Por Marcela Ribeiro, no Blog da MMM
As mulheres negras nunca reconheceram em si o mito da fragilidade que historicamente justificou a proteção paternalista. Aprenderam desde muito cedo na dureza das lavouras, do comércio informal, que sua vida valia apenas o que produzia. A coisificação do povo negro fez com que o machismo sobre as mulheres negras tivesse radicalidade, principalmente na mercantilização de suas vidas e corpos.
Após séculos de exploração de seus corpos e vidas ainda há de forma intensa um processo de erotização e apropriação dos corpos das mulheres negras que na divisão das mulheres entre santas e profanas, as negras são sempre vistas como as profanas. Aquelas que não são para casar, mas meramente para diversão casual.
É uma realidade difícil ser negra latino-americana numa sociedade construída a partir do racismo e do patriarcado. Sendo o racismo uma lógica em que uma raça se organiza para oprimir outra raça, temos isso delineado nos países latino-americanos através da exclusão territorial, social, econômica e política. Onde a mulher negra acaba sofrendo uma dupla opressão, já que há historicamente construída, uma hegemonia de um gênero sobre o outro.
“O papel da mulher negra é negado na formação da cultura nacional; a desigualdade entre homens e mulheres é erotizada; e a violência sexual contra as mulheres negras foi convertida em um romance”, Gilliam. Ainda hoje, há uma dificuldade em reconhecer as mulheres negras que estiveram no centro das lutas e movimentos sociais e culturais, as heroínas negras são totalmente invisibilizadas.
No Brasil quando do pouco que se fala da resistência negra, quase nada ou nada se fala de Dandara, Luíza Mahin, Carolina Maria de Jesus, Mãe Menininha, Tereza de Benguela, Laudelina Mello e tantas outras mulheres negras protagonistas não apenas de suas histórias, mas da história brasileira.
Enegrecer a distribuição de renda: Uma Política Feminista E Popular
Não é factível combater o machismo e não se sensibilizar a situação das mulheres negras. Ser feminista é casar a agenda contra o sexismo com a luta antirracista, compreendendo que as mulheres negras além de sofrerem com a herança do patriarcado sofrem também com a herança perversa do racismo. O machismo e o racismo estão entrelaçados, são faces da mesma moeda, opressões inerentes ao atual sistema de produção.
Apesar dos avanços que representam o aumento do salário mínimo, a criação de mais empregos e a política de geração de renda dos últimos dez anos no Brasil, as disparidades entre raça e gênero pouco se alteraram principalmente no que tange as relações no mercado de trabalho.
Em que pese não vermos com tanta frequência a observação: “exige-se boa aparência”, ainda hoje temos um cenário em que a maioria desempregada tem cor e gênero, são mulheres e negras (12,5%), seguidas pelas mulheres brancas (9,2%), depois pelos homens negros (6,6%) e com menor índice de desemprego os homens brancos (5,3%). Dados reunidos no Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça (na quarta edição, em 2011).
Analisando um pouco mais, é de fácil percepção que as mulheres negras estão nos setores mais precarizados, com menores remunerações e com maior vulnerabilidade social. Há uma estimativa de que no Brasil seis milhões e meio de mulheres estão laborando como domésticas, dessas a esmagadora maioria são negras.
Quando tratamos da renda média das e dos trabalhadores, dados da mesma pesquisa expressam o cenário da disparidade entre mulheres e homens, negros e não negros. Na base da pirâmide social temos as mulheres negras recebendo cerca de R$ 544,00; seguida pelos homens negros recebendo cerca de R$ 853,00; antes das mulheres brancas com media de R$ 957,00 e entre os mais bem remunerados os homens brancos na faixa de R$ 1491,00.
Mesmo diante desse cenário ainda temos a maioria das famílias monoparentais chefiadas por mulheres e negras, daí a centralidade de pensarmos nas políticas públicas como politicas raciais e de gênero. Por que trata-se do setor dependente dos equipamentos públicos motivo pelo qual compreendemos também o motivo de ser ainda tão negligenciado pela elite brasileira. Trata-se essencialmente de dialogar com a classe popular e trabalhadora, de empoderar esse setor com a valorização do público em detrimento do privado.
Avançar no processo de revolução democrática no Brasil perpassa por promover políticas públicas que foquem na superação das relações racistas e machistas estruturantes do modelo neoliberal de sociedade. Esse é o atual desafio do governo brasileiro o qual deverá ser seguido por outros governos do campo popular na América Latina.
Eu aborto, tu abortas, somos todas clandestinas
A última Pesquisa Nacional sobre Aborto no Brasil, realizada em 2010 pela Universidade de Brasília, revela que uma em cada sete brasileiras entre 18 e 39 já realizou ao menos um aborto na vida, o que equivale a 5 milhões de mulheres.
Quando falamos do genocídio da juventude negra, sempre apresentamos o que representa a criminalização do aborto para as jovens mulheres negras. Uma lei que criminaliza apenas uma parcela da sociedade brasileira por si só além de imoral é no mínimo ilegítima.
E é exatamente isso o que ocorre com a criminalização do aborto, uma vez que, as mulheres de alto poder aquisitivo podem e pagam em clínicas caríssimas por segurança e sigilo, as mulheres pobres, negras, da periferia, ou das zonas rurais, abortam em condições precárias e quando recorrem ao SUS são criminalizadas e ojerizadas.
Trata-se de um problema de saúde pública, de um agravante ao genocídio da juventude negra, de uma lei racista, moralista e arraigada dos valores do patriarcado onde limita a autonomia das mulheres sobre seus corpos além de ferir a laicidade do estado brasileiro.
Legalizar o aborto é uma bandeira de luta pela vida. Pela vida das mulheres, jovens, mulheres e negras!
Universidade se pintando de povo
Quando pensamos em uma universidade de qualidade pensamos em uma universidade popular, não só em seu projeto pedagógico, mas na sua estrutura, na composição dos seus atores e atrizes, do corpo docente ao discente.
Portanto, pensar uma universidade de qualidade é pensar em um ambiente onde teremos negros e não negros, homens e mulheres, homossexuais, transexuais, travestis, bissexuais, construindo a academia e rompendo com o processo de colonização do conhecimento e o eurocentrismo, ou seja, uma universidade diversa, plural e que não reproduza as opressões da heteronormatividade, de gênero e racial.
Apesar de estarmos avançando na democratização do ensino superior no Brasil, principalmente com o advento da política de cotas étnico-raciais ainda temos uma realidade cruel quando colocamos no centro do debate a situação das mulheres negras.
Fato que hoje a maioria do corpo discente nas universidades brasileiras é composta por mulheres, no entanto, de modo geral permanecemos invisibilizadas na academia. As referências bibliográficas ainda são majoritariamente masculinas e brancas, assim como o quadro docente. Para a mulher negra essa realidade é ainda pior, segundo dados do IPEA, enquanto uma mulher branca costuma estudar cerca de 9,7 anos as mulheres negras estudam em media 7,8 anos.
Mulheres negras enfrentam maiores dificuldades para entrar, se manter e sair da universidade; quando muita das vezes nem chegam a pisar por lá. Democratizar o ensino é dar condições para termos mulheres e mais mulheres negras construindo essas universidades de dentro pra fora, como mestras e doutoras, mas de fora pra dentro, com todo seu conhecimento popular, o qual deve ser respeitado pela academia.
25 de julho: mais um dia de luta
Há 21 anos, no primeiro encontro das afro-latinas e afro-caribenhas, em Santo Domingo estabeleceu-se o dia 25 de julho como o dia latino-americano e caribenho da mulher negra.
As disparidades de gênero e raça colocam as opressões sexistas e racistas como um tema atual e iminente, trata-se de dois sustentáculos do modelo socioeconômico vigente. Por isso o dia 25 de julho é uma data que nos lembra do quanto as mulheres negras ainda precisam avançar nas conquistas de direitos.
A superação do racismo e do machismo é uma luta árdua, constante, de crítica e desconstrução do modelo de produção, da cultura hegemônica, do sistema educacional, político e econômico.
Lutar pela mulher negra significa lutar contra o capital, contra o padrão de beleza eurocêntrico, contra a hierarquização da cultura, contra a colonização do conhecimento, contra o eurocentrismo, contra a estigmatização juntamente com a luta pela valorização da cultura negra, popular e periférica, de igualdade de oportunidades, por políticas de equidade e de reparação. Significa lutar por transformações radicais na estrutura da sociedade.
Emancipação, respeito, dignidade, valorização, irreverência, subversão são algumas das palavras que podem ser colocadas no centro do dia de luta pela mulher negra não só no Brasil mais em toda América Latina e Caribe.
* Marcela Ribeiro é Diretora de Combate ao Racismo da UNE e militante da Marcha Mundial das Mulheres.
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