“Em tua casa / Berram alto o que é mentira,
Mas a verdade / Tem de calar-se / É assim?’
– Bertold Brecht –
Em 2020, foi lançado um livro que agora merece resenhas: Guerra da Eternidade – O Retorno do Tradicionalismo e a Ascensão da Direita Populista, do norte-americano Benjamin Teitelbaum. O autor afirma que os governos dos Estados Unidos (então Donald Trump), do Brasil (ainda Jair Bolsonaro) e da Rússia (Vladimir Putin) são influenciados por Steve Bannon, Olavo de Carvalho e Aleksandr Dugin. Os três (o guru, o professor e o estrategista) mantêm discípulos nas respectivas administrações centrais de seus países e têm em comum à adesão a uma obscura filosofia, o Tradicionalismo, formulada por um obscuro filósofo francês, René Guénon, no início do século XX com o nome de Perenialismo.
Trata-se de uma seita de tipo peculiar, em torno: “De um conjunto quase caótico de ideias que oscilam entre a revolta contra o mundo moderno e a contemplação de ciclos de tempo… a despeito de diferenças substantivas que resultam até mesmo em posições geopolíticas diametralmente opostas (Eurásia)”, destacam Adriane Sanctis e Luciana Silva Reis na resenha A Destruição como uma Política do Espírito (Quatro Cinco Um, março/2021). A estranha seita é composta por homens espirituais que consideram as religiões atuais uma forma superficial de espiritualidade, atinente aos homens inferiores impossibilitados de acessar uma forma de conhecimento superior. Noutras palavras, a Tradição perene.
Vê-se aí um eco distorcido da obra de Nietzsche sobre a metáfora do Super-Homem e da subdivisão entre almas senhoriais e almas servis, sendo as primeiras as únicas capazes de instaurar uma nova civilização para a humanidade. Creem que na religiosidade atual acham-se apenas resíduos da religião original, de matriz indo-europeia, que se perdeu. Seu trabalho (de Sísifo, logo, irrealizável) consistiria em juntar os raros cacos dispersos.
Tradicionalistas/Perenialistas comungam a rejeição ao ateísmo e ao humanismo, e apregoam uma volta à submissão da mulher com o retorno do patriarcado. Sem um sistema epistemológico articulado, aos moldes de Kant e Hegel, fazem desse handcap teórico uma vantagem por prescindir da coerência. O denominador comum de Bannon, Carvalho e Dugin residiria na crítica radical, difusa e amiúde incoerente às conquistas da ciência: “da tabela periódica, da física nuclear, da lâmpada, da penicilina, da vacina”, conforme Antônio Mammi noutra resenha Os Apóstolos da Destruição Ibidem). Reconhecer a ciência enfraqueceria sua crítica à Idade Moderna. O que soa um estúpido exotismo, seria um componente da denegação da modernidade no intuito de alcançar um mundo perene. A noção de progresso é-lhes estranha, independente dos fatos. Vivem na Terra Plana.
Teitelbaum sublinha que a noção de tempo dos Tradicionalistas/Perenialistas é construída de forma não-linear. Incorporam do hinduísmo a crença de que a história é cíclica e se repete a cada quatro estágios, “sempre decaindo, da era do ouro à era sombria”. Subscrevem as tonterias do pensador italiano fascista, Julius Evola, responsável pelo legado de Guénon. Os ciclos estariam relacionados à dominação de castas. As idades grandiosas teriam como classes dominantes os sacerdotes (homens arianos de espírito), depois os guerreiros. A seguir viriam as classes decadentes, os comerciantes e, a rapa do tacho, os escravos. A ralé espiritual. O último dantesco círculo do inferno (a esfera Judeca, em referência ao traidor Judas Iscariotes) estaria sob égide da democracia liberal e do socialismo. Para os quais, o desdobramento do progresso traria tão somente (sic) mais liberdade e igualdade.
Bannon, porém, em lugar da hierarquia que celebra os sacerdotes, enaltece a persona do self-made man ao elaborar um ideal mais acessível àqueles menos intoxicados pela modernidade, a exemplo da classe operária (branca) e sobretudo do campesinato. Carvalho exprime ideia semelhante ao identificar na população cristã rural dos Estados Unidos uma reserva oculta da energia espiritual antimoderna. É essa mobilidade social que vai servir de trampolim para a direita populista (o conceito é controverso), na onda que nasce democrática e torna-se antidemocrática ao acumular força entre cidadãos comuns.
A utopia Tradicionalista/Perenialista não pretende mudanças, seja para regressar ao passado, seja para direcionar-se ao futuro. Aspira, antes, “um estado de coisas permanente”. A chance de “revelar à humanidade a existência de um ‘núcleo espiritual’ que é deixado de lado pelas perniciosas visões materialistas”, alavancadas tanto pela democracia liberal quanto pelo socialismo. “A modernidade, uma época por excelência materialista, é o contraponto perfeito da Tradição em que a espiritualidade é a força motriz da sociedade”. As abstrações relativas a uma suposta espiritualidade e a metapolítica da eternidade é que moveriam a história: não a práxis assentada no realismo político. Não a política propriamente.
“É também pela metapolítica que esses personagens (Bannon, Carvalho, Dugin) alimentam um sentimento antissistema, que se mistura com nacionalismo e anti-globalismo. Um dos ingredientes fundamentais dessa atuação é deslegitimar os sistemas modernos de compreensão do mundo – a ciência, por óbvio, e as pessoas e os lugares convencionais ligados à produção de conhecimento, como as escolas e universidades”, reiteram Sanctis e Silva Reis. O combate aos pesquisadores e intelectuais é parte da disputa ideológica.
Teitelbaum classifica como tática a influência do guru, do professor e do estrategista sobre os governantes estadunidense, brasileiro e russo. A meta é a destruição e a desmobilização do próprio governo. “Uma maneira de fazer isso é começar pelo topo, colocando pessoas em posições de poder que sejam hostis às instituições a que servem”, ensina Bannon. No Brasil, não provoca nenhuma surpresa a sugestão. Basta dar uma olhada nos ministros do desgoverno destrutivo de Bolsonaro, para constatar que a lição foi aplicada.
Para encerrar, cabe evocar a parábola que Teitelbaum usa para abrir o livro sobre a Guerra pela Eternidade. Fala de um homem que quer derrotar um tigre e conseguir sua liberdade, mas não o confronta. Fica montado no felino à espera que ele envelheça e enfraqueça, a fim de acertar-lhe o golpe fatal. A metapolítica, por intermédio da cultura, visa colocar o poder político a serviço da destruição do establishment, imobilizando os tempos modernos. Como se conclui, o Tradicionalismo/Perenialismo desenvolve uma visão racista e apocalíptica com uma propensão simplificadora da complexidade do real, com potencial de sucesso num período de tantas incertezas cognitivas, como na cruel pandemia. Nossa tarefa é fazer com que o tigre (a modernidade) liberte-se do parasitismo da extrema-direita neofascista. O passo inicial está em salvar o povo do genocídio premeditado pelo facínora.
- Luiz Marques é professor de Ciência Política, UFRGS
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