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Joe Biden não é um radical | Luke Savage

As ações dos 100 primeiros dias de Biden revelaram uma administração cujo objetivo mais fundamental é restaurar a República ao seu estado pré-Trump

É verdade que os parâmetros do liberalismo norte-americano claramente mudaram. Mas as ações de Joe Biden em seus primeiros 100 dias revelaram uma administração cujo objetivo mais fundamental é restaurar a República ao seu estado pré-Trump – não empreender uma reconstrução em bases totalmente diferentes.

Quando Joe Biden fez seu primeiro discurso ao Congresso (28/4), ficou óbvio que algo havia mudado. No lugar da retórica dos falcões do déficit, Biden promoveu os gastos e a expansão econômica. Onde o primeiro presidente democrata da era neoliberal enalteceu o governo pequeno, ele falou de empregos, infraestrutura pública e invocou o espírito dos Estados ativistas durante a Segunda Guerra Mundial. Ele falou em reduzir a pobreza infantil, em aumentar o salário mínimo e sobre o espectro das mudanças climáticas. Com um aceno superficial e característico para a virtude pessoal das gente de Wall Street, ele falou dos operários, sindicatos e da classe média, até mesmo pedindo ao Congresso que enviasse a Lei PRO [Lei de Proteção ao Direito de se Organizar – ou Pro Act], potencialmente transformadora, para sua mesa.

Em pelo menos alguns aspectos, o discurso representou uma ruptura marcante com a linguagem do consenso liberal na era pós-Reagan – e também com a retórica que definiu a própria carreira de Biden na vanguarda da centro-direita democrata. O que isso significa? O que isso quis dizer? E o que isso nos diz sobre o estado do liberalismo norte-americano enquanto a presidência de Trump, e o pior do vírus mortal que em última instância definiu seus catastróficos meses finais, se dissolvem na memória?

Em todas as linhas partidárias, grande parte da mídia foi rápida em encontrar uma resposta a essas perguntas. O consenso (expresso com graus variados de aprovação, cautela ou desaprovação, dependendo da fonte) é que Joe Biden é, embora um tanto improvável, uma figura de tendência radical, com a intenção de provocar mudanças duradouras no teor da vida norte-americana, desviando drasticamente dos jargões ideológicos que definiram a política desde a revolução Reagan. É uma história organizada, convincente e, para muitos, compreensivelmente reconfortante no rescaldo de uma presidência vivida por praticamente todos, exceto seus próprios zelotes comprometidos, como um trauma nacional singular. É também, na melhor das hipóteses, um exercício de carroça na frente dos bois na realização preventiva de desejos políticos; na pior das hipóteses, um estudo de caso sobre a maneira como as narrativas intoxicantes da mídia podem ultrapassar a realidade e inaugurar uma nova era antes que algo parecido realmente chegue.

Mesmo antes de ganhar a presidência, a agenda política declarada de Joe Biden já estava sendo comparada a LBJ [Lyndon Baines Johnson] e FDR [Franklin Delano Roosevelt]. Desde janeiro, essas analogias só aumentaram de volume à medida que comentaristas e meios de comunicação respondiam aos primeiros dias de sua administração: “Biden é realmente a segunda vinda de FDR e LBJ?” (revista New Yorker); “Será que Joe Biden ocupará seu lugar ao lado de FDR e LBJ?” (CNN); “Pode Biden alcançar uma presidência no estilo FDR? Um historiador vê paralelos surpreendentes” (The Washington Post). Alguns, particularmente os mais efusivos, até evitaram a pretensão de um ponto de interrogação em favor da proclamação direta: “Quatro maneiras de olhar para o radicalismo de Joe Biden” (Ezra Klein); “Joe Biden é um presidente transformador” (David Brooks); “Bem-vindo à Nova Era Progressista” (Anand Giridharadas). (Um terceiro gênero, mais bajulador, entretanto, fundiu efetivamente os dois formatos para perguntar como exatamente é que Joe Biden é tão incrível.)

Juntas, matérias como essas – extremamente variadas em termos de amplitude, reflexão e perspectiva – constituem uma amostra decentemente representativa do consenso da mídia ao longo dos primeiros cem dias de Biden. Pondo de lado as conclusões que a maioria oferece (ou pelo menos sugere), as muitas analogias com LBJ e FDR nos fornecem uma métrica útil para avaliar a presidência de Biden e, em particular, as afirmações feitas sobre seu ímpeto radical e ambição transformadora. Ambos os presidentes, embora de maneiras diferentes, presidiram épocas que viram a reconfiguração das instituições norte-americanas, mas também uma redefinição parcial dos termos através dos quais eram coletivamente entendidas.

New Deal, para dar o exemplo mais óbvio, produziu um consenso político durável, mas também uma estrutura nova e duradoura para pensar sobre direitos, bem-estar e o papel do Estado. Os programas e a legislação que constituíram a Great Society, por sua vez, também produziram as bases de um novo contrato social quando se tratava de saúde, habitação e direitos civis, e reordenaram o imaginário político dos Estados Unidos no processo. Com um espírito radicalmente diferente, a revolução Reagan incorporou com sucesso as ideias conservadoras sobre tributação, gastos públicos e cultura, ao mesmo tempo em que introduzia reformas que seriam adotadas pelas administrações subsequentes.

Ruptura com o passado, durabilidade no futuro e uma marca ao mesmo tempo institucional e ideológica: essas são as marcas básicas de qualquer era política que, em retrospecto, pode ser chamada de transformadora ou radical.

Embora seja certamente mais fácil pronunciar-se sobre presidências anteriores do que sobre uma com apenas quatro meses de vida, os primeiros cem dias da era Biden não nos deram uma indicação particularmente forte de que a nova administração seja animada por esse tipo de zelo reformista. Sobre imigração e política externa – dois assuntos que atraíram atenção especial entre os liberais durante a presidência de Trump – ele manteve até agora uma lamentável continuidade com seu antecessor.

Com algumas exceções notáveis, absteve-se de exercer o tremendo poder discricionário à sua disposição para maximizar o potencial das ordens executivas. (No que é indiscutivelmente a questão moral mais importante que a política global enfrenta hoje – a potencial renúncia aos direitos de propriedade intelectual em torno das vacinas para COVID-19 – ele também, desnecessariamente, fez corpo mole com uma promessa de campanha explícita e teve que passar vergonha com a ação de ativistas para colocar os interesses das vítimas da pandemia no mundo em desenvolvimento, à frente das empresas farmacêuticas.)

Em pelo menos uma outra área significativa, a saber, saúde, Biden também foi caracteristicamente conservador. Embora não seja surpreendente, dadas muitas de suas declarações durante a campanha, o contexto é instrutivo. Afinal, algumas das reformas mais significativas dos EUA nasceram tanto da crise quanto da intenção política direta, e um presidente que reluta em usar uma pandemia que ocorre uma vez a cada geração para promover mudanças estruturais na forma como os cuidados de saúde são prestados, o que torna pouco convincente a defesa de seu caráter radical. Embora o recente discurso de Biden ao Congresso tenha incluído uma recitação litúrgica do mantra de que “a saúde deve ser um direito, não um privilégio”, em lugar algum foi encontrada qualquer referência à sua outrora alardeada, e supostamente viável, Opção Pública [isto é, seguro saúde em geral oferecido pelo governo em concorrência com as seguradoras privadas], muito menos qualquer menção a um sistema realmente universal, – uma pista tão segura quanto qualquer outra de que a liderança democrata não tem planos de alterar sua relação amigável com as seguradoras.

A exceção óbvia, é claro, é o recém-aprovado American Rescue Plan [Plano de Resgate Norte-Americano] de US$ 1,9 trilhão – um pacote que, entre outras coisas, inclui várias disposições de política social que os especialistas acreditam que reduzirá a pobreza infantil pela metade até meados do verão. Em tamanho e escopo, o plano é inegavelmente uma grande melhoria em seu equivalente da era Obama (o projeto de estímulo de 2009 sendo consideravelmente menor). Um sopro de heterodoxia fiscal, entretanto, não implica transformação ou realinhamento político, muito menos quando tem precedente direto em um passado não tão distante. Afinal, o CARES Act [Coronavirus Aid, Relief, and Economic Security Act] da era Trump, de US$ 2,2 trilhões, aprovado há pouco mais de um ano, era de fato um pouco maior e seu impacto antipobreza era praticamente o mesmo. Como Seth Ackerman, de Jacobin, apontou em março, as principais medidas antipobreza contidas no estímulo de Biden também são apenas temporárias, o que certamente é um detalhe relevante dado como às vezes foram enquadradas:

“Não obstante as perspectivas intoxicantes, as medidas de combate à pobreza do projeto de lei, conforme redigidas, preveem que uma série de cheques sejam enviados por doze meses e depois sejam encerrados…. Em outras palavras, o plano de alívio de Biden é o que se esperaria que um presidente Joe Biden aprovasse em uma emergência. Como a safra de medidas de 2020, é uma coleção de expedientes temporários para amortecer as dificuldades durante uma crise. O que não é – por si só, pelo menos – é qualquer tipo de mudança de paradigma. Nem transforma nada em particular, pelo menos não depois de 2021.”

O conjunto de políticas contidas no American Rescue Plan representa uma injeção muito necessária de investimento público durante uma crise histórica, mas não constitui um programa social-democrata. Seu American Families Plan [Plano da Famílias Norte-Americanas] que ainda não foi aprovado, se é que isso importa, propõe para estender medidas como o crédito tributário infantil aprimorado até 2025. Como a pandemia ressaltou de forma tão cruel, a infraestrutura social e econômica do país é terrivelmente frágil, e o estímulo de Biden ajudará a consertá-la. Mas, como sugere a adesão generalizada das grandes empresas ao plano, há uma distinção importante a ser feita entre os gastos públicos utilitários durante uma crise e a ambição, ao modo de FDR, por uma renegociação igualitária do contrato social. Como Matt Karp disse recentemente:

“Apesar de todos os hurras pelo progresso em direção à social-democracia norte-americana, é difícil ver como alguma coisa aqui começa a alterar as relações sociais entre trabalhador e patrão, cidadão e estado, trabalho e capital. Há uma razão pela qual 170 líderes empresariais, incluindo os CEOs da Goldman Sachs, Google, Lyft, Siemens, Visa e Zillow, publicaram uma carta apoiando o pacote. O único dispositivo no projeto da Câmara que desafiou as preferências de alguns líderes empresariais, o salário mínimo de US$ 15, foi enviado ao Senado sem qualquer pressão dos principais democratas para contrabalançar a oposição.”

O plano tributário de Biden, por sua vez, propõe financiar os gastos restaurando as taxas da era George W. Bush para a faixa tributária superior (em vez dos níveis de Roosevelt de 94 por cento ou mesmo níveis pré-Reagan de 70 por cento), e Biden recentemente pareceu ressuscitar sua hostilidade convencional aos gastos deficitários.

Tanto a Lei PRO quanto, potencialmente, o históricos projeto de lei de direitos de voto HR 1 [House Resolution 1, ou, Resolução no. 1 da Câmara], atualmente em tramitação no Senado após a aprovação na Câmara, por outro lado, seria genuinamente transformadoras se aprovadas. Mas, por enquanto, a estratégia democrata para eles não está clara, dada a presença contínua da obstrução (ou mesmo se a Casa Branca vai arriscar o pescoço por elas, o recente debate em torno do salário mínimo estabelecendo um precedente pouco encorajador).

Ao todo, o impulso da agenda doméstica de Biden, até agora, está aquém de qualquer coisa digna de comparação com a Great Society ou New Deal em escala ou escopo. Diferentemente de 2009 e com uma maioria menor no Congresso do seu lado, o novo governo optou, pelo menos provisoriamente, por romper com a retórica conservadora e – com a aprovação das empresas – com o instinto de contenção fiscal que paralisou o primeiro mandato de Barack Obama. Mas não declarou, como às vezes se insinuou nos últimos meses, uma cruzada contra a injustiça, nem demonstrou uma vontade particular de antagonizar a indústria privada da maneira necessária para alcançar um realinhamento político duradouro ou uma renovação democrática.

A história dos primeiros cem dias de Joe Biden é a de um liberalismo compelido por uma mistura de circunstância e necessidade de ser menos cauteloso e mais ativista do que seus análogos na memória recente. Mas também é uma história de melhorismo centrista confundido com radicalismo e intenção restauradora misturada com ambição transformadora. Se uma mudança duradoura surgir nos próximos quatro anos, será porque as pessoas e os movimentos conseguiram obter concessões daqueles que estão no poder que não querem conceder – não porque um presidente liberal convencional milagrosamente as entregou a partir de cima.

Foto: Nicholas Kamm / AFP via Getty Images

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