Guerra Híbrida: um sintoma do idealismo geopolítico

Erick Kayser

O termo “guerra híbrida” ganhou algum destaque no campo da análise política internacional a partir da segunda década do século XXI, popularizada pelo estadunidense Andrew Korybko, com sua obra traduzida no Brasil como Guerras híbridas – das revoluções coloridas aos golpes, publicada pela editora Expressão Popular em 2018. Na América Latina, e no cenário brasileiro em particular, o autor exerceu influência considerável sobre setores da esquerda que buscavam compreender a derrocada de governos progressistas (como os de Dilma Rousseff, Evo Morales ou Rafael Correa) a partir de um suposto novo padrão de ofensiva imperialista.


A ideia central de Korybko é que o imperialismo contemporâneo teria abandonado a guerra direta e as intervenções militares clássicas, optando por estratégias indiretas e multifacetadas: lawfare, manipulação midiática, guerra informacional, operações psicológicas, redes sociais e instrumentalização de movimentos sociais. Em um nível teórico mais geral, o conceito de guerra híbrida apresenta os conflitos enquadrados como uma disputa entre Estados-nação ou blocos civilizacionais.

Embora esse arcabouço pareça oferecer uma descrição inovadora da política internacional recente, ele se sustenta sobre uma estrutura conceitual profundamente problemática. A teoria da guerra híbrida incorre em erros de método e de concepção, pois desloca a análise das determinações materiais e de classe que estruturam o capitalismo contemporâneo para uma esfera de formas e estratégias político-midiáticas, isto é, para o nível das aparências “superestruturais”.

Um dos erros conceituais da teoria de Korybko é justamente uma espécie de inversão da relação entre “base” e “superestrutura”. Ao colocar o foco nos meios de comunicação, nas redes e no direito como instrumentos decisivos de desestabilização política, a guerra híbrida superestima o papel das formas ideológicas e subestima os condicionantes econômicos e sociais que tornam possível ou não um golpe de Estado, uma crise ou revolução. Essa abordagem é sintoma de uma tendência contemporânea à culturalização da política, em que o conflito de classes é traduzido em termos de narrativas, hegemonia discursiva ou disputas de informação, precisamente aquilo que Marx e Engels denunciaram como “falsa consciência” em A Ideologia Alemã (1846).

O discurso de Korybko também repousa sobre o que podemos chamar de um idealismo geopolítico, no qual os Estados aparecem como atores soberanos e racionais que disputam hegemonia no sistema internacional. Essa concepção ignora que o sistema de Estados é ele mesmo uma forma política da sociabilidade capitalista, e que a guerra, seja direta ou “híbrida”, é inseparável da dinâmica de expansão e acumulação do capital em escala mundial. Ao substituir a análise da economia política imperialista por uma descrição de técnicas geopolíticas, a teoria da guerra híbrida desmaterializa o imperialismo e o converte em um jogo de manipulação simbólica e informacional. Perde-se assim o núcleo explicativo que compreende que o imperialismo é, antes de tudo, uma necessidade estrutural da acumulação capitalista e não apenas uma política de poder entre nações.

É significativo que o conceito de guerra híbrida tenha sido adotado por setores nacionalistas e conservadores, tanto na Rússia (onde Korybko fixou residência) quanto em países periféricos, como forma de denunciar uma suposta “ingerência estrangeira” em seus assuntos internos. Essa apropriação não é acidental: ela decorre do próprio caráter idealista e estatista do conceito. Ao deslocar o foco da luta de classes global para o choque entre soberanias nacionais, o discurso da guerra híbrida tende a reconciliar a esquerda com o modelo de Estado burguês como o ideal, transformando o nacionalismo econômico em horizonte político máximo. O resultado é um rebaixamento teórico e estratégico: em vez de compreender o imperialismo como relação entre frações de classe e capitais, o autor o converte em disputa entre Estados, uma forma de nacional-desenvolvimentismo redivivo.

A guerra, em qualquer de suas formas, é um momento da reprodução ampliada do capital e da disputa entre frações burguesas nacionais e transnacionais. Reduzi-la a “hibridismo informacional” ou a disputa entre “projetos nacionais” concorrentes, neutraliza a possibilidade de uma crítica ao próprio capitalismo. No limite, o conceito de guerra híbrida é incompatível com a noção marxista de luta de classes. Enquanto o marxismo entende a guerra, a política e o Estado como expressões da contradição capital-trabalho e da luta entre classes dominantes e subalternas, a guerra híbrida descreve um cenário em que atores despersonalizados (governos, ONGs, mídias, corporações, algoritmos, etc.) interagem em uma arena fluida, sem sujeito histórico definido. Desta caracterização surge um campo de forças indeterminado, no qual a dominação é difusa e a resistência, meramente defensiva.

A análise geopolitizante de Korybko se assenta sob um outro erro significativo de natureza teórica, que podemos classificar como de fetichismo da forma. Sua argumentação em defesa do conceito de guerra híbrida toma as novas tecnologias de comunicação, as redes sociais e as estratégias jurídicas como sujeitos históricos capazes de transformar o cenário político global. Essa inversão metodológica, típica de um pensamento idealista, confunde forma e conteúdo, aparência e essência, ao privilegiar o modo como a dominação se expressa (a “hibridização” da guerra) em detrimento de suas causas estruturais. A análise fica na superfície do “como” e ignora o “porquê” fundamental. A guerra é tratada como um jogo de xadrez entre elites geopolíticas, e não como um reflexo de contradições materiais.

O próprio sistema capitalista é “híbrido” por natureza. Ele combina violência estatal explícita com a coerção econômica “invisível” do mercado, a ideologia dominante da mídia corporativa e a intervenção militar quando necessário. O conceito de guerra híbrida pega essa característica essencial do capitalismo e a projeta como uma “tática maligna” de um inimigo externo específico, evitando uma crítica ao sistema como um todo.

A teoria da guerra híbrida, adotada por setores da esquerda, oferece um diagnóstico aparentemente sofisticado das novas formas de dominação no século XXI. Entretanto, sob o crivo de uma análise crítica mais atenta, revela-se como uma leitura idealista e despolitizadora. Ao fetichizar as técnicas de manipulação e ao ignorar as determinações materiais da política e da guerra, o conceito serve, em última instância, à reprodução ideológica da ordem existente. Mais do que compreender o mundo, a teoria da guerra híbrida o descreve com as categorias que o próprio capital produz e, ao fazê-lo, renuncia à crítica, condição da emancipação.

Erick Kayser é historiador.

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