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Nalu Faria: Não há socialismo sem feminismo! Não há feminismo sem socialismo!

Foto: Marta Baião

O debate sobre o caráter e a extensão da opressão das mulheres está colocado na esquerda desde os seus primórdios. Esse ano em que se completa 100 anos da Revolução Russa nos traz a oportunidade de recuperar parte da história de luta das mulheres, de alguns dos seus debates mais importantes e do esforço das militantes socialistas para convencer suas organizações políticas da centralidade da luta pela libertação das mulheres.

A opressão das mulheres não surge com a sociedade de classes, mas em todas as formações sociais homens e mulheres foram reinseridos segundo sua classe e a desigualdade entre mulheres e homens se remodela favorecendo a dominação masculina ao combinar as relações sociais de sexo (ou de gênero) com a dominação de classe. Hoje podemos perceber como a dominação e a opressão estão estruturadas sobre as relações de sexo, de raça e de classe . Estas são relações sociais que operam e se manifestam pela exploração, dominação e opressão.

A luta das militantes feministas socialistas, com os distintos instrumentos teóricos e políticos da cada época, é marcada pelo esforço de construir as condições para uma transformação integral das relações sociais. Isso exige uma elaboração teórica e uma ação política que altere os estreitos limites com os quais a esquerda ainda enxerga a luta das mulheres.

No momento atual, as mulheres demonstram força e capacidade organizativa em mobilizações contra a reação patriarcal, manifesta na violência machista, em ataques à autonomia das mulheres, mas também afirmando a luta feminista na resistência aos retrocessos impostos pelo golpe. Podemos afirmar que amplos setores compreendem que a desigualdade das mulheres estrutura o conjunto das relações e práticas sociais e há uma coextensividade entre classe, raça e gênero, na medida em que estas relações se reproduzem e co-produzem mutuamente.

No entanto, na esquerda socialista continua havendo uma tensão permanente em relação a essa questão. Dois elementos balizam as dificuldades do campo de esquerda para incorporar em sua análise os acúmulos dofeminismo anticapitalista e socialista.

Em primeiro lugar, houve por um longo período uma visão hegemônica sobre a centralidade da exploração de classe, e das outras opressões como secundárias e subordinadas. Um dos resultados é que não considera estratégica a organização do movimento de mulheres como parte do sujeito histórico. Ou seja, não se incorpora a especificidade do movimento feminista, como uma agenda anti-patriarcal; e o que se propõe é a organização das mulheres para comporem fileiras da organização da classe. Nesse caso, a auto-organização é vista muito mais com uma necessidade tática.

O segundo é a tendência a reduzir a luta feminista a uma dimensão cultural e de mudança de valores sem levar em conta a base material da opressão. Isso cria um paradoxo em que muitas vezes os critérios para avaliar agendas e alianças da luta das mulheres não são os mesmos da luta de classes “dura”. É como parte dessa perspectiva que hoje há uma tendência em vários setores, inclusive do PT, de considerar o feminismo como uma questão apenas identitária. Dessa forma não considera a base material da opressão das mulheres, não reconhece a divisão sexual do trabalho e de como o capitalismo teve como um eixo estruturante a separação da produção para o mercado do processo de reprodução da vida. O capitalismo feminizou o trabalho de reprodução da vida ao mesmo tempo em que o invisibilizou, não reconhecendo como trabalho.

Todas as atividades das mulheres passam a ser vistas como extensão da reprodução e dessa forma foram desvalorizadas.
A divisão sexual do trabalho é a base material para uma relação social específica do grupo social dos homens com o grupo social das mulheres. Como diz Danièle Kergoat toda relação social é marcada por antagonismo e portanto de tensão e conflito . Trata-se de uma relação de poder onde o conjunto dos homens se apropriam de parte do trabalho e do tempo das mulheres.

A imposição do modelo de família mononuclear e a heterossexualidade foram fundamentais para organizar a reprodução para garantir essa divisão entre produção e reprodução, estruturante da divisão sexual do trabalho e fundamental para manter a supremacia masculina, inclusive naturalizando a violência patriarcal. O racismo estruturante da sociedade brasileira interfere nesta dinâmica, manifesta no enorme contingente de mulheres negras e pobres ocupadas no trabalho doméstico e de cuidados precário e sem direitos. O caráter racista de nossa sociedade coloca os negros e negras não só como os mais pobres, mas os mais marginalizados, criminalizados e vítimas da violência da burguesia e do Estado brasileiro.

No capitalismo a dominação masculina é tratada como se fosse parte da natureza, algo imutável. Esse mecanismo de naturalização busca esconder a desigualdade e trata como diferenças as hierarquias entre o masculino e feminino. Ainda considera que a feminilidade das mulheres de fato as torna dóceis, frágeis, dependentes e com menos capacidade de pensar.

Não é preciso dizer que os homens são vistos exatamente o contrário e aí que entra a violência como mecanismo de controle e poder. A violência é presente cotidianamente na vida das mulheres seja de forma concreta ou simbólica, na medida que o processo de desqualificação é permanente e são várias as estratégias para minar o amor próprio das mulheres.

O fato de todos os homens se beneficiarem da opressão das mulheres define uma das maiores contradições para a organização feminista na esquerda em geral. Os homens da classe trabalhadora também usufruem desses privilégios, do ponto de vista do trabalho assalariado e doméstico, da sexualidade, do cuidado, dos espaços de participação e poder. Nessa sociedade androcêntrica – construída a partir da hegemonia da experiência masculina branca- os homens se sentem donos e chefes das mulheres nos espaços privados e públicos. As mulheres são vistas e tratadas como disponíveis para satisfazer seus desejos e necessidades, nas esferas do trabalho, das ações políticas, da subjetividade, da sexualidade e a desqualificação feminina é utilizada como ferramenta permanente para excluir as mulheres.

Por isso em uma organização como o PT que coloca o socialismo como parte de sua essência, de sua razão de ser, é necessário enfrentar estas contradições. Ampliar o conceito de político para incorporar dimensões da esfera pessoal, da reprodução foi uma das principais contribuições do feminismo e de questionamento profundo das estruturas de dominação da atual sociedade. Superar a opressão das mulheres exige, portanto, mudanças profundas no conjunto da sociedade, do partido e das práticas cotidianas. A dinâmica atual do partido não tem sido capaz de responder a isso.

Seria mais fácil se fosse uma questão identitária que pode se resolver apenas com reconhecimento e representação, mas é de uma transformação profunda que revolucionará por inteiro homens e mulheres que precisamos. Reafirmamos também que não haverá feminismo sem socialismo e isso implica um projeto socialista que atue contra todas as formas de exploração e de opressão.

Nalu Faria, militante feminista do PT, membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo, para a  Tribuna de Debates do 6º Congresso. Saiba como participar.

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