Falam que fizeram no passado para se reafirmarem os salvadores no presente. Sim, salvadores de suas próprias peles. A falada abolição é somente mais um ato da elite branca brasileira para a manutenção de seus privilégios. Cotidianamente, rememoram uma história a qual somente os seus se beneficiam e a escreve. E, o que seria mais falsa do que a “liberdade” com ausência de direitos e garantias mínimas para a subsistência? A sanção da Lei Áurea no dia 13 de maio de 1888 e como a venderam historicamente reforça o significado da ausência de políticas públicas voltadas para a população negra.
Antes de nos atermos ao ponto da Lei Áurea, precisamos refletir sobre alguns instrumentos legais voltados à população negra no período escravocrata brasileiro, mais precisamente a Lei do Sexagenário, promulgada em 28 de setembro de 1885, que concedia a liberdade quando o escravizado ultrapassava os 60 anos. Ora, poucos negros escravizados conseguiam chegar aos seus 30 ou 40 anos. O fetiche para se reafirmar enquanto salvador e libertador perpassa na prática histórica da elite brasileira. As falsas liberdades que apresentavam aos negros no período da escravidão e pós-escravidão ainda se mostram nas práticas da realidade contemporânea, com modificações, veladas, mas nua e crua.
Retornemos a questão da Lei Áurea. Neste momento histórico, nós, negros e negras, passamos da condição de escravizados para excluídos socialmente. O 13 de maio de 1888 deve ser lembrando como dia da negação da dignidade humana aos negros, da negação dos meios de subsistência para viver. Essa é a dita liberdade que negou a terra, negou o trabalho – dito como livre trazido pelo capitalismo. E empregos? Não para os negros! O que ocorreu foi um chamado para que europeus ocupassem as tais vagas de trabalho, já que os ex-escravizados não os serviam mais e não tinham educação necessária para servir ao modo de produção capitalista. E o que percebemos mais uma vez é que o processo abolicionista foi feito para a manutenção da elite.
Vivemos, ainda hoje, os reflexos da falsa liberdade que nos foi apresentada e nos contam nas escolas, apontando a Princesa Isabel como libertadora de escravizados. A não concessão de terras população negra ex-escravizada reflete diretamente no que as favelas nos apresentam atualmente. Essas, por vez, contam com a ausência do Estado nas ações de políticas públicas, educação, saúde, trabalho, renda, moradia, etc. Segundo a pesquisa “Economia das Favelas – Renda e Consumo das Favelas brasileiras”, divulgada no início desse ano, mostra que cerca de 13,6 milhões de pessoas estão morando em favelas. Ainda segundo a pesquisa, 67% dos moradores dessas comunidades se autodeclararam negros e que 49% dos lares são as mulheres que chefiam.
O acesso a educação também é um direito negado historicamente. Vejamos a Constituição de 1824, a qual colocava a escola enquanto direito de todos, mas os escravizados não eram lidos como cidadãos, que por seguinte, não tinham acesso a mesma. Somente em 1878 se permitiu a matrícula de negros libertos maiores de 14 anos, mas esses vivenciaram diversas dificuldades, tendo em vista a discriminação racial e social que enfrentavam. Já durante os anos de 1990, o movimento negro levantou várias bandeiras para a promoção e acesso da população negra ao ensino, que se concretizaram somente nos anos 2000, como as cotas raciais no ensino superior, a lei que institui a obrigatoriedade do ensino da história africana e afro-brasileira nas escolas, etc. Mesmo com alguns avanços nesse setor, a exemplo dos negros chegarem a ser 50,3% dos estudantes das instituições públicas de ensino superior do Brasil (Estudo desigualdades sociais por cor e raça no Brasil/IBGE – 2018), sabemos que isso não reflete no mercado de trabalho e na ocupação de cargos com salários maiores que requerem formação superior.
Vivenciamos no Brasil, com os governos democráticos e populares, dos últimos anos, avanços nas políticas de promoção da igualdade racial, mas que logo após o golpe de 2016, vem sofrendo diversos ataques, reforçando qual a visão e projeto que a elite brasileira tem para a população negra e pobre. As eleições de 2018, a qual elegeram Bolsonaro, transfigura os anseios da elite do atraso, neoconservadora, que se utiliza da retirada de direitos em conjunto com a força policial para repreender ainda mais os vulneráveis.
Nesse período de pandemia, onde vemos que o COVID-19 atinge à todos, sabemos que o acesso à saúde se dá de forma desigual para a população negra e pobre, há apelos constantes pela necessidade de se ficar em casa para diminuir no contágio pelo vírus, mas em quais condições? As classes populares temem perder o emprego, e, consequentemente, a sua renda para comprar os subsídios mínimos para alimentação. Em pesquisa do Data Favela/Instituto locomotiva divulgado em março deste ano, a qual a mesma foi feita em 262 comunidades de todos os estados brasileiros, 86% das pessoas apontam que teriam dificuldades para comprar comida se ficassem um mês sem trabalhar. Uma das alternativas apresentadas pelas organizações que atuam dentro de comunidades e movimentos sociais foi a arrecadação e distribuição de cestas básicas. E o Governo Bolsonaro? Mesmo com a conquista da aprovação do Auxílio Emergencial no Congresso Nacional e sanção presidencial, toda a cúpula do Governo tende a minimizar os impactos do novo Coronavírus na vida da população periférica, não apresentando algo sistematizado e dificultando o acesso, além de fazer constantes incentivos para a reabertura do comércio. Afinal, quem tem direito a vida? A elite brasileira repete seu passado negando acesso a direitos, jogando às famílias negras o sofrimento e a violência, mas, diferente do que querem, nós reforçamos nossos laços, nossos instrumentos de mobilização e organização para nos ajudarmos, e resistimos.
Como reforça Chimamanda Ngozi, a história única é um perigo porque ela contribui para a manutenção de interesses, de um status quo. Cabe a nós questionarmos essas histórias. Cabe a nós questionarmos a quem realmente serviu e serve a falsa abolição e seus reflexos. As correntes podem até tentar nos prender, mas nós sabemos a necessidade de rompê-las, e fazemos isso cotidianamente. 13 de maio não é dia de negro, é dia de luta, de reivindicação por direitos.
#ForaBolsonaro
Genderson Costa é diretor de Combate dão Racismo da UNE e estudante de Serviço Social na UERN.
Publicado originalmente na UNE.
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