Por Dr. Rosinha *
Azar é pouco. Quando o azar é pouco – se é que é possível medir sua intensidade ou quantidade – , alguns dizem que não é azar.
Talvez seja o que pensam alguns haitianos após serem vítimas de mais uma tormenta tropical. Na noite de 24 para 25 de agosto, Isaac, uma tormenta tropical, atingiu o Haiti. Além de deixar mais de 5 mil desabrigados, matou duas pessoas. A maioria das vítimas desta tormenta mora em tendas. São mais de 400 mil pessoas, fruto do terremoto de 2010, que estão nessa situação.
Poderia dizer que esta tormenta é pouco azar se comparada com o terremoto de janeiro de 2010, que destruiu a cidade de Porto Príncipe e matou mais de 220 mil pessoas. É azar para qualquer um e para qualquer país, mas muito azar mesmo para um país pobre.
Esta tormenta é pouco azar se comparada com a epidemia de cólera que começou em outubro de 2010 e matou mais de 7.500 pessoas, e que pode agora ser reacendida.
Levando em consideração a destruição ambiental do Haiti (conserva menos de 2% de sua cobertura vegetal), o que deixa o país muito exposto a inundações, foram poucas as vítimas do Isaac. Azar pouco em relação ao resto: a história de seu povo.
Pode-se dizer que o povo haitiano começou a ter azar quando Cristóvão Colombo desembarcou na ilha.
Colombo chegou à ilha, que era habitada, em dezembro de 1492, e chamou-a Hispaniola (mais tarde deu origem ao Haiti e a República Dominicana). Os reis católicos Fernando e Izabel, a quem Colombo obedecia, se apoderaram da ilha e iniciou-se o azar dos que ali viviam. A colonização da ilha iniciou-se por Navidad, onde hoje é a República Dominicana.
Em “Nascimentos, memória do fogo (I)”, Eduardo Galeano (Paz e Terra, 1983) escreve na página 75:
“Absorto, ausente, está o prisioneiro sentado na entrada da casa de Cristovão Colombo. Tem grilhões de ferro nos tornozelos e as algemas agarram seus pulsos.
Caonabó foi quem reduziu a cinzas o forte de Navidad, que o Almirante tinha levantado quando descobriu a ilha… .
Agora o cacique Caonabó passa os dias sentado junto à porta, com o olhar fixo na língua de luz que ao amanhecer invade o chão de terra e ao entardecer, pouco a pouco, se retira.”
Caonabó era um dos líderes dos povos que vivia na ilha antes da chegada de Colombo. Caiu prisioneiro em 1495 e, assim como ele, outros líderes tiveram o mesmo destino: submissão, prisão ou morte.
Na página 76 do mesmo livro, prossegue Galeano:
“Bartolomé Colombo, irmão e lugar tenente de Cristóvão, assiste ao incêndio de carne humana.
Seis homens estreiam o queimador do Haiti. A fumaça faz tossir. Os seis estão ardendo por castigo e vingança: afundaram na terra as imagens de Cristo e da Virgem que o frei Ramón Pané tinha deixado para sua proteção e consolo.
Ninguém perguntou aos seis por que enterraram as imagens.
Eles esperavam que os novos deuses fecundassem os plantios de milho, mandioca, batatas e feijão.”
Corria o ano de 1496 e o azar enviado por Izabel e Fernando em 1492 escravizou a população nativa até levá-la à extinção.
Em Hispaniola, queimar vivo as pessoas não era prática somente dos espanhóis, mas também dos franceses (no século XVI passou a ser colônia da França). O romance a “Ilha sob o mar”, de Isabel Allende (pág. 109), registra como era a vida dos escravos sobre o domínio da França: “A execução na fogueira dos rebeldes de 1780 e outras posteriores não haviam conseguido esmorecer os escravos…”
Sob o domínio da França, a ilha passou a ser a principal colônia dos franceses e a maior fornecedora de açúcar para a Europa. A população nativa, submetida à escravidão e às doenças, já havia sido dizimada. Para explorar a ilha, a França trouxe, como escravos, negros africanos para produzir açúcar.
O problema é que estes negros sempre desafiaram os colonizadores, até que em janeiro de 1804 proclamaram a independência. Foi o primeiro país a conquistar a independência, o que lhes custa caro até hoje. Europeus e norte-americanos não admitiam um país governado por negros.
Vítima dos colonizadores, o Haiti é o país mais pobre das Américas: a maioria dos haitianos vive com menos de um dólar por dia. Os haitianos não são vitimas do azar, são vitimas da ousadia: ousaram desafiar os poderosos.
* Dr. Rosinha é médico pediatra, deputado federal (PT-PR) e vice-presidente brasileiro do Parlamento do Mercosul.
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