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Íntegra do discurso de Raul Pont em homenagem a Apolônio de Carvalho

239078Leia abaixo a íntegra do discurso do deputado Raul Pont, em homenagem ao centenário de nascimento de Apolônio de Carvalho. A homenagem foi realizada no último dia 23. Clique aqui para ver o vídeo do discurso.

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados:

Saúdo as caras autoridades já nominadas pelo presidente e, em especial, saúdo a viúva de Apolônio de Carvalho, sua companheira de luta e de vida, Sra. Renée, e também seu filho René-Louis, que estão aqui conosco. Ao cumprimentá-los, estendo minha saudação a todos os nossos parlamentares e às demais pessoas que hoje estão acompanhando os trabalhos desta Casa.

Estamos aqui hoje para celebrar o centenário de uma das figuras políticas mais emblemáticas do Brasil. Apolônio de Carvalho foi um lutador: dedicou os 93 anos em que viveu em nome da liberdade. Apolônio de Carvalho é um dos poucos homens em todo o mundo que pode ostentar o título de “herói de três Nações”. Lutou contra Francisco Franco na Guerra Civil Espanhola. Depois, se juntou às Forças Francesas do Interior na resistência contra a ocupação alemã, na 2ª Guerra. Por fim, sofreu nos duros períodos de clandestinidade durante a ditadura militar no Brasil.

Além disso, é dele a ficha de filiação número um do Partido dos Trabalhadores. Apolônio de Carvalho nasceu em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, no dia 9 de fevereiro de 1912. Neto de camponeses, era filho de soldado sergipano e de mãe gaúcha. Conseguiu seguir a carreira militar, e teve na própria família a iniciação para a vida solidária.

Segundo Apolônio, o pai, Cândido Pinto de Carvalho Júnior, republicano de militância ativa, contava com orgulho ter sido autor de um manifesto de repúdio à ameaça de bombardeio por parte da Inglaterra, a potência colonialista da época, contra Valparaíso e Valdívia, cidades portuárias do Chile.

Outro exemplo veio do irmão mais velho, Deusdédit, que fugiu de casa, em 1914, com um grupo de colegas do ginásio, rumo a Paris, onde pretendia engajar-se na resistência à invasão da França pelas tropas alemãs, no início da Primeira Guerra Mundial. Acabou detido pela família, com auxílio do Itamarati, ainda no Uruguai. Mas seguiu como personagem principal da adolescência de Apolônio, ao engajar-se no Movimento Tenentista e participar ativamente das revoltas sociais que marcaram os anos 1920.

Na década seguinte, esse caminho começaria a ser trilhado pelo próprio Apolônio, que se tornou oficial do Exército brasileiro em 1933. O convívio na caserna com a esquerda militar o levou a engajar-se na ANL – Aliança Nacional Libertadora, que combatia o Imperialismo e a ditadura Vargas. Em 1935, foi preso e expulso do Exército. Na cadeia, entrou em contato com a teoria marxista, nos cursos ministrados pelos militantes do PCB – Partido Comunista Brasileiro.

Com a saída da prisão em junho de 1937, Apolônio ingressou no Partido Comunista Brasileiro. Segundo disse Apolônio à Revista Teoria e Debate, em 1989, o ideário do PCB “era muito parecido com o da ANL: contra os monopólios estrangeiros, pela reforma agrária, pela autonomia sindical, pelas liberdades sindicais, pelas amplas conquistas sociais”. Foi no PCB que ele teve a oportunidade de dar curso à sina solidária de sua família: partiu para a Espanha, onde, juntamente com outros 20 brasileiros, combateu nas Brigadas Internacionais ao lado das forças republicanas contra os fascistas liderados pelo general Francisco Franco, numa das mais cruéis guerras civis da História.

Ao lado de operários e camponeses espanhóis, militantes socialistas, anarquistas e comunistas vindos de todos os cantos do mundo, Apolônio apreendeu o significado de um internacionalismo focado na solidariedade e no compromisso com o ser humano. Participou de dezenas de batalhas, testemunhou o heroísmo e a energia criativa com que os trabalhadores espanhóis sustentavam um combate desigual contra as forças fascistas, apoiadas militarmente pela Alemanha e pela Itália, diante do olhar passivo das potências democráticas europeias.

Em fevereiro de 1939, Apolônio deixou a Espanha juntamente com as Brigadas Internacionais e partiu para a França. Acompanhou o rompimento da frente republicana, dilacerada pelo sectarismo de suas lideranças políticas, sob a influência da União Soviética e do stalinismo. Permaneceu em campos de refugiados até maio de 1940, quando conseguiu fugir do campo de Gurs para Marselha. É nesta cidade portuária, em 1942, que ele ingressa na Resistência Francesa, da qual se torna comandante da guerrilha dos partisans para a região sul, com sede em Lyon.

Este é o ano, também, em que ele conhece Renée, uma jovem militante comunista da Resistência, que se tornaria sua companheira para a luta e para a vida. Em janeiro de 1944, Apolônio e Renée se instalam em Nîmes, onde, em fevereiro, se organiza o ataque à prisão daquela cidade, libertando 23 militantes da Resistência. Em maio, mudam-se para Toulouse. Em agosto, Apolônio comanda a liberação de Carmaux, Albi e Toulouse. Em novembro, nasce o primeiro fi lho do casal, René-Louis. Por sua coragem, Apolônio é considerado um herói na França, onde foi condecorado com a Legião de Honra.

O fim da guerra encontra a família em Paris, de onde embarca no ano seguinte para o Rio de Janeiro. Ainda na França, o militante retoma o contato com o PCB, através do artista plástico Cândido Portinari. Em 1947 nasce o segundo filho do casal, Raul. Torna-se dirigente da União da Juventude Comunista. Vive, ao lado de Renée e os dois filhos, um breve período de militância em liberdade. Meses depois da chegada, o governo Dutra consegue arrancar da Justiça a decretação da ilegalidade do partido, que havia eleito 14 deputados federais em 1946. É a volta à rotina de perseguições e clandestinidade.

Apolônio, Renée e as duas crianças passam a viver na clandestinidade, militando entre Rio e São Paulo até 1953, quando ele parte para um curso na União Soviética, que dura cerca de quatro anos. Em 1955, Renée o encontra em Moscou e, em 1957, a família volta ao Brasil, vivendo na semi-legalidade, situação que se estendeu até o golpe militar de 1964.

Na década de 1960, participou da oposição popular ao regime militar. Logo após o golpe de 31 de março de 1964, Apolônio passa a viver em profunda clandestinidade no Estado do Rio de Janeiro, longe da família. Em consequência das divergências com o Comitê Central do Partido Comunista, do qual era membro, Apolônio e a Corrente Revolucionária do Estado do Rio deixam o PCB, em 1967.

Alguns episódios aguçam a reflexão crítica que levaria Apolônio a romper com o PCB. Em 54, o suicídio de Vargas expõe o que ele chamou de “completo divórcio entre a orientação política seguida pelo PC e a população (…); enquanto esta protestava maciçamente nas ruas, documentos ainda quentes dos comunistas chamavam à derrubada do governo Vargas pelas armas”.

Dois anos depois, ele e Renée participavam de um curso de formação política em Moscou, na mesma época em que militantes e dirigentes do PC soviético se lançavam à preparação do 20º Congresso do Partido, em que foram reconhecidos, oficialmente, os crimes e atrocidades cometidos sob a direção de Stalin.

“Por coincidência – conta Apolônio – estávamos também os dois iniciando nossa quebra particular do culto à personalidade. O que era relativamente fácil para Renée e seu espírito aberto, de agudo senso crítico e, não raro, cáustico. (…) Renée me ajudaria, em meu lento retorno ao papel de militante consciente, a ver os ostensivos problemas de uma sociedade que, quarenta anos atrás, se libertara dos grilhões do capitalismo: marcas de atraso; largos desníveis sociais; as duras condições de vida dos trabalhadores, no campo e na cidade; os privilégios dos altos e médios escalões partidários; o monopartidarismo; a diluição do papel dos soviets, ou conselhos populares, sob o peso da fusão do Partido-Estado.”

No início dos anos sessenta, ainda no PCB, o crescimento dos movimentos populares no Brasil permite a Apolônio se reaproximar de sua fonte vital de energia: o contato direto com trabalhadores e estudantes. Ele, Renée e alguns companheiros de partido, como Mário Alves e Jacob Gorender, lançam-se a um intenso trabalho de educação política no Rio de Janeiro, que se espalha por bairros populares, sindicatos e universidades. Disse ele:

“Gosto muito do que faço. Empolgo-me com as perspectivas novas que a militância volta a me oferecer. Pouco a pouco, vou voltando a ser o militante de antigamente, até que o golpe militar de 64 vem romper esse empenho.” É neste contexto que, juntamente com Mário Alves, Jacob Gorender e outros dissidentes,

Apolônio funda o PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário). As teses que fundamentavam o enfrentamento armado da ditadura militar, a partir de pequenos núcleos guerrilheiros que, a exemplo da revolução cubana, conquistariam a adesão popular e marchariam irresistivelmente rumo à vitória, tinham fortes razões para propagarem-se como rastilho de pólvora junto aos militantes brasileiros, segundo Apolônio: “a frustração pela derrota de 1964, sobretudo por seu caráter humilhante, sem luta; o niilismo político, dadas as diversas orientações terem levado a sucessivas derrotas; o romantismo revolucionário; afora as dificuldades da ação política na clandestinidade, com os movimentos sociais de todo paralisados”.

No dia 13 de janeiro de 1970, o caminho da luta armada chega ao fim para Apolônio. Violando os princípios básicos de segurança que aprendera ao longo de duas guerras e algumas décadas de militância clandestina, ele vai até a casa de um companheiro que deixara de comparecer a sucessivos locais de encontro. É capturado por agentes da repressão política que lá o aguardavam e levado ao quartel da Polícia do Exército, no Rio de Janeiro. Mário Alves também foi preso no Rio e Jacob Gorender, em São Paulo. Todos são violentamente torturados e Mário Alves, assassinado. Em fevereiro, os filhos Raul e René-Louis também são presos.

Sobre aquela época, Apolônio contou:

“Lembro em particular de exemplos de companheiros presos no tempo da Resistência Francesa. E o lema que nos guiava: ‘se tiver de morrer, levo alguns inimigos comigo’. Estou sentado atrás do motorista e uma idéia me acode: talvez agarrando pelas costas e desgovernando o carro, possa fazê-lo arrebentar-se num paredão.

(…) Quando o momento me parece favorável, atiro-me sobre ele; e torço com todas as forças a direção do veículo, que se choca com o paredão ao lado. O impacto, no entanto, não é tão violento quanto esperava. Pouco a pouco, volto a mim mesmo. Estava desmaiado pelas coronhadas.

“(…) Logo começa o interrogatório. Respondo com calma e firmeza. Quando aludo à justeza de nosso protesto armado contra a ditadura, um dos oficiais dá-me uma bofetada por sobre o capuz. Além de insulto, trata-se de extrema covardia. Desvencilho-me do capuz e jogo-me contra eles. Por pouco tempo. Segundos depois, já por terra, volto pouco a pouco a mim. Agora estou algemado nos pulsos e tornozelos.

Na verdade, tento apenas portar-me como aprendi na militância. Como não tenho armas, reajo com punhos aos insultos. “Não sei quantos dias passei sob tortura. Sei que foi implacável, feita de ódio e sadismo. Só deixei de ser torturado quando o coração ficou por um fio, e eu literalmente apaguei.”

Meses depois, localizado por Renée no quartel da PE, recebeu a notícia de que não ficaria preso por muito tempo. No dia 17 de junho, partiu para a Argélia, junto com outros 39 companheiros, trocados pelo embaixador da Alemanha, sequestrado por um comando guerrilheiro. Renée junta-se a ele tempos depois, quando o filho Raul e sua mulher Isabel deixaram a prisão no Brasil. Seguiram todos para a França.

Apolônio ainda fazia planos de voltar clandestinamente, para se reintegrar à luta, mas foi dissuadido pela companheira.

No fim dos anos 1970, com a retomada das lutas sociais e a conquista da anistia, Apolônio e Renée voltam ao Brasil. Neste retorno, Apolônio aproximou-se dos grupos que então trabalhavam para criar o Partido dos Trabalhadores, tornando-se um de seus fundadores. Sobre a criação do PT, Em entrevista ao jornal A Tribuna, em 2005, ele disse:

“Nascemos na condição de produto direto, e ardorosamente desejado, de trabalhadores, de intelectuais. De figuras que desejavam uma organização profundamente ampla e também profundamente democrática. Acho que isso marca muito o PT na sua origem como o mais democrático dos partidos políticos até então existentes no País.”

É de Apolônio a ficha de filiação número um do Partido dos Trabalhadores, no memorável dia 10 de fevereiro de 1980, no Colégio Sion, em São Paulo. Apolônio permaneceu na direção do novo partido até 1987, quando se afastou por orientação médica. Apesar das limitações da saúde e da idade, Apolônio prossegue um militante que não se furtou jamais aos debates e à manifestação pública de suas posições de socialista convicto.

Entusiasta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ao qual sempre prestou apoio e junto ao qual esteve sempre, frente ao que não abriu mão da crítica ou da esperança. Para ele, um novo mundo (socialista) era sempre possível e poderá estar sempre ao alcance de nossas mãos, desde que estejamos dispostos a nos organizar e a lutar por ele.

Nas últimas páginas de sua autobiografia, o cidadão do mundo Apolônio de Carvalho faz um balanço do tempo em que transcorre sua vida. Disse Apolônio:

“Nele assistimos a duas guerras de âmbito mundial que ceifaram dezenas de milhões de vidas com os meios tradicionais cada vez mais poderosos mas, sobretudo no caso da segunda, de forma organizada e racionalizada, capaz de eliminar parte de todo um povo pelo trabalho forçado até a exaustão e as câmaras de gás. Vimos centenas de milhares de seres humanos desaparecerem em cinzas, nas frações de segundo de um bombardeio atômico. Milhões de homens – o mais precioso dos capitais – apodrecerem em prisões e campos de trabalho.

“(…) Nesses combates, vencemos às vezes – o mais das vezes fomos derrotados. Mas todos os avanços civilizatórios arrancados ao capitalismo nesse século, no terreno das liberdades democráticas e no campo das condições de vida da população, foram resultados das lutas do movimento social, com a presença ou sob a direção dos que lutavam pelo socialismo.”

Muitas destas falas e mais sobre a vida de Apolônio de Carvalho podem ser vistos no documentário Vale a Pena Sonhar, que exibiremos amanhã, às 19h, no Teatro Dante Barone.

Nas últimas linhas, Apolônio permite-se um tom mais pessoal: “Com Renée, o amor profundo e privilegiado de toda uma vida. E uma fl oração de amizades sinceras, sem as quais viver não tem sentido. E uma constante e saborosa vontade de viver. Alimentada naturalmente e sem artifícios. Pois, felizmente, de viver a vida não me fartou.”

Nós, que tivemos a oportunidade de conviver, ainda que por pouco tempo – menos de uma década –, com Apolônio na direção nacional do partido, aprendemos a admirá-lo e a reconhecer ainda mais aquilo que os livros nos contavam. Em sua militância como dirigente partidário, Apolônio tinha aquele jeito tranquilo, uma fala mansa e um sorriso permanente, que desarmava qualquer debate mais duro, mais rígido. Mostrava, sempre, um espírito construtivo, de solidariedade e de defesa do processo de construção coletiva de qualquer posição, de qualquer decisão que pudesse ser tomada dentro do partido.

Por essas razões, queremos dizer ao René e à sua viúva e companheira de toda a vida, a Renée, que é um grande prazer, uma honra e, para nós, uma obrigação realizar este registro. Nós o fazemos na Assembleia gaúcha, no momento em que se rende homenagem aos 100 anos de seu nascimento, e em nome do partido e de todos os nossos deputados – também vimos parlamentares de outras bancadas aqui.

Este é um registro que faz com que a memória da história brasileira, dos seus verdadeiros heróis, continue viva, presente, servindo principalmente como aprendizado e lição a todos nós.

Apolônio foi um militante ao longo de toda a sua vida, que durou 93 anos. E afirmou, no trabalho publicado sobre a sua vida – o livro Muitos Caminhos e uma Estrela, que conta a história de militantes fundadores do partido –, que nunca sentiu vontade de ser candidato a vereador, a deputado ou a prefeito.

Foi um homem que nunca se preocupou com a ostentação dos cargos, da representação. O que de fato queria, a questão pela qual brigava – e por isso foi um grande exemplo para todos nós –, era o direito à liberdade e à possibilidade de travar a luta diária, permanente, junto com o povo, com a população que nós temos a pretensão de representar.

Muito obrigado, Sr. Presidente.

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