Em entrevista ao site da Carta Maior, o governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, avalia que a decisão do STF que considerou constitucional a política de cotas raciais permite avanços maiores na busca pela igualdade. “Ganhamos o debate político, mesmo tendo a maior parte da mídia contra.” Agora, Tarso defende que se debata no Congresso uma alteração na Constituição que institua, por um período determinado, a obrigatoriedade de vagas para afrodescendentes nas instituições federais de ensino superior.
Naira Hofmeister e Guilherme Kolling – De Madri, Especial para Carta Maior
Madri – Ministro da Educação em 2004, época em que foi implementada a política de cotas raciais nas universidades públicas, o governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro (PT), avalia que a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que considerou constitucional essa medida permite avanços maiores na busca pela igualdade no País. “Ganhamos o debate político, mesmo tendo a maior parte da mídia contra.” Agora, o petista defende que se debata no Congresso Nacional uma alteração na na Constituição Federal que institua, por um período determinado, a obrigatoriedade de vagas para afrodescendentes nas instituições federais de ensino superior.
Tarso expôs sua análise sobre o tema em uma entrevista exclusiva em Madri, onde participou de um seminário sobre a crise de representação e os desafios da democracia, com pensadores de Espanha e Portugal no final de semana. O governador gaúcho argumentou que o modelo neoliberal tenta desprestigiar a política para fortalecer a presença do capital no Estado. E que isso faz com o que o cidadão se afaste da vida pública. Ele ainda opinou sobre movimentos da sociedade civil como Os Indignados e projetou a ação da esquerda a partir da vitória de François Hollande na França:
“Pode ser o início de uma mudança nos padrões políticos da integração europeia, com reflexos na economia. Agora, isso só é determinável pela própria política, os partidos tem que querer. Se Hollande fizer apenas remendos, a crise vai se resolver através desses métodos que estão sendo propostos hoje e que tem abalado a comunidade trabalhadora.”
O senhor ficou satisfeito com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a constitucionalidade da política de cotas raciais nas universidades públicas, inciada quando o senhor era ministro da Educação?
Tarso Genro: Na época houve uma movimentação muito grande dos setores mais conservadores, uma tentativa de impugnar essa política. Diziam que iria rebaixar a qualidade da universidade, o que se comprovou improcedente. Foi um debate duro, fui muito atacado, ridicularizado e até mesmo ofendido por setores da imprensa conservadora. Teve um articulista de São Paulo que chegou a me chamar de racista! Essa decisão do Supremo permite que se adotem políticas de discriminação positiva. Isso não deve perdurar para sempre: quando tivermos um nível de coesão maior e não houver mais essa combinação de miséria social com vínculos raciais como temos hoje, as cotas podem ser extintas. É uma política democrática porque as camadas mais pobres, de afrodescendentes, que historicamente foram discriminadas, passam a sentir-se pertencentes à democracia. Isso é bom para ricos, pobres, é bom para a formação de uma ideia de nação.
E a cobertura da imprensa agora, como foi na sua avaliação?
Tarso Genro: Foi parcial, inclusive a cobertura do resultado (do julgamento do STF). As notícias foram dadas reconhecendo a decisão, mas a maioria o fazia criticamente, como se o Supremo estivesse adotando uma posição errada. Essa questão não diz respeito somente à mídia, é reflexo de um conceito de Brasil, de nação, de uma visão pré-moderna do significado da igualdade. O princípio da igualdade formal contém o princípio do tratamento desigual aos desiguais para que as pessoas possam ser iguais formalmente. Essa decisão do STF é uma aplicação plena do princípio da igualdade formal, porque trata desigualmente os desiguais, já que é comprovável empiricamente que negros e pobres têm mais dificuldades de entrar na universidade. A partir do momento em que se cria uma cota, se abre uma possibilidade de que as pessoas sejam tratadas de forma mais igual. Em momentos como esse, essas visões mais conservadoras se expressam de uma maneira meio raivosa, eu diria até meio fascista. Mas teve um conjunto de acadêmicos, de pessoas que não sustentavam essa posição, que fizeram um debate elevado e qualificado.
Essa decisão do STF deve diminuir a resistência às cotas?
Tarso Genro: Sempre vai haver resistência porque se trata de uma concepção de democracia e de mundo. O Supremo termina com o contencioso jurídico, com a interpretação constitucional, o que deve criar movimentos de simpatia dentro das universidades federais para desenvolver políticas desse tipo. Mas coisas como essa sempre tem um lento processo de assimilação. O fim da escravidão, por exemplo, tem um marco legal da sua decisão política no país (a abolição da escravatura, em 1888), mas precisou passar décadas para que fosse assimilado por setores da sociedade que tinham uma cultura de rejeição da comunidade afrodescendente.
Tanto que o movimento negro mudou o dia da consciência negra para a data da morte de Zumbi dos Palmares…
Tarso Genro: E isso demorou muito…
Segundo IBGE, entre 1997 e 2007, o percentual de negros nas universidades aumentou só 1,8%. A adoção das cotas, em 2004, ainda é muito recente para ter um impacto maior?
Tarso Genro: Esse número é consequência do fato de que nem todas as universidades públicas aplicam as cotas. Também porque em determinadas regiões há uma frequência muito grande de negros e afrodescendentes na universidades, caso da Bahia. Esse dado também está relacionado com o fato de que não é massivo o percentual de afrodescendentes que termina o ensino médio. E essa mesma estatística no âmbito do Prouni é diferente: nas universidades privadas que adotaram o programa, dobrou o número de afrodescendentes matriculados: eram 22% e chegou a 44%. Mas esse avanço de 1,8% nas federais é muito positivo, são milhares de famílias dos setores mais subalternos da sociedade que abrem uma nova possibilidade de vida.
No ano passado o Censo apontou que mais da metade da população brasileira se considera não branca. Já é um reflexo de medidas como esta?
Tarso Genro: Acho que sim. Mas o Brasil, em função da colonização portuguesa não é um país essencialmente racista, como foram os Estados Unidos. Sempre me opus aos dirigentes do movimento negro que colocavam nosso país como racista. Temos certa discriminação social e racial originária da escravidão, que está muito mais vinculada à cor da pele do que à descendência. Por isso é muito mais fácil combater esses preconceitos. A decisão do STF é uma grande interferência nessa cultura. É bom para irmos compondo uma ideia de nação mais coesa, menos discriminatória.
Tendo em vista que é o próprio candidato a universitário que se declara cotista, é possível diminuir distorções, como o caso dos gêmeos em que um se inscreveu como negro e o outro como branco?
Tarso Genro: Essa distorção é fruto de uma análise não do conjunto da proposta, mas de uma visão meramente lógico-formal. Fica parecendo que basta a pessoa se autodeclarar afrodescendente para ter a vaga assegurada. Mas neste caso, ela vai concorrer num âmbito menor de vagas, logo, vai ser tão duro para ela entrar na universidade quanto para os demais. Não há uma vantagem nisso, a única vantagem é que se garante na universidade o percentual de afrodescendentes correspondente ao percentual que existe entre a população. É uma política engenhosa e correta.
O senhor falou em um processo que irá avançar ao longo do tempo. Isso vale, por exemplo para as universidades públicas – nem todas aplicam as cotas?
Tarso Genro: Pelo que estou informado é uma minoria das federais que adotam, mas isso agora vai evoluir. A decisão do Supremo dá legalidade e legitimidade para essa política e vão ocorrer movimentos e diálogos no âmbito das federais para que elas adotem as cotas. É preciso lembrar que essa decisão não obriga as universidades a aplicarem a política de cotas. Isso está reservado à autonomia das instituições de ensino superior. As cotas só são obrigatórias no âmbito do Prouni, porque aí decorre de uma lei.
Mas há alguma autocrítica a ser feita a essa política?
Tarso Genro: Não, pelo contrário. Poderíamos lutar para colocar um dispositivo na Constituição Federal, que tivesse validade transitória, e que obrigasse a aplicação da política de cotas por dez anos em todas as universidades federais. É uma abertura que o Supremo está dando, mas não sei se os nossos legisladores conseguiriam o percentual para fazer uma reforma dessa natureza. É uma política positiva, que deve ser temporária. Governos com políticas públicas fortes podem ter uma interferência muito grande na mobilidade social, que no Brasil é travada pela desigualdade e por questões de preconceito de cor e projeção da escravidão na mente das pessoas até hoje.
O fato de ter sido uma aprovação unânime do STF pode interferir positivamente em uma eventual reforma da Constituição?
Tarso Genro: Ajuda e mostra que ganhamos o debate político, mesmo tendo a maior parte da mídia contra. Foi um debate feito nas academias, nos sindicatos, nas redes, na imprensa – inclusive por parte de alguns grandes jornais que abriram espaço para uma opinião alternativa. O Supremo é uma instância política e jurídica da nação, é onde a política se encontra com o direito através da Constituição. Obviamente o debate que se travou nesse período teve influencia sim – se os nossos argumentos tivessem sido soterrados pelos adversários da política de cotas, provavelmente não seria essa a decisão do Supremo, pelo menos no que se refere à unanimidade.
Passando agora à sua agenda aqui na Europa. A crise econômica vem sendo combatida com medidas de cortes nos gastos públicos, inclusive em setores como saúde e educação. Há protestos, mas não se constituiu uma alternativa. Qual é a sua avaliação da crise econômica?
Tarso Genro: Não podemos ter a arrogância de julgar a crise europeia porque a estrutura social e política aqui é mais avançada e consolidada que no Brasil. Mas podemos apontar três elementos da crise: o primeiro é que foram constituídos na Europa projetos social-democratas sem fundos. A sociedade projetou nas leis e nas Constituições um sistema de proteção social que, para manter, o Estado precisou se endividar. O segundo problema é que os padrões de integração da União Europeia são ditados hoje por um país que fez uma social-democracia com fundos, a Alemanha: tem forte presença no comércio internacional, base tecnológica, uma instância produtiva de alta qualidade que permite que o Estado financie a social-democracia. Tanto que as perdas dos trabalhadores alemães nesse período são infinitamente menores em relação ao resto da Europa. E, em terceiro lugar, o que se observa é que aquela visão que julgávamos que estava acabada – a de que não há alternativa ao neoliberalismo – não está.
A própria social-democracia incorporou a fatalidade da constituição da União Europeia a partir dos padrões ditados pelo Banco Central Alemão. Isso determina esse esgarçamento social que está aí na Islândia, Irlanda, Grécia, Espanha, Itália, Portugal. A crise tem uma dimensão econômico-material e também uma dimensão política. As saídas só poderiam ser estas? Tem uma parte da esquerda europeia que diz que não, defende a emissão de Eurobonus garantidos não pelos bancos mas pelos estados, pedem recursos para modernizar e qualificar a sua base produtiva e não dinheiro liberado para salvar os bancos.
A própria chanceler alemã, Angela Merkel, já admite a possibilidade de um plano de crescimento.
Tarso Genro: Isso já é resultado dessa terceira questão, que é a questão política. A sinalização que está dando a França com a vitória de Hollande – embora dificilmente tenha efeitos a curto prazo nas saídas para a crise – enuncia a possibilidade de uma renegociação, mas que só pode ser feita a partir de critérios políticos que a oposição antineoliberal adote, senão ela não sairá. Porque a “solução” natural da crise é esta que está aí. A outra é uma solução politizada.
A esquerda não deu solução para a crise – como aqui na Espanha com o Partido Socialista (PSOE) – e a direita voltou ao poder em diversos países europeus. A eleição de Hollande na França pode ser o início de uma guinada à esquerda?
Tarso Genro: Pode ser o início de uma mudança nos padrões políticos da integração europeia, com reflexos na economia. Agora, isso só é determinável pela própria política, os partidos tem que querer. Se Hollande, ao invés de propor uma mudança na integração europeia, fizer apenas remendos, fatalmente a crise vai se resolver através desses métodos que estão sendo propostos hoje e que tem abalado a comunidade trabalhadora da Europa, particularmente na Espanha, Portugal e Grécia.
Essa incapacidade de dar soluções ao problema econômico é o que gera a crise de representação dos partidos políticos?
Tarso Genro: A crise do regime democrático é uma crise de encontro do capitalismo com a democracia. Não é que a democracia política seja inviável no capitalismo, já se demonstrou que é. Mas no momento atual, para que o projeto neoliberal continue em curso, é necessário degradar as instituições políticas, reduzir a importância dos partidos e acentuar a impotência da mobilização social que se contrapõe ao projeto neoliberal. E isso está sendo feito de maneira meticulosa. Uma das questões chave para que represtigiemos a democracia é derrubar as barreiras burocráticas que separam o Estado do cidadão comum. Segundo, revitalizar a política e os partidos. E, terceiro, desenvolver políticas públicas que sejam compreendidas pela sociedade. Constituindo um sistema de participação popular cidadã por vários meios – virtual, assembleias presenciais, consultas e referendos, conselhos – para que a sociedade produza em conjunto com o Estado as políticas públicas que a façam avançar. Nesse processo, uma das questões mais importantes é a gestão. Ela foi praticamente dominada pelo pensamento neoliberal: para que fosse boa, tinha que ser despolitizada e feita por burocratas técnicos sem sensibilidade política e sem mente social.
A chamada profissionalização da gestão do setor público…
Tarso Genro: Com funções pré-vistas desempenhadas como se o gestor público fosse um parafuso de uma grande engrenagem. Isso é uma posição das mais radicalmente políticas que eu conheço, é como o fascismo trata a sua burocracia e como os regimes autoritários querem os seus funcionários, que tem que ser um elemento apenas da máquina e não pessoas que pensam. Então, um governo democrático que queira fazer mudanças deve ter uma gestão com uma base técnica profunda, funcionários qualificados e preparados, mas que seja política. Porque deve incorporar nas suas decisões a sensibilidade com que a sociedade olha os programas que o governo político propõe. Se isso não ocorrer, aumenta o distanciamento do cidadão comum do Estado e em consequência ele vai ser mais hostil à politica, ao Estado e a sua mente vai ser cada vez mais dominada por esta aparente facilidade neoliberal: a de que o Estado é uma máquina e que deve ser mandado pelas finanças e pela visão tradicional do enxugamento da máquina, que resolveria todas as questões.
Foi nesse vácuo de representação que surgiram Os Indignados e o Ocuppy Wall Street, que não se sentem contemplados por esse modelo. Qual é a sua avaliação desses movimentos?
Tarso Genro: Aí tem que fazer uma digressão para a questão dos partidos políticas. A forma moderna de organização partidária, que começou com força no século XIX, está totalmente superada. Os partidos se ergueram sobre sociedades tipicamente classificadas, de classes bem identificáveis que projetavam as suas expectativas nos partidos que as representavam. Com as mudanças na sociedade capitalista nos últimos 40 anos, as classes sociais se reestruturaram. Criou-se uma constelação de sujeitos que não cabem mais na representação de partidos. Por exemplo, esses novos trabalhadores que são microempresários autônomos, cujo trabalho é controlado pelo resultado e não na linha da fábrica moderna. O que eles são? Empresários? Trabalhadores de média renda? Alguns recebem menos do que um operário especializado. Então, essa fragmentação da sociedade não foi acompanhada pelos partidos, nem nos seus programas nem na sua organização interna. Vocês sabem de algum partido que tenha um sistema de consulta para sua base social, ou para quem não é a sua base social, para tomar as suas decisões? Não existe esse partido!
As decisões são tomadas pelas cúpulas…
Tarso Genro: Os partidos ainda estão naquela visão de cima para baixo e de baixo para cima, não da maneira horizontal como é a sociedade em rede na transmissão da inteligência, da informação, dos processos produtivos, das novas tecnologias, e assim por diante. Então, essa turma que está emergindo não se sente representada. O problema é que cada um deles é um: não formam um grupo homogêneo, tem desde vegetarianos radicais até pessoas que querem democracia direta por redes virtuais. Isso coloca o movimento com uma certa impotência, é preciso constituir formas de representação e de organização de um programa comum. Quem sabe possa ser o controle público do Estado através de democracia direta virtual ou de mecanismos de transparência. Eles são um sintoma, sua presença na cena pública é um elemento de democratização da sociedade, mas ainda estão longe de exercerem influência nas decisões de governo e de Estado.
Madri – Ministro da Educação em 2004, época em que foi implementada a política de cotas raciais nas universidades públicas, o governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro (PT), avalia que a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que considerou constitucional essa medida permite avanços maiores na busca pela igualdade no País. “Ganhamos o debate político, mesmo tendo a maior parte da mídia contra.” Agora, o petista defende que se debata no Congresso Nacional uma alteração na na Constituição Federal que institua, por um período determinado, a obrigatoriedade de vagas para afrodescendentes nas instituições federais de ensino superior.
Tarso expôs sua análise sobre o tema em uma entrevista exclusiva em Madri, onde participou de um seminário sobre a crise de representação e os desafios da democracia, com pensadores de Espanha e Portugal no final de semana. O governador gaúcho argumentou que o modelo neoliberal tenta desprestigiar a política para fortalecer a presença do capital no Estado. E que isso faz com o que o cidadão se afaste da vida pública. Ele ainda opinou sobre movimentos da sociedade civil como Os Indignados e projetou a ação da esquerda a partir da vitória de François Hollande na França:
“Pode ser o início de uma mudança nos padrões políticos da integração europeia, com reflexos na economia. Agora, isso só é determinável pela própria política, os partidos tem que querer. Se Hollande fizer apenas remendos, a crise vai se resolver através desses métodos que estão sendo propostos hoje e que tem abalado a comunidade trabalhadora.”
O senhor ficou satisfeito com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a constitucionalidade da política de cotas raciais nas universidades públicas, inciada quando o senhor era ministro da Educação?
Tarso Genro: Na época houve uma movimentação muito grande dos setores mais conservadores, uma tentativa de impugnar essa política. Diziam que iria rebaixar a qualidade da universidade, o que se comprovou improcedente. Foi um debate duro, fui muito atacado, ridicularizado e até mesmo ofendido por setores da imprensa conservadora. Teve um articulista de São Paulo que chegou a me chamar de racista! Essa decisão do Supremo permite que se adotem políticas de discriminação positiva. Isso não deve perdurar para sempre: quando tivermos um nível de coesão maior e não houver mais essa combinação de miséria social com vínculos raciais como temos hoje, as cotas podem ser extintas. É uma política democrática porque as camadas mais pobres, de afrodescendentes, que historicamente foram discriminadas, passam a sentir-se pertencentes à democracia. Isso é bom para ricos, pobres, é bom para a formação de uma ideia de nação.
E a cobertura da imprensa agora, como foi na sua avaliação?
Tarso Genro: Foi parcial, inclusive a cobertura do resultado (do julgamento do STF). As notícias foram dadas reconhecendo a decisão, mas a maioria o fazia criticamente, como se o Supremo estivesse adotando uma posição errada. Essa questão não diz respeito somente à mídia, é reflexo de um conceito de Brasil, de nação, de uma visão pré-moderna do significado da igualdade. O princípio da igualdade formal contém o princípio do tratamento desigual aos desiguais para que as pessoas possam ser iguais formalmente. Essa decisão do STF é uma aplicação plena do princípio da igualdade formal, porque trata desigualmente os desiguais, já que é comprovável empiricamente que negros e pobres têm mais dificuldades de entrar na universidade. A partir do momento em que se cria uma cota, se abre uma possibilidade de que as pessoas sejam tratadas de forma mais igual. Em momentos como esse, essas visões mais conservadoras se expressam de uma maneira meio raivosa, eu diria até meio fascista. Mas teve um conjunto de acadêmicos, de pessoas que não sustentavam essa posição, que fizeram um debate elevado e qualificado.
Essa decisão do STF deve diminuir a resistência às cotas?
Tarso Genro: Sempre vai haver resistência porque se trata de uma concepção de democracia e de mundo. O Supremo termina com o contencioso jurídico, com a interpretação constitucional, o que deve criar movimentos de simpatia dentro das universidades federais para desenvolver políticas desse tipo. Mas coisas como essa sempre tem um lento processo de assimilação. O fim da escravidão, por exemplo, tem um marco legal da sua decisão política no país (a abolição da escravatura, em 1888), mas precisou passar décadas para que fosse assimilado por setores da sociedade que tinham uma cultura de rejeição da comunidade afrodescendente.
Tanto que o movimento negro mudou o dia da consciência negra para a data da morte de Zumbi dos Palmares…
Tarso Genro: E isso demorou muito…
Segundo IBGE, entre 1997 e 2007, o percentual de negros nas universidades aumentou só 1,8%. A adoção das cotas, em 2004, ainda é muito recente para ter um impacto maior?
Tarso Genro: Esse número é consequência do fato de que nem todas as universidades públicas aplicam as cotas. Também porque em determinadas regiões há uma frequência muito grande de negros e afrodescendentes na universidades, caso da Bahia. Esse dado também está relacionado com o fato de que não é massivo o percentual de afrodescendentes que termina o ensino médio. E essa mesma estatística no âmbito do Prouni é diferente: nas universidades privadas que adotaram o programa, dobrou o número de afrodescendentes matriculados: eram 22% e chegou a 44%. Mas esse avanço de 1,8% nas federais é muito positivo, são milhares de famílias dos setores mais subalternos da sociedade que abrem uma nova possibilidade de vida.
No ano passado o Censo apontou que mais da metade da população brasileira se considera não branca. Já é um reflexo de medidas como esta?
Tarso Genro: Acho que sim. Mas o Brasil, em função da colonização portuguesa não é um país essencialmente racista, como foram os Estados Unidos. Sempre me opus aos dirigentes do movimento negro que colocavam nosso país como racista. Temos certa discriminação social e racial originária da escravidão, que está muito mais vinculada à cor da pele do que à descendência. Por isso é muito mais fácil combater esses preconceitos. A decisão do STF é uma grande interferência nessa cultura. É bom para irmos compondo uma ideia de nação mais coesa, menos discriminatória.
Tendo em vista que é o próprio candidato a universitário que se declara cotista, é possível diminuir distorções, como o caso dos gêmeos em que um se inscreveu como negro e o outro como branco?
Tarso Genro: Essa distorção é fruto de uma análise não do conjunto da proposta, mas de uma visão meramente lógico-formal. Fica parecendo que basta a pessoa se autodeclarar afrodescendente para ter a vaga assegurada. Mas neste caso, ela vai concorrer num âmbito menor de vagas, logo, vai ser tão duro para ela entrar na universidade quanto para os demais. Não há uma vantagem nisso, a única vantagem é que se garante na universidade o percentual de afrodescendentes correspondente ao percentual que existe entre a população. É uma política engenhosa e correta.
O senhor falou em um processo que irá avançar ao longo do tempo. Isso vale, por exemplo para as universidades públicas – nem todas aplicam as cotas?
Tarso Genro: Pelo que estou informado é uma minoria das federais que adotam, mas isso agora vai evoluir. A decisão do Supremo dá legalidade e legitimidade para essa política e vão ocorrer movimentos e diálogos no âmbito das federais para que elas adotem as cotas. É preciso lembrar que essa decisão não obriga as universidades a aplicarem a política de cotas. Isso está reservado à autonomia das instituições de ensino superior. As cotas só são obrigatórias no âmbito do Prouni, porque aí decorre de uma lei.
Mas há alguma autocrítica a ser feita a essa política?
Tarso Genro: Não, pelo contrário. Poderíamos lutar para colocar um dispositivo na Constituição Federal, que tivesse validade transitória, e que obrigasse a aplicação da política de cotas por dez anos em todas as universidades federais. É uma abertura que o Supremo está dando, mas não sei se os nossos legisladores conseguiriam o percentual para fazer uma reforma dessa natureza. É uma política positiva, que deve ser temporária. Governos com políticas públicas fortes podem ter uma interferência muito grande na mobilidade social, que no Brasil é travada pela desigualdade e por questões de preconceito de cor e projeção da escravidão na mente das pessoas até hoje.
O fato de ter sido uma aprovação unânime do STF pode interferir positivamente em uma eventual reforma da Constituição?
Tarso Genro: Ajuda e mostra que ganhamos o debate político, mesmo tendo a maior parte da mídia contra. Foi um debate feito nas academias, nos sindicatos, nas redes, na imprensa – inclusive por parte de alguns grandes jornais que abriram espaço para uma opinião alternativa. O Supremo é uma instância política e jurídica da nação, é onde a política se encontra com o direito através da Constituição. Obviamente o debate que se travou nesse período teve influencia sim – se os nossos argumentos tivessem sido soterrados pelos adversários da política de cotas, provavelmente não seria essa a decisão do Supremo, pelo menos no que se refere à unanimidade.
Passando agora à sua agenda aqui na Europa. A crise econômica vem sendo combatida com medidas de cortes nos gastos públicos, inclusive em setores como saúde e educação. Há protestos, mas não se constituiu uma alternativa. Qual é a sua avaliação da crise econômica?
Tarso Genro: Não podemos ter a arrogância de julgar a crise europeia porque a estrutura social e política aqui é mais avançada e consolidada que no Brasil. Mas podemos apontar três elementos da crise: o primeiro é que foram constituídos na Europa projetos social-democratas sem fundos. A sociedade projetou nas leis e nas Constituições um sistema de proteção social que, para manter, o Estado precisou se endividar. O segundo problema é que os padrões de integração da União Europeia são ditados hoje por um país que fez uma social-democracia com fundos, a Alemanha: tem forte presença no comércio internacional, base tecnológica, uma instância produtiva de alta qualidade que permite que o Estado financie a social-democracia. Tanto que as perdas dos trabalhadores alemães nesse período são infinitamente menores em relação ao resto da Europa. E, em terceiro lugar, o que se observa é que aquela visão que julgávamos que estava acabada – a de que não há alternativa ao neoliberalismo – não está.
A própria social-democracia incorporou a fatalidade da constituição da União Europeia a partir dos padrões ditados pelo Banco Central Alemão. Isso determina esse esgarçamento social que está aí na Islândia, Irlanda, Grécia, Espanha, Itália, Portugal. A crise tem uma dimensão econômico-material e também uma dimensão política. As saídas só poderiam ser estas? Tem uma parte da esquerda europeia que diz que não, defende a emissão de Eurobonus garantidos não pelos bancos mas pelos estados, pedem recursos para modernizar e qualificar a sua base produtiva e não dinheiro liberado para salvar os bancos.
A própria chanceler alemã, Angela Merkel, já admite a possibilidade de um plano de crescimento.
Tarso Genro: Isso já é resultado dessa terceira questão, que é a questão política. A sinalização que está dando a França com a vitória de Hollande – embora dificilmente tenha efeitos a curto prazo nas saídas para a crise – enuncia a possibilidade de uma renegociação, mas que só pode ser feita a partir de critérios políticos que a oposição antineoliberal adote, senão ela não sairá. Porque a “solução” natural da crise é esta que está aí. A outra é uma solução politizada.
A esquerda não deu solução para a crise – como aqui na Espanha com o Partido Socialista (PSOE) – e a direita voltou ao poder em diversos países europeus. A eleição de Hollande na França pode ser o início de uma guinada à esquerda?
Tarso Genro: Pode ser o início de uma mudança nos padrões políticos da integração europeia, com reflexos na economia. Agora, isso só é determinável pela própria política, os partidos tem que querer. Se Hollande, ao invés de propor uma mudança na integração europeia, fizer apenas remendos, fatalmente a crise vai se resolver através desses métodos que estão sendo propostos hoje e que tem abalado a comunidade trabalhadora da Europa, particularmente na Espanha, Portugal e Grécia.
Essa incapacidade de dar soluções ao problema econômico é o que gera a crise de representação dos partidos políticos?
Tarso Genro: A crise do regime democrático é uma crise de encontro do capitalismo com a democracia. Não é que a democracia política seja inviável no capitalismo, já se demonstrou que é. Mas no momento atual, para que o projeto neoliberal continue em curso, é necessário degradar as instituições políticas, reduzir a importância dos partidos e acentuar a impotência da mobilização social que se contrapõe ao projeto neoliberal. E isso está sendo feito de maneira meticulosa. Uma das questões chave para que represtigiemos a democracia é derrubar as barreiras burocráticas que separam o Estado do cidadão comum. Segundo, revitalizar a política e os partidos. E, terceiro, desenvolver políticas públicas que sejam compreendidas pela sociedade. Constituindo um sistema de participação popular cidadã por vários meios – virtual, assembleias presenciais, consultas e referendos, conselhos – para que a sociedade produza em conjunto com o Estado as políticas públicas que a façam avançar. Nesse processo, uma das questões mais importantes é a gestão. Ela foi praticamente dominada pelo pensamento neoliberal: para que fosse boa, tinha que ser despolitizada e feita por burocratas técnicos sem sensibilidade política e sem mente social.
A chamada profissionalização da gestão do setor público…
Tarso Genro: Com funções pré-vistas desempenhadas como se o gestor público fosse um parafuso de uma grande engrenagem. Isso é uma posição das mais radicalmente políticas que eu conheço, é como o fascismo trata a sua burocracia e como os regimes autoritários querem os seus funcionários, que tem que ser um elemento apenas da máquina e não pessoas que pensam. Então, um governo democrático que queira fazer mudanças deve ter uma gestão com uma base técnica profunda, funcionários qualificados e preparados, mas que seja política. Porque deve incorporar nas suas decisões a sensibilidade com que a sociedade olha os programas que o governo político propõe. Se isso não ocorrer, aumenta o distanciamento do cidadão comum do Estado e em consequência ele vai ser mais hostil à politica, ao Estado e a sua mente vai ser cada vez mais dominada por esta aparente facilidade neoliberal: a de que o Estado é uma máquina e que deve ser mandado pelas finanças e pela visão tradicional do enxugamento da máquina, que resolveria todas as questões.
Foi nesse vácuo de representação que surgiram Os Indignados e o Ocuppy Wall Street, que não se sentem contemplados por esse modelo. Qual é a sua avaliação desses movimentos?
Tarso Genro: Aí tem que fazer uma digressão para a questão dos partidos políticas. A forma moderna de organização partidária, que começou com força no século XIX, está totalmente superada. Os partidos se ergueram sobre sociedades tipicamente classificadas, de classes bem identificáveis que projetavam as suas expectativas nos partidos que as representavam. Com as mudanças na sociedade capitalista nos últimos 40 anos, as classes sociais se reestruturaram. Criou-se uma constelação de sujeitos que não cabem mais na representação de partidos. Por exemplo, esses novos trabalhadores que são microempresários autônomos, cujo trabalho é controlado pelo resultado e não na linha da fábrica moderna. O que eles são? Empresários? Trabalhadores de média renda? Alguns recebem menos do que um operário especializado. Então, essa fragmentação da sociedade não foi acompanhada pelos partidos, nem nos seus programas nem na sua organização interna. Vocês sabem de algum partido que tenha um sistema de consulta para sua base social, ou para quem não é a sua base social, para tomar as suas decisões? Não existe esse partido!
As decisões são tomadas pelas cúpulas…
Tarso Genro: Os partidos ainda estão naquela visão de cima para baixo e de baixo para cima, não da maneira horizontal como é a sociedade em rede na transmissão da inteligência, da informação, dos processos produtivos, das novas tecnologias, e assim por diante. Então, essa turma que está emergindo não se sente representada. O problema é que cada um deles é um: não formam um grupo homogêneo, tem desde vegetarianos radicais até pessoas que querem democracia direta por redes virtuais. Isso coloca o movimento com uma certa impotência, é preciso constituir formas de representação e de organização de um programa comum. Quem sabe possa ser o controle público do Estado através de democracia direta virtual ou de mecanismos de transparência. Eles são um sintoma, sua presença na cena pública é um elemento de democratização da sociedade, mas ainda estão longe de exercerem influência nas decisões de governo e de Estado.