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Jacobin, uma revista de cultura socialista | Vitor Marques

O que é a Jacobin?
A Jacobin é uma revista de cultura socialista. Não simplesmente “de esquerda”, ou “progressista”: socialista. Orgulhosamente ecumênica em sua abrangência, não tem filiação a uma organização específica, e se propõe a promover um debate camarada no interior da diversa tradição dos movimentos emancipatórios. É fruto de uma nova geração de militantes que, atravessando a experiência do movimento antiglobalização, do movimento antiguerra e os movimentos antiausteridade de 2011/2012, está menos preocupada com as disputas sectárias e fratricidas que frequentemente suga a energia dos ambientes esquerdistas, e mais preocupada em construir um movimento de massas amplo e plural, com um programa que olhe para frente e ofereça soluções viáveis para os problemas do nosso tempo.

Essa é a geração que se viu vivendo, de repente, no fim do fim da história. Frente ao colapso espetacular do consenso neoliberal e a ascensão mórbida do populismo reacionário se vê forçada a tomar partido e a se organizar coletivamente. Mas a crise também nos demanda apontar direção: como simplesmente dizer ´não´ já não é o bastante, estamos obrigados a pensar seriamente no que afinal queremos como alternativa positiva de futuro.

Seja oferecendo comentários contemporâneos à conjuntura, revisitando os clássicos ou tentando construir novas sínteses, o que a Jacobin almeja ser é um espaço vibrante de vida intelectual anticapitalista, ao mesmo tempo aberto, acessível e atraente – mantendo a bandeira vermelha de pé aconteça o que acontecer. A tarefa, nada trivial, é mostrar na prática a atualidade do socialismo como projeto político e da análise de classe como ferramenta analítica indispensável para a ação estratégica.

Como surgiu a Jacobin?
A Jacobin veio ao mundo em 2010, como uma minúscula publicação on-line gestada no dormitório universitário de seu fundador e editor, Bhaskar Sunkara. Filho mais novo de uma família de imigrantes de Trinidad y Tobago, Bhaskar foi o único dos irmãos a nascer nos Estados Unidos, em 1989, poucos meses antes da queda do muro de Berlim. No início, pouco se diferenciava dos inúmeros blogs dos nichos digitais da esquerda, talvez apenas em sua ambição e sendo de oportunidade.

Em 2011 – mesmo ano em que estouravam as ocupações de praças denunciando a desigualdade econômica, o sistema financeiro e o 1% – a Jacobin passa a ser uma revista impressa, em um gesto desesperado para se destacar no campo das publicações de esquerda. Como o socialismo havia praticamente desaparecido da vida pública nos Estados Unidos, o objetivo era contribuir para que as ideias socialistas se tornassem relevantes mais uma vez para um público de massas. Tinha tudo para dar errado. Mas o imponderável aconteceu: a Jacobin não só se tornou um sucesso editorial, expandindo sua tiragem para algo hoje perto de 80 mil, como ajudou a dar forma ao novo discurso do socialismo democrático que tem mobilizado uma parcela importante da juventude da classe trabalhadora norte-americana. De uma origem improvisada e precária, a publicação conseguiu se transformar em uma máquina de guerra profissionalizada a serviço da luta de classes.

A revista logo se tornou a principal voz da renascente esquerda socialista norte-americana, ganhando o endosso de nomes consagrados como Noam Chomsky: “O aparecimento da Jacobin foi uma luz brilhante em tempos obscuros. Cada edição traz discussões penetrantes e vivas, e análises de questões de significado real, a partir de uma perspectiva de esquerda rica em pensamento que é refrescante e muito rara. Uma contribuição realmente impressionante para a sanidade e esperança”.

Não é possível entender o surgimento da Jacobin e sua influência sem pensá-la como um produto de um novo ciclo de lutas global e de um novo momento da luta de classes, com o acirramento dos antagonismos sociais e a crise de representatividade dos sistemas políticos. Se a publicação foi capaz de, em apenas uma década, partir de uma origem modesta para conquistar um crescimento explosivo é porque soube captar bem o espírito do tempo, se conectar com tendências reais e oferecer um diagnóstico útil à prática militante. Por isso conseguiu desempenhar um papel como plataforma de conexão das novas experiências de luta, do renascimento de um sindicalismo de base combativo nos Estados Unidos até novas experimentações estratégicas no marco das disputas eleitorais.

Qual é a especificidade da Jacobin?
A Jacobin se sobressai por ser uma publicação não-confessional – mais irreverente e menos dogmática do que a esquerda radical costuma ser. Aposta numa linguagem acessível e no diálogo com as pessoas comuns, que não dominam os maneirismos arcanos ou o vocabulário esotérico dos grupos marxistas. Seu socialismo é de um bom senso surpreendentemente razoável. Quer ser uma revista não para os iniciados, mas para todo mundo.

Essa abordagem mais relaxada e descontraída faz sentido com seu objetivo expresso, que é o de retirar a discussão sobre socialismo dos nichos militantes e seitas esquerdistas, para trazê-la de volta para o público geral. Falar orgulhosamente de ideias radicais, mas como se fossem a coisa mais óbvia do mundo, usando uma linguagem direta e pé no chão, sem o jargão da esquerda acadêmica ou o vocabulário carregado (e já um tanto cansado, convenhamos) das organizações mais tradicionais.

Aí está a fórmula que permitiu o crescimento: falar para fora e não para dentro, engajando-se com os que (ainda) não estão na esquerda, mas que podem rapidamente se politizar devido com o aprofundamento da crise; ser irreverente, capaz de fazer piada com a própria tradição política e incluir humor nas mais duras análises; oferecer um visual estético caprichoso e inovador; garantir um espaço plural no qual as diferentes tradições socialistas e do movimento social possam dialogar. A valorização da dimensão estética é dupla: no texto, um estilo elegante – reto e direito – que vai ao ponto sem firulas; no desenho, uma revista bonita, que atrai o olhar e a curiosidade.

O socialismo no nosso tempo
Na Jacobin a política comanda. Essa é sua razão de ser. Trata-se de um órgão de agitação e propaganda a serviço do socialismo. E por socialismo entendemos algo, na verdade, bem clássico: o projeto político da classe trabalhadora. O socialismo não deve ser visto como uma espécie de “estado ideal”, uma moldura pré-estabelecida na qual queremos forçar a ferro e fogo a realidade. É o movimento real que supera o estado de coisas; movimento autônomo da imensa maioria em proveito da imensa maioria, como já declarava aquele célebre Manifesto. Esse projeto, voltado para o futuro, se orienta para a construção do autogoverno dos produtores livremente associados, uma sociedade na qual não haja nem opressores nem oprimidos, nem exploradores nem explorados, e cada indivíduo possa ter acesso às condições materiais para seu livre autodesenvolvimento pleno.

A eficácia efetiva desse projeto só pode se encarnar no poder coletivo que a classe trabalhadora é capaz de exercer quando se põe em movimento organizado e se faz sujeito político autônomo. Afinal, como anunciava a primeira associação internacional dos trabalhadores, a emancipação da classe trabalhadora é obra da própria classe trabalhadora. O socialismo será o que a classe trabalhadora quiser que seja; sua premissa é que as pessoas comuns – a vasta maioria que tem que ganhar a vida trabalhando – podem construir coletivamente uma alternativa de sociedade.

Aqueles que querem que a classe trabalhadora se converta em classe dominante precisam prestar uma boa atenção aos problemas da estratégia. Como construir poder social desde baixo? O coração da estratégia socialista é diminuir o poder dos proprietários e aumentar o poder dos proletários.

Ser socialista, portanto, não é algo que se possa fazer sozinho. No coração da prática socialista está o trabalho cooperativo de inventar e fortalecer instrumentos de ação coletiva. Se o socialismo é o projeto político da classe trabalhadora, os socialistas são aqueles que estão ativamente envolvidos na construção de poder por parte dos oprimidos e explorados. Os socialistas são catalisadores da articulação política, trabalhando para que as lutas se comuniquem e se reforcem mutuamente, engajados na produção das “infraestruturas do dissenso”, que diminuam o custo individual do envolvimento na luta de massas e aumentem as chances de vitória da revolta.

Se o nosso horizonte político é clássico, os meios para pensá-lo precisam ser contemporâneos. Como funciona concretamente o capitalismo de hoje? Quais são suas tendências e impasses? Como vive e como luta nossa classe? Quais são os principais pontos de antagonismo? E, de modo crucial, como compor classe a partir da diversidade de resistências e enfrentamentos espontâneos contra as várias formas de opressão, injustiça e desigualdade? A ignorância nunca ajudou ninguém. Para honrar nossa tradição, precisamos estar à altura do nosso tempo.

Qual o propósito da Jacobin Brasil?
Desde 2019, a Jacobin Brasil está em operação. Nossos recursos são parcos, mas nosso otimismo da vontade é abundante. Produzimos 4 revistas impressas e mantemos um portal ativo com centenas de milhares de visitas mensais. Ainda somos pequenos, mas pensamos grande: queremos ser uma revista de combate. Nosso objetivo não é apenas interpretar o mundo de diferentes maneiras, mas transformá-lo: disputar o senso comum, impulsionar as lutas, estimular a reflexão coletiva, apresentar novas formulações e reforçar a autoconfiança da classe trabalhadora na sua capacidade de mudar o mundo de base.

Reconhecemos que no Brasil há também uma nova geração militante – a geração que se politizou e se radicalizou a partir de junho de 2013, da primavera das mulheres, das ocupações das escolas, da luta contra o golpe, contra a brutalidade das contrarreformas neoliberais de um governo ilegítimo, que se levantou indignada frente a execução da companheira Marielle Franco, que enfrentou o bolsonarismo e agora se prepara para derrotá-lo. Essa geração, formada a quente na luta de massas e no calor das ruas, sente a necessidade de se armar teoricamente e potencializar seu poder de ação por meio da organização coletiva.

Dessa geração vem também a demanda de uma discussão séria sobre como construir poder. Como atacar o bolsonarismo em sua raiz, derrotando não apenas o Bolsonaro, mas também as causas profundas que o tornaram possível? Qual o nosso plano de longo prazo para que uma história de golpes e retrocessos não se repita? O que nós temos para colocar no lugar de uma formação social cuja decomposição produz sintomas tão podres quanto o fortalecimento da mais vulgar e reacionária extrema-direita?

Não temos uma fórmula pronta, nem achamos que precisamos concordar em tudo para fazer coisas juntos. Pensamos que o momento da luta de classes exige uma utilização pragmática de um arsenal sortido de táticas: da ação direta extraparlamentar à disputa da institucionalidade – um pé dentro, um pé fora.

De uma perspectiva internacionalista, a classe trabalhadora brasileira tem muito a contribuir com a humanidade. Nosso movimento popular é admirado globalmente por seu tamanho e combatividade, nossa experiência de organização partidária é rica em inventividade e fértil em lições, a história de resistência e potência do movimento negro e do movimento das mulheres é inspiradora. O Brasil talvez seja o país melhor posicionado para oferecer ao mundo um modelo de transição social-ecológica, guiado pelo ambientalismo classista que remete a figuras de vanguarda como Chico Mendes. A responsabilidade é grande, o que só deve nos animar a tomar o futuro de assalto.

De maneira não-sectária, queremos contribuir para o necessário processo de reorganização da esquerda brasileira, abrindo espaços de diálogo camarada entre diversas tradições políticas e organizações distintas. As tarefas são árduas, e há muito trabalho pela frente – mas o melhor ainda está por vir.

Vitor Marques é professor da Universidade Federal do ABC e diretor de desenvolvimento da Jacobin Brasil.

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