Em 1919, Lênin e o partido bolchevique fundaram a Internacional Comunista (IC) também conhecida como Terceira Internacional. A ruptura com a Internacional Socialista ou Segunda Internacional tinha acontecido em torno às as posições tomadas por diversas seções nacionais ou frações de partidos em relação à Primeira Guerra Mundial (1914-1918), caracterizada como guerra imperialista. Entre os partidos que apoiaram a seu governo na guerra esteve a socialdemocracia alemã, até então a principal organização da Internacional Socialista. Lenin caracterizó essa capitulação frente às burguesias nacionais imperialistas como uma “falência” dessa Internacional.
Desde então aquelas frações e partidos que tinham se oposto à guerra se colocaram o desafio de articular uma alternativa internacionalista. O triunfo da revolução de outubro na Rússia colocou a questão num novo patamar. Uma nova internacional teria como tarefa defender as conquistas da revolução de outubro contra o assédio e agressões do imperialismo ao tempo de estender a revolução em todo o planeta.
A Internacional Comunista em seus quatro primeiros congressos (1919, 1920, 1921, 1922) aprovou um conjunto de resoluções que colocaram o internacionalismo proletário com novos horizontes, superando – para alem da questão da guerra – outras limitações da anterior organização, como em relação à luta dos povos oprimidos contra o colonialismo e outras opressões.
A REVOLUÇÃO E A QUESTÃO NEGRA – POR CLEDISSON JUNIOR
Em memória de Dáleti Jeovana.
O marxismo encontrou enormes dificuldades em sintetizar demandas dos movimentos nacionalistas em seu programa político e arcabouço teórico. Um importante fator político de impacto sobre a questão racial foi a decisão de aplicar o direito de autodeterminação às populações negras do continente americano. Esta decisão de um lado, aproximava os comunistas das demandas dos movimentos nacionalistas negros e indígenas e de outro lado, apontava às populações negras e indígenas a existência de uma política específica da questão racial nos partidos comunistas alterando drasticamente as posições iniciais do movimento operário internacional que negavam o problema racial.
A condição vivida pelos negros era encarada inicialmente como um problema de classe, sujeita aos mesmos mecanismos de exploração que os outros grupos sociais. Com a alteração dessa perspectiva os negros passam a ser vistos como uma população específica, vítimas de opressão racial por parte dos brancos, que se manifesta essencialmente pela discriminação e segregação no mundo do trabalho.
Com o advento da Revolução Russa foram incorporadas importantes contribuições para o estudo da questão racial, permitindo uma análise abrangente do fenômeno da discriminação. Os debates sobre a questão racial ganham forma nos primeiros congressos da Internacional por iniciativa de Lênin, que apresenta como pauta a análise do problema das minorias oprimidas. O problema nacional e sua interpretação teórica influenciaria decisivamente a análise em diferentes regiões do mundo inclusive no Brasil. As análises anteriores não davam conta do tamanho do problema, reduzindo a opressão racial a opressão de classe. Como resultado de uma série de discussões, a questão racial passa a ser analisada como uma questão nacional, o que levaria a uma reorientação teórica fundamental na crítica marxista do racismo.
A Internacional, de maneira pioneira colocou no centro da pauta do marxismo revolucionário a questão da libertação dos povos coloniais e a da opressão da população negra. A partir deste momento o processo de independência nas colônias e a luta contra o racismo conquistaram uma maior importância no interior do movimento operário internacional. Lênin demonstrava um forte interesse nos eventos ocorridos na África do Sul. Em diferentes tempos e diferentes circunstâncias, inúmeras lideranças do comitê executivo lidaram com os problemas do movimento comunista sul africano, onde se identificavam o acirramento das relações raciais naquele país.
A questão negra se insere na agenda do movimento comunista internacional por meio da estratégia anti-imperialista e da tentativa de solapar os impérios a partir das suas colônias. É importante destacar que o debate sobre a questão indígena passaria a fazer parte desta agenda via questão camponesa. As significativas diferenças entre o campesinato latino-americano e o asiático fundamentaram a heterodoxia do marxismo latino-americano. As investigações de Lênin sobre o capitalismo estadunidense o levaram a observar que um dos aspectos mais contraditórios dos EUA seria a condição em que se encontrava a minoria negra de sua população. Concentrados quase que exclusivamente na parte sul do país, onde predominava o latifúndio, os negros estavam submetidos a um regime de trabalho super precarizado e sem acesso à propriedade da terra.
Nos debates travados no interior da Internacional, a categoria raça aparece relacionada a aspectos como idioma, fenótipo e posição no mundo do trabalho. No caso dos Estados Unidos, os comunistas avaliavam que a condição específica do negro naquela sociedade de classes, não se apresentava propensa à formação de uma classe trabalhadora unificada, sem barreiras raciais, tendo em vista a segregação racial existente em sua própria classe.
Em seu 4o Congresso, em 1922, a Internacional Comunista produziu um primeiro documento chamado as “Teses sobre a questão negra”. O documento ressaltava que os povos negros se encontravam em condição subordinada nos diversos continentes em que se estabeleceram: na África são oprimidos pelo imperialismo colonial europeu, nos EUA, pelo capital financeiro. Dado o papel importante dos negros estadunidenses na economia e na política daquele país, estes eram vistos como vanguarda da luta contra a opressão racial. Opressão que tem por base o próprio sistema capitalista, gerando desigualdade social, política e salarial.
A exemplo de países como Cuba, Brasil, República Dominicana entre outros, reconhecia-se a diferente natureza dos povos negro e indígena. Sobre os indígenas, o problema resultaria em algo distinto, dado uma diversidade entre eles. Essa mesma variedade não foi identificada entre os negros. O esforço teórico aliado ao crescimento do movimento negro no mundo, fez com que a questão negra alcançasse um lugar de destaque na análise marxista.
Trotsky esteve entre os dirigentes comunistas que melhor contribuiriam para o desenvolvimento de um dialogo com os revolucionários negros das Américas e da África a partir de uma série de reflexões estratégicas e táticas promovendo assim uma necessária atualização dos debatidos ocorridos no 4o Congresso da III Internacional, que foi o último que contou com sua participação. A Internacional Comunista nunca mais retomou as formulações sobre a questão negra.
James P. Cannon, um dos fundadores e principais dirigentes do Partido Comunista dos Estados Unidos assim como Cyril Lionel Robert James (autor da espetacular obra sobre a história da Revolução Haitiana -“Os Jacobinos Negros”) se juntaram às fileiras da Oposição de Esquerda e foram fundamentais para o desenvolvimento da tese sobre a questão negra onde pela primeira vez o marxismo revolucionário se via exposto a uma situação política onde as negras e negros eram um fator central em uma realidade nacional de uma potência econômica, fator tão preponderante para o rumo da revolução internacional.
Cannon certa vez escreveu, “(…) a intervenção russa transformou tudo isto, drasticamente e num sentido benéfico. Ainda antes da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Russa, Lenin e os bolcheviques se distinguiam de todas as outras tendências no movimento socialista e operário internacional por sua preocupação com os problemas das nações e minorias nacionais oprimidas, e seu apoio positivo às lutas destas pela liberdade, a independência e o direito da autodeterminação. Os bolcheviques davam este apoio a toda a “gente sem igualdade de direitos”, de uma forma sincera e honesta, e não havia nada “filantrópico” nesta posição. Reconheciam também o grande potencial revolucionário na situação dos povos e nações oprimidas, e os viam como aliados importantes da classe operária internacional na luta revolucionária contra o capitalismo (…) a fórmula simplista de que a questão dos negros era meramente econômica, uma parte da questão do capital contra o trabalho, jamais inspirou os negros, que sabiam que não era assim, mesmo se não o dissessem abertamente; eles tinham que viver com a discriminação brutal, cada hora de cada dia.”
O maior legado impulsionado pela questão negra debatida no interior da Internacional Comunista foi a defesa do caráter internacional da luta dos negros, e da fundamental solidariedade de todos os demais trabalhadores do mundo. Esta estratégia consistia no fato de que a articulação internacional da luta pela autodeterminação dos negros em todo o mundo, responsabilizaria também os revolucionários das nações opressoras que deveriam lutar em seus países pelo fim do jugo colonial e racista sobre os países que mantinham o status de colonias, contribuindo assim para elevação da luta dos negros os associando a uma unidade das fileiras operárias e pela hegemonia proletária sobre o conjunto das demandas dos setores oprimidos.
Foi a partir dessa diretriz que em um encontro extraordinário realizado em Moscou (1929), o comitê executivo da Internacional aprovou uma resolução sobre o Brasil, com críticas contundentes ao PCB. Dentre as tarefas exigidas ao partido, destacava-se a necessidade de empreender um trabalho criterioso contra o racismo. A Internacional solicitou à direção do PCB informações sobre a situação dos negros no Brasil que resultou em uma reavaliação do trabalho político e do tratamento teórico conferido à questão racial. Para a Internacional Comunista não havia mais lugar para a negação da questão negra entre os revolucionários de todo o mundo.
É importante citar, quando da disputa a Presidência da República no Brasil em 1930, o PCB não demonstrou interesse pelos problemas específicos dos negros e negras, chegando a subestimar a existência do racismo, o que em parte justifica as negligências quanto ao tema na candidatura comunista de Minervino de Oliveira, homem negro e dirigente sindical. Sua condição de negro era vista como secundária em relação à sua condição de classe.
Para ler mais e assistir:
CLR James, Leon Trotski e George Breitman. A revolução e o negro. Textos dos trostskismo sobre a Questão Negra. São Paulo: Edições Iskra. 2015
Thomas Sankara, o homem íntegro:
Comente com o Facebook