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Moro, o antijuiz | Marcelo Uchôa

Após as divulgações dos diálogos apurados na operação Spoofing, que deixou mais do que esclarecido que havia um conluio entre o ex-juiz Moro e os procuradores da antiga Força Tarefa da Lava Jato para condenar o ex-presidente Lula, ato contínuo prendendo-o injustamente e impedindo-o de candidatar-se à presidência da República, parece certo que o STF retomará o julgamento do habeas corpus do ex-presidente, declarando a suspeição de Moro e anulando todas as condenações dolosamente prolatadas com fundamento em diversas modalidades de fraude processual, ilícitos penais, condenações que fatalmente inexistiram se o ex-Todo Poderoso de Curitiba houvesse aprendido nos bancos do curso de direito que frequentou sobre a grandeza do que é ser juiz e ter sob sua responsabilidade a honra de exercer a jurisdição em nome do Estado.

Ser juiz não é atividade fácil. É posicionar-se entre um acusado e um acusador com a atribuição de escutar duas narrativas opostas e dizer qual das duas é a verdadeira segundo os critérios de justiça que uma sociedade estabeleceu pelo direito. Sob a toga do magistrado recai o mister elevado de transformar a justiça de ideal figurado em matéria concreta, independentemente das pressões exteriores do mundo cotidiano. Não é profissão para não estudiosos, para vaidosos, para desprovidos de caráter.

A magistratura é uma função tão honrosa que, não por acaso, o Estado blinda os juízes com prerrogativas que a quase mais ninguém oferece. Vitaliciedade, inamovibilidade, irredutibilidade de subsídios são apenas algumas das garantias previstas no art. 96 da Constituição estabelecidas para que o representante da jurisdição estatal possa agir com independência na presidência de um processo que lhe seja submetido. Em contraprestação, o magistrado só precisa ser diligente, fazer o seu trabalho com esmero. Saber ouvir, interpretar bem o direito e, naturalmente, manter equidistância das partes para proferir um julgamento justo. O ex-juiz Moro não fez isso. Ele nunca foi juiz, ele foi um antijuiz. Por má-fé contaminou todos os processos movidos contra o ex-presidente Lula com seu obstinado interesse de condenar um inocente. Um afã tão incontido que arrogou de funções exteriores à sua fazendo as vezes de investigador, acusador e julgador. Ele foi um três um em numa relação que o Estado separa institucionalmente, porque entende que somente assim tratará com honestidade seus cidadãos.

Se o ex-juiz Moro tivesse lido ‘As Misérias do Processo Penal’ de Francesco Carnelutti, libelo amplamente indicado nos cursos de graduação jurídica do mundo inteiro, haveria gravado na mente a seguinte lição: “No topo da escada está o juiz. Não há um mister mais alto que o seu nem uma mais imponente dignidade. Ele é colocado na Corte, sobre a cátedra; e merece esta superioridade. (…) Nós dizemos que frente ao juiz estão as partes. (…) Se, entretanto, aqueles que estão defronte ao juiz para serem julgados são partes, quer dizer que o juiz não é uma parte” (Ed. Pilares, 2013, p. 18-19). 

Um juiz de verdade conhece o seu lugar no tribunal. O juiz está sobre as partes ou entre as partes, jamais sobre uma parte a serviço da outra. A imparcialidade é a pedra angular da função judicial. Quando faz dessa lição letra morta o juiz contamina sua atuação, vicia o processo, prejudica a parte, frustra o interesse estatal, trai a justiça. O conluio entre Moro, Dallagnol e cúmplices em nenhum momento sugere respeito ao processo. Também por isso, a suspeição pleiteada é questão de honra para o Estado brasileiro. No conhecido texto ‘O justo e a justiça política’, que dificilmente Moro leu na vida, Rui Barbosa sinalou a nobreza requerida ao trabalho judicante comparando-a com a injustiça concebida no martírio de Cristo: “Por seis julgamentos passou Cristo, três às mãos dos judeus, três às dos romanos, e em nenhum teve um juiz. Aos olhos dos seus julgadores refulgiu sucessivamente a inocência divina, e nenhum ousou estender-lhe a proteção da toga. Não há tribunais, que bastem, para abrigar o direito, quando o dever se ausenta da consciência dos magistrados” (Ed. Fundação Casa de Rui Barbosa, 2021, p. 2).

É sobre parcialidade e imparcialidade, suspeição judicial, que a Segunda Turma do STF se pronunciará no julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula. É evidente que pela estatura do requerente, as dores sofridas, as circunstâncias e as causas deletérias por trás de todo degenerado lawfare põe-se em jogo, também, o reestabelecimento da ordem moral do país, mas o remédio constitucional que aguarda acolhida na Suprema Corte trata da restauração da justiça num caso concreto, um caso que por ter sido administrado com tamanha indecência pelo sistema judiciário brasileiro precisa ser remediado o quanto antes.

No dorso de toda perversidade protagonizada por uma sorte de desvaneios com fins múltiplos (detratação de um partido político, aniquilamento de reputações, destituição de um projeto de governo em curso, conversão de um estado social em liberal, entrega da soberania nacional, estabelecimento do fascismo, seja o que for) o que está em jogo é uma garantia básica para qualquer regime que se autodefine minimamente democrático, com raiz no devido processo legal: a imparcialidade do juiz. Quando o juiz não é isento o processo é nulo, não porque possui um vício episódico de nulidade, mas porque é inconcebivelmente corrompido. Na hipótese da parcialidade do juízo o contágio contamina a essência da judicância. Qualquer processo decorrente dessa circunstância é radicalmente nulo.

O art. 8º do Código de Ética da Magistratura, que complementa os deveres funcionais dos juízes dispostos na Constituição e em outras disposições legais específicas estipula que “O magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes, e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito”. É inequívoco que tal comportamento inocorreu nas instruções e julgamentos das ações penais contra o ex-presidente Lula, seja no processo do Triplex, em que a denúncia lhe foi levantada não com existência de provas, mas com simples convicções, e que na sequência se viu inegável favorecimento pessoal do juiz que lhe condenou com investidura em cargo de prestígio no governo que não teria sido eleito se ele não tivesse impedido o ex-presidente de se candidatar, ou no processo do sítio de Atibaia, em que houve incontroversa manipulação de delação premiada e que culminou numa sentença prolatada com recurso de “copiar colar”, ambas com manifesta confabulação judicial com o Ministério Público.

Claro que para agir com desmedida sordidez o protagonista-mor da Lava Jato não se debruçou sobre outro clássico elementar dos bancos escolares, ‘Eles, os juízes, vistos por um advogado’. Ali, Piero Calamandrei diz com todas as letras: “Por isso o Estado sente como essencial o problema da escolha dos juízes – porque sabe que confia a eles um poder terrível que, mal empregado, pode fazer que a injustiça se torne justa, obrigar a majestade da lei a se fazer paladina do erro e imprimir indelevelmente na cândida inocência a mácula sanguínea que a tornará para sempre indistinta do delito. (…) O juiz é o direito feito homem. Só desse homem posso esperar, na vida prática, aquela tutela que em abstrato a lei me promete. Só se esse homem for capaz de pronunciar a meu favor a palavra da justiça, poderei perceber que o direito não é uma sombra vã. (…) Se o juiz não for vigilante, a voz do direito permanecerá evanescente e distante como as inalcançáveis vozes dos sonhos” (Ed. Martins Fontes, 1995, p.11-12). 

Um dia o Brasil terá que passar limpo os problemas de seu Judiciário para que mais falsos super-heróis togados, avessos aos ensinamentos acima, não venham a se proliferar. Por ora, evidentemente, o STF terá que reparar a injustiça com o ex-presidente Lula concedendo-lhe o habeas corpus requisitado, anulando os processos contaminados por aquele que só foi juiz formalmente, porque nunca entendeu o que é ser juiz. Uma vez, porém, anulados os malfeitos e restituídos os direitos políticos do ex-presidente, é questão de honra para o Estado brasileiro buscar a responsabilização administrativa e criminal de todos os magistrados e procuradores que desonraram suas funções institucionais, traindo de morte o país e o povo.

  • Marcelo UchôaAdvogado e Professor de Direito da Universidade de Fortaleza. Membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) – Núcleo Ceará. Twitter/Instagram: @MarceloUchoa_

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