“Esse é tempo de partido,
tempo de homens partidos.”
Carlos Drummond de Andrade
– Três refeições por dia
Quando Lula assumiu a Presidência da República, em primeiro de janeiro de 2003, prometeu lutar para que todos os brasileiros tivessem três refeições por dia. No governo, criou o Fome Zero para combater a privação alimentar que, à época, estimava-se em 40 milhões de pessoas. O programa visava atacar as causas estruturais do problema, como a concentração da riqueza e das terras. Tinha Frei Beto na Coordenação da Mobilização Social para a sustentação do desígnio. O mesmo durou cinco anos até o Bolsa Família converter-se em prioridade e tornar-se, depois da Previdência Social, no maior fator de distribuição de renda no Brasil. A reviravolta suscitou polêmica.
O Fome Zero, em tese, articulava-se com todas as pontas da administração federal, estadual e municipal. Frei Beto, por isso, considerava que possuía caráter emancipatório, enquanto o Bolsa Família teria caráter assistencialista. Sem adentrar na discussão, o importante é sublinhar que a fome fora, enfim, assumida como tema incontornável no Palácio do Planalto. Foi o dado novo na posse do presidente Luis Inácio Lula da Silva e no exercício de seu(s) mandato(s).
Se o Fome Zero obedecia à implementação centralizada, o Bolsa Família passou a ser administrado nos municípios pelas próprias Prefeituras. Estas reclamavam que não tiravam dividendos eleitorais ao acompanhar a trajetória do Fome Zero. Para saber sobre os desdobramentos do programa, ver os três volumes com mais de cem autores publicado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), em parceria com a Organização das Nações Unidas (ONU) para a Agricultura e Alimentação (FAO) e a Fundação Banco do Brasil: “Fome Zero: Uma História Brasileira” (2011). O livro, a partir de uma contextualização, trabalhava quatro eixos:
1) ampliação do acesso de alimentos;
2) fortalecimento da agricultura familiar;
3) geração de renda e;
4) articulação, mobilização e controle social.
Que o livro não tenha sido destacado pelos meios de comunicação, não espanta. Aqueles têm lado na luta de classes, e não é o do combate estrutural à fome rumo à democracia econômica.
– Injustiça econômica, injustiça política
Aqui, não é necessário lembrar as conquistas, seja do Fome Zero, seja do Bolsa Família. Elas são de conhecimento público, assim como a sua destruição após o impeachment de Dilma e os desgovernos de Temer e sobretudo Bolsonaro. Com a retomada do projeto do neoliberalismo (ideologia) e a respectiva forma econômica (o livre mercado), as desigualdades sociais aumentaram e, em paralelo, o desemprego, a pobreza, a miséria e a fome. Prenúncios de mortes.
Em escala mundial, segundo o relatório da Organização Não-Governamental (ONG) britânica Oxfam, divulgado durante o Fórum Econômico de Davos (2014), 1% da população detém metade de toda a riqueza produzida. “Trocando em miúdos, os 85 indivíduos mais ricos possuem o mesmo que os 3,5 bilhões no outro extremo social. O 1% detém 110 trilhões do total de 241 trilhões de dólares. Os Estados Unidos lideram a lista de discrepância na distribuição do bolo”. Ver “Thomas Piketty e os Segredos dos Ricos” (Le Monde Diplomatique, 2014).
Ninguém ignora que há uma relação estreita entre a concentração de riqueza (e terras) e a captura dos dispositivos políticos através de mandatos parlamentares, que asseguram a governabilidade (ou não, se for de sua vontade) em cada sociedade. A tendência com o agravamento das iniquidades é que se forje um véu para legitimar a opressão e a exploração, inclusive os crimes contra o meio ambiente. O teórico marxista Fredric Jameson (“Cultura e Capital Financeiro”, 1997) comparava o avanço neoliberal à propagação de um vírus biológico: “O sistema é como uma espécie de vírus… parecido a uma epidemia, uma epidemia de epidemias”. Com essa analogia, muito atual, sugeria que a dinâmica do neoliberalismo confrontava a humanidade com um grande Mal.
A concentração do poder político organiza a sociedade em benefício da minoria, às expensas das necessidades da grande maioria. As instâncias de representação da democracia formal revelam as contradições em suas entranhas. No Brasil, somente 10% do Congresso Nacional é composto por mulheres, embora elas componham 51% da população. Os trabalhadores urbanos e rurais não chegam a 20%. Os afrodescendentes não alcançam 10%. Em contrapartida, a bancada ruralista tem mais de duzentos representantes, sem contar a da saúde com ventríloquos de donos de hospitais, planos privados de saúde… e a das comunicações com porta-vozes de proprietários de rádios, televisões, jornais, etc. Sem democracia econômica, desvios convertem-se em regra.
– Acabar com a miséria e a pobreza
O sistema político brasileiro não é democrático, não representa a pluralidade do universo de eleitores. Eleitores chamados a votar de tantos em tantos anos e, no ínterim, esquecidos. Em raros momentos da história, elegeram-se alternativas populares. Invariavelmente, provocando a raiva das fornidas elites oligárquicas e da mídia com tentativas de golpe (1954, 1961) e golpes efetivados (1964 manu militari, 2016 manu institutionalem). O resultado das assimetrias na distribuição das cadeiras no Legislativo pode ser sintetizado no fato de que 13,7 milhões de famílias, isto é, 55 milhões de brasileiros (ou um quarto dos habitantes) beneficiam-se do programa Bolsa Família, que repassa RS 280 para uma família média de quatro membros. Dados de 2014.
Para se ter ideia, um plano para combater a miséria do que Jessé Souza denominou de “ralé brasileira”, na área da saúde, por exemplo, implicaria algumas medidas fundamentais por parte do Estado que ajudariam a movimentar a roda da economia, hoje em crise aguda:
a) estender os mecanismos de saneamento básico e de água potável às regiões mais pobres das periferias urbanas, o que está na contramão das decisões dos governantes neoliberais que propõem privatizar o serviço de abastecimento de água (e eletricidade);
b) priorizar campanhas de medicina preventiva aos moldes do que é feito em Cuba, ao invés de perpetuar a hegemonia da medicina curativa nas universidades nativas e;
c) fomentar a coleta e o processamento industrial do lixo urbano, cujo acúmulo é responsável por vários tipos de doenças e, ademais, reduz a autoestima dos moradores nas cercanias.
d) investir nos transportes públicos, como ônibus e trens nas grandes cidades, em lugar de metrôs para os bairros de classe média ou viadutos para contemplar automóveis poluentes.
Acabar com a miséria e a pobreza, porém, não está no horizonte das elites predatórias neocoloniais. A fome continuará alastrando-se, como o coronavírus, vitimando os segmentos já penalizados na sociedade de classes. O auxílio emergencial acenado pelo genocida-mor terá valor médio de R$ 250 limitado a uma pessoa por família, o que não supre as carências elementares das famílias em situação de vulnerabilidade. Serão quatro parcas parcelas de R$ 150 para quem mora sozinho e de R$ 375 para mães que chefiem a família. Economistas alertam que o aporte governamental não modificará os indicadores sociais. Ano passado o auxílio custou R$ 291 bilhões ao Erário. Agora que a pandemia tornou-se letal na n potência, reservou-se apenas R$ 44 bilhões.
– Genocídio premeditado desde o início
O que é ruim pode ficar pior. O governo Bolsonaro reduziu a receita do programa Farmácia Popular, o qual distribuía medicamentos gratuitos de uso contínuo para doenças crônicas: diabetes, hipertensão e asma, que agravam os casos de Covid-19. O Orçamento era de R$ 2,7 bilhões em 2020, passou para R$ 2,5 bilhões em 2021. A Farmácia Popular vende remédios subsidiados para controle de renite, mal de Parkinson, osteoporose e glaucoma, além de anticoncepcionais com descontos que batem em 90%. Milhões de pessoas sofrerão com o ajuste perverso.
Para o comparativo, não com o Produto Interno Bruto (PIB), senão com ações administrativas em curso, os EUA separaram 1,9 trilhão de dólares para socorrer as famílias e suas crianças, pequenas e médias empresas, estados e municípios. Acá… as oligarquias perderam a oportunidade de superar o proverbial complexo de vira-lata, adquirindo vacinas em março de 2020, o que não protagonizou por incompetência e incúria. Em outubro, o ministro da Saúde anunciou a aquisição de 46 milhões de doses imunizantes, foi desautorizado pelo presidente no dia seguinte. Na lógica genocida o morticínio não pode parar, ao contrário, precisa se multiplicar. Premeditadamente.
A pandemia de Covi-19, aliada à falta de apoio do governo Bolsonaro aos mais vulneráveis, acelerou o crescimento da penúria e colocou o país no “epicentro emergente” da fome (Made for Minds, 2020). O Brasil nos três índices medidos (a pobreza extrema, a pobreza e a desigualdade social) apresenta a mais baixa performance entre os países da América Latina (Banco Mundial, 2021). Quase 117 milhões de brasileiros não se alimentam como deveriam, com qualidade e quantidade suficientes. 19 milhões não têm absolutamente nada o que comer.
Em janeiro do corrente, 27 milhões de brasileiros (12,6%), número equivalente à população da Austrália, viviam com menos de R$ 246,00 ao mês (R$ 8,20 por dia): a linha de pobreza extrema calculada pela Fundação Getúlio Vargas Social (FGV). Há um ano eram 9 milhões. Cálculos procedidos com base nas Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios (PNADs). O quadro é dramático, e abarca em especial mulheres de periferia no papel de chefes de família, negras e com pequena escolaridade. Coisa que faz distante o sonho de nação mais justa, mais igual, sem fome. E, perto, as impressões de Graciliano Ramos (“Vidas Secas”, 1938) ao relatar o percurso da família de retirantes sertanejos que, de tempo em tempo, abandona áreas castigadas pela seca.
– A fome é a primazia da esquerda
O processo de desindustrialização do Brasil achatou o mercado interno, aprofundou o fosso societário e acirrou o pessimismo com a recuperação da economia. A participação da Indústria de Transformação cobria 21,6% do PIB em 1985, despencou para 11,4% em 2015, e seguiu caindo. Projeções indicam que a economia ficará aquém da média global em 2021 e não terá impulso com o aumento de preços das commodities (Institute of International Finance, outubro 2020).
Se no princípio foi o Verbo, no fim é o Caos. Não espanta, pudera: 13 das 26 montadoras de automóveis estão parcial ou totalmente paralisadas. Duas reduziram a produção e, uma, encerrou as operações. Antônio Conselheiro, ao fundar o Arraial de Canudos (1896) às margens do rio Vaza Barris, disse que “o sertão ia virar mar”. Não virou. Viramos, nós, um imenso sertão.
Por onde andamos, criaturas em estado falimentar esgueiram-se por entre becos e marquises, semáforos e beiras de esgotos, vilas no Sul e favelas no Norte, sem as três refeições desejadas, com o aluguel atrasado, sem a dignidade a que têm direito, com as portas fechadas à civilização, sem acesso aos mecanismos produtivos, com a mão estendida à procura de outras, sem ingresso para a modernidade líquida, com medo das SS (Schutzstaffel, Tropa de Proteção das autoridades) que perseguem o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Triste realidade.
“A fome latina não é somente um sintoma social alarmante”, mas “o nervo da sociedade”. Portanto, “um problema político”, registrou Glauber Rocha no texto-manifesto intitulado “Eztetyka da Fome” (1965). Valia o dito para os idos de 60 e vale para os sofridos 20, na atualidade Eis a primazia, entre as primazias, da esquerda na interlocução com o povo nas periferias urbanas. À luta.
- Luiz Marques é professor de Ciência Política, UFRGS
Apertado pela fome, 1945
Marcelino Vespeira (1925-2002)
Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.
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