Prefácio do livro récem-publicado de Manuel Kellner
Ernest Mandel (1923-1995) foi não apenas o principal dirigente da Quarta Internacional na segunda metade do século XX e um economista conhecido mundialmente, mas também rejuvenesceu a teoria marxista com uma perspectiva revolucionária humanista. Diferente de muitos outros dirigentes que reivindicam herdar o legado de Leon Trótski, Ernest Mandel nunca transformou esta herança em um corpo de trabalho dogmático ou em um conjunto de receitas universais. Seu otimismo excessivo o levou a se equivocar em algumas de suas previsões, mas, no entanto, ele elaborou análises que permanecem pontos de referência necessários para os marxistas revolucionários de hoje.
Há uma coleção de ensaios homenageando Mandel, The Legacy of Ernest Mandel, organizada por Gilbert Achcar (Londres: Verso, 2000), e uma excelente biografia escrita por Jan Willem Stutje, Ernest Mandel: a Rebel’s Dream Deferred (Londres: Verso, 2009). Mas o livro de Manuel Kellner é o primeiro exercício substancial que apresenta sistematicamente o pensamento econômico e político de Ernest Mandel. O trabalho foi originalmente elaborado como uma tese para a Universidade de Marburg (Alemanha). Manuel Kellner é um dos principais dirigentes da seção alemã da Quarta Internacional, assim como é um ativista do partido Die Linke e do sindicato IG Metall.
Este livro marcante é um estudo rigoroso e preciso das ideias de um dos mais influentes intelectuais marxistas de seu tempo. Manuel Kellner se define como um discípulo de Ernest Mandel que tomou gradualmente a necessária distância de seu mentor para escrever sobre ele. Isso se reflete na estrutura do livro. Em primeiro lugar, Manuel Kellner apresenta, sintetiza e explica as posições de Ernest Mandel, e depois as discute criticamente no capítulo final. Isso é uma pena, pois teria sido muito melhor se a distância crítica tivesse estado presente ao longo do livro.
Manuel Kellner revisa brevemente os principais momentos da vida de Ernest Mandel: sua participação na resistência na Bélgica, sua detenção nos campos nazistas, seu papel como dirigente da esquerda socialista na Bélgica e sua contribuição para o desenvolvimento da Quarta Internacional. O autor faz isso olhando para a relação entre “teoria e prática”. Mas o que realmente lhe interessa é a contribuição de Ernest Mandel para uma crítica do capitalismo contemporâneo: o método de análise histórico/orgânico, a teoria das crises, o capitalismo tardio, as ondas longas da economia. Manuel Kellner destaca o que é essencial: as análises de Ernest Mandel não eram exercícios acadêmicos, mas estavam diretamente ligadas à sua luta enquanto pensador e militante anticapitalista!
Kellner também analisa o que ele chama de a “dimensão utópica de Mandel”, isto é, sua concepção de socialismo como objetivo final da luta proletária. Ernest Mandel deu ao conceito de “utopia” um significado um tanto pejorativo, mas Kellner está correto em fornecer-lhe uma dimensão mais positiva. A definição de socialismo de Ernest Mandel permaneceu, no geral, dentro do modelo de Outubro de 1917, isto é, uma república de conselhos de trabalhadores. Quando a Quarta Internacional adotou a resolução “Democracia socialista e ditadura do proletariado” em seu Congresso de 1984, ele se distanciou um pouco da experiência bolchevique e se inspirou nas ideias revolucionárias democráticas de Rosa Luxemburgo. Esse também foi o caso em sua luta contra a burocracia stalinista e em sua crítica dos “anos obscuros” de Lênin e Trótski, que foram marcados por uma tentação “substitucionista” – uma tentação que também afetou a social-democracia e o austro-marxismo de Otto Bauer.
A discussão sobre estratégia socialista é o aspecto mais importante do livro de Manuel Kellner. Ele revisita as concepções de Ernest Mandel sobre a greve de massas, as reivindicações transitórias, a dupla natureza dos sindicatos, a consciência de classe e o partido revolucionário, a frente única e, é claro, a revolução permanente e o internacionalismo. O principal fio de sua estratégia, que é tecido através destes temas, é o da auto-organização “desde baixo” das classes subalternas.
Em outras seções do livro, Manuel Kellner discute o trabalho de Ernest Mandel sobre a teoria do fascismo de Leon Trótski e seus escritos sobre o holocausto. Enquanto a primeira está possivelmente entre as contribuições mais ricas e interessantes de Ernest Mandel, os últimos são muito mais problemáticos. Manuel Kellner reconhece que Ernest Mandel teve grande dificuldade de considerar o caráter “específico” do genocídio de judeus e nem sempre escapou de uma tendência a “relativizar” o crime como uma das várias atrocidades cometidas pelo imperialismo e pelo colonialismo.
O capítulo final, “Avaliação e perspectivas”, é um dos mais interessantes do livro porque Manuel Kellner se distancia do trabalho de seu mestre e delineia uma série de críticas. Elas se relacionam em particular com o problemático conceito de Estado operário burocratizado, que Ernest Mandel acreditou poder ser aplicado até mesmo ao Camboja de Pol Pot! Mas Ernest Mandel foi um otimista incorrigível em suas previsões, seja sobre o potencial revolucionário da Europa Ocidental (desde 1946!) ou sobre a improbabilidade de uma restauração capitalista no leste europeu após a queda do Muro em 1989. Manuel Kellner menciona aqui, sem totalmente concordar com ela, a distinção que fiz em minha própria contribuição ao The Legacy of Ernest Mandel entre o legítimo otimismo antropológico de Ernest Mandel e o otimismo que não era baseado em previsões históricas.
No entanto, Manuel Kellner mostra muito bem que o fio comum que percorre os escritos de Ernest Mandel e sua concepção de estratégia revolucionária foi a auto-determinação e auto-atividade da classe trabalhadora como as pedras-de-toque do processo de emancipação universal humana.
O último texto de Mandel é uma polêmica com a seita “espartaquista” norteamericana. Ele já estava sofrendo de uma condição cardíaca, mas decidiu viajar para Nova York para este debate, contra o conselho de seus amigos (incluindo o autor deste prefácio). Neste texto, Ernest Mandel reconhece duas importantes lacunas na bagagem teórica do marxismo revolucionário: a crise ecológica e a opressão das mulheres. Manuel Kellner observa sobriamente que estas tarefas estão em grande parte diante de nós.
Em seus últimos anos, Ernest Mandel começou a integrar a crise ecológica de maneira significativa em seu pensamento. Mas foi apenas nos anos 2000 que a Quarta Internacional adotou uma perspectiva ecossocialista – isto é, uma refundação ecológica do socialismo – em seu programa e estratégia.
Michael Löwy é diretor de pesquisa em sociologia no Centre nationale de la recherche scientifique (CNRS). Autor, entre outros livros, de O que é o ecossocialismo (Cortez).
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