, em outra conjuntura, na qual cabia o acordo. E está em vigor até agora, em condições não adequadas ao Brasil.
O Brasil vai institucionalmente tomar medidas para garantir que nosso mercado interno não seja canibalizado. Tem queda na indústria, mas dá para reverter. Não daria se deixássemos continuar por dois, três anos. Agora dá e vamos fazer o possível e o impossível para defender a indústria nacional.
O papel da redução dos juros pelo BC
A redução dos juros, pelo Banco Central, não é só para esquentar a economia brasileira. Cumprimento o BC porque a intenção maior é equilibrar a taxa interna com a internacional. Hoje em dia esse diferencial é responsável pela maior arbitragem que existe no mundo.
Iremos fazer isso sem comprometer a luta contra a inflação.
Os fantasmas das falsas crises políticas
Existe uma forma quase fantasmagórica de cobrir a política. A imprensa vem falando em crise com a base aliada. Não existe crise. Os conflitos – que sempre existirão – têm a ver com os processos pelos quais exercemos o nosso presidencialismo. Tem que ser de coalizão, mas não deixa de ser presidencialismo.
No caso do Brasil, alcançamos grande maturidade nas relações executivo-legislativo e executivo-judiciário. Podemos nos vangloriar de ter certa estabilidade.
Por aqui seria inconcebível uma relação Executivo-Congresso do tipo democrata-republicano As diferentes opiniões que se estruturam dentro da sociedade brasileira não permitiriam isso.
Temos tradição de sermos obrigados, como políticos que somos, a olhar o interesse de todos: o que nos EUA às vezes me parece que não é o caso.
Ninguém aqui pode durante muito tempo só defender seus interesses específicos sem que haja reação da parte da sociedade.
É sempre bom que tanto Executivo quanto Legislativo e Judiciário saibam que essa é exigência de postura de todos: presidentes, ministros, deputados, senadores e juízes. Esse é aspecto importante da nossa democracia e explica também porque, mesmo tendo eleições bastante atritadas, em alguns casos até duras, logo depois da eleiçao há como uma pacificação geral.
Ai do presidente que não falar em nome de todos os brasileiros e brasileiras. Em outros países do mundo não se vê isso.
Ao lado da coalizão há questão do interesse de todos, balanço do presidencialismo que fala em nome de todos e coalizão que são interesses partidários. É normal que se reivindique e se debata. É intrínseco a esse processo.
E partidos não podem arcar com ônus de inviabilizar acordos: são partes do acordo. Quando votam contra governo, são pontos muito específicos. Não tem desvio, conduta inadequada: que eles façam assim é da regra do jogo, que façamos de outro é da regra do jogo.
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