Mulheres e homens no seu fazer diário se defrontam com conceitos e valores, seguidas vezes, sem se darem conta, de que estes conceitos são incorporados nos cabedários de informações com os quais constroem e elaboram seus mundos. O poder coercitivo dos fatos sociais é compreensão bastante consensuada nas ciências sociais.
FREDERICO LISBÔA ROMÃO
Muitas vezes a coerção ocorre dissimulada, sendo o tempo o responsável por introjetar valores que são apreendidos e aprendidos como naturais. A naturalização dos conceitos, muitas vezes, não permite que se percebam conteúdos excludentes, preconceituosos e oblinubadores do real.
Muitos já ouviram essas canções:
Lata d’água na cabeça / Lá vai Maria / Lá vai Maria
Sobe o morro e não se cansa / Pela mão / Leva a criança / Lá vai Maria
Lava a roupa / Lá no alto / Lutando pelo pão / De cada dia / Lata d’água ….
(Lata d’àgua, de Luís Antonio e J. Júnior)
Quero uma mulher / Que saiba lavar e cozinhar
E de manhã cedo / Me acorde na hora de trabalhar
(Emília, de Wilson Batista e Haroldo Lobo)
No atiço da panela, no batuque do pilão / Tem somente quinze filhos mais o taxo do feijão
Sarampo catapora, mais roupa pra lavar / Resfriado, tosse braba, lenha para carregar
Pote na cabeça, tem xerém pra cozinhar
(A Mulher do Meu Patrão, Luíz Gonzaga)
As poesias ao retratarem o cotidiano urbano e rural, da lata d’agua ou do pote na cabeça, não deixam dúvidas quanto à estreita relação das mulheres com a água no campo e na cidade, mas muito pouca reflexão sobre isso é percebida no circuito midiático. São elas as responsáveis pelo manuseio diário da àgua para o abastecimento da família em suas diversas modalidades, seja no preparo da alimentação, seja na limpeza da casa e das roupas, na rega da horta e no cuidado com os animais. Ninguém conhece mais a importância da água do que elas, que perdem seus filhos aos milhares por não terem acesso a água potável (freswater). Essa é uma realidade no Brasil e em diversos outros países (Aureli e Brelet, 2004).
Não obstante a ligação umbilical das mulheres com os recursos hídricos e a crise sem precedentes de escassez desse bem essencial, elas continuam sendo, em considerável medida, excluídas dos forúns de decisão que pensam as políticas de água. A exclusão de gênero não é fato novo. Tal tem se objetivado em elementos econômicos, sociais e políticos. A infantilização das mulheres no Brasil, no início do século XX, quando da montagem da legislação trabalhista, contribuiu para conformar um mercado de trabalho majoritariamente masculino. No último quartel daquele mesmo século, a não observância dos interesses das mulheres, por um lado, e sua participação na economia e em programas sociais levam a díspares caracterizações de “welfare state” nos Estados de economias centrais.
Hoje mais de 900 milhões de pessoas convivem com a escassez de água e mais de 1,3 bilhão convivem com a inexistência do esgotamento sanitário. Dados recentes apontam para o colapso do equilíbrio ecológico e recrudecimento das disputas pelas fontes de água (UNDP, 2007).
Ao encerrar-se o mês no qual mundialmente se discute a questão ambiental e da mulher, é fundamental afirmar que os fatos impõem como obrigação ética a presença feminina nos forúns, autarquias e organismos nacionais e internacionais que discutem e formulam políticas e ações correlatas à questão ambiental, notadamente da água. A ausência das mulheres dos espaços de poder não pode ser vista como um processo natural. A exclusão de gênero foi socialmente construída, cabe agora sua breve desconstrução.
Desde fins do século passado que organismos internacionais já explicitam em seus relatórios e fóruns da necessidade da presença feminina nos espaços formuladores dos designes, planejamentos e decisões. Em 1997, a UNESCO em cooperação com a UNICEF, UNDP e Banco Mundial organizou, na África do Sul, um seminário regional intitulado “Women’s Participation and Gener Consideration in Water Supply and Sanitation Services”, no qual observa a presença da mulher na gestão como valor eticamente fundante (Aureli e Brelet, 2004).
O Brasil tem muito que avançar no tocante a essas questões. Inegavelmente, a presença da ministra Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente significa grande avanço, porém há deveras ainda muito por fazer. Se a infantilização das mulheres ocorrida no Brasil provocou a masculinização do mercado de trabalho; se a não observância da questão de gênero, quando da caracterização dos tipos de “welfare state”, originou “imprecisões analíticas”, atualmente, a ausência do olhar e sensibilidade feminina sobre a questão ambiental significará com certeza o aprofundamento da crise.
Frederico Lisbôa Romão, é doutor em Ciências Sociais pela UNICAMP
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