O isolamento me tirou dos sebos, mas quem me rouba – nos rouba – a vida é o inominável
O isolamento social me tirou de muitos locais e, entre eles, os sebos e como consequência me tirou também de novos namoros.
Faz mais de ano que não sinto o cheiro de fungos (arg), poeiras, discos e livros – além daqueles que tenho em casa – usados. Tampouco tenho sentido o cheiro imaginativo das histórias dos LPs, dos livros e das dedicatórias abandonadas.
Frequentador de sebos e não caçador e/ou colecionador de dedicatórias hoje tenho que procurá-las entre as prateleiras – limitadas – de casa.
As visitas aos sebos – na maioria das vezes – é um passeio: não procuro nada e encontro muitas coisas e quando vou embora levo comigo algum livro ou LP e vontades. Vontades levo de montão.
Vontade de ter comprado este ou aquele livro ou LP.
Não compro por faltar dinheiro ou o diabinho atrás da orelha sempre endiabrando: “você precisa deste livro? Algum dia você vai ler este livro? Não acha este disco muito caro, você já tem tantos? Olhe bem, ele está riscado”.
Não procuro convencê-lo do contrário e finjo estar convencido e vou embora de mãos menos carregadas ou vazias.
A cada visita – mesmo não levando nada – deixo namoros. São discos e livros com quem renovo o namoro – se é que não fugiu com algum/a outro/a amante – de visitas anteriores e arrumo novos namoros e novos desejos e desejados.
Nunca namorei tanto como depois que comecei a visitar sebos. Com o isolamento sinto falta destes namoros.
O bom de tudo isso é que são namoros sem crises de ciúmes e o compromisso é de caráter pessoal e intransferível e não competem entre si. Na minha consciência tem lugar para todos. Não tem é no bolso.
Pelo isolamento ando sem novos namoros. Recorro aos antigos que acabei conquistando. Vivo com eles diariamente e, entre eles Caymmi.
Imagino que Caymmi também teve diversos namoros e não sei como ele dava conta e tampouco sei se Stella Maris tinha ciúmes.
Os namoros de Caymmi se concretizavam em poesia, desenhos e músicas e uma delas é “…das Rosas”.
Nada como ser rosa na vida / Rosa mesmo ou mesmo rosa mulher / Todos querem muito bem a rosa / Quero eu ….
(…)
Rosas…rosas … rosas… / Rosas formosas são rosas de mim / Rosas a me confundir / Rosas a te confundir / Com as rosas, as rosas, as rosas, de abril / Rosas… rosas… rosas… / Rosas mimosas são rosas de ti / Rosas a me confundir / Rosas a te confundir…
Caymmi cantou muitas canções e muitas delas tendo por tema mulheres: Marina, Juliana, Dora, Rosa Morena e baianas, como a do acarajé e Mãe Menininha.
Todas estas canções são frutos de namoros?
Entre os LPs que tenho em casa está Caymmi, Também É do Rancho, Odeon, 1973, que, entre outras, tem as seguintes músicas: “…Das Rosas, Rosa Morena, Marina”. Também consta no LP duas “História de Pescadores: Canção da Partida” e “Temporal”.
Na capa deste disco há uma anotação que pode ser uma dedicatória ou mesmo uma observação feita pelo antigo proprietário:
J.
Momentos de Paz
Setembro/1973.
Em janeiro de 1973 foi minha primeira viagem a – Bahia – Salvador, e uma das coisas que mais queria conhecer e conheci era a praia de Itapoan (grafia usada na capa do disco), por uma simples razão, a música Coqueiro de Itapoan.
Cada vez que ouço o disco me interrogo: “será que o antigo dono/a não teve mais momentos de paz – a não ser no dia que grafou esta mensagem – e isto levou a vender o disco? Ou será que foi pego pela ditadura e o disco foi levado – junto como outros objetos – como prova de ser – de esquerda – comunista?”
A maioria dos objetos apreendidos por policiais, alcaguetes e dedos duros durante a ditadura jamais foram devolvidos para seus antigos/as donos/as e pode ter ocorrido de ter ido parar num sebo.
Em 1973 não havia paz.
Havia – uma ditadura militar – perseguições, prisões, torturas e brasileiros e brasileiras partindo para o exílio ou já vivendo no exílio.
Imagino que um dos poucos “momentos de paz” fosse deitado numa rede ouvindo Caymmi:
Minha jangada vai sair pro mar / Vou trabalhar meu bem querer / Se Deus quiser quando eu voltar do mar / Um peixe bom eu vou trazer / Meus companheiros também vão voltar / E a Deus do céu vamos agradecer.
Alguns/mas foram arrastados/as pela ditadura e nunca mais voltaram.
Hoje tampouco vivemos momentos de paz e não é o isolamento que está nos roubando-a. Quem nos roupa a paz e a vida é o Inominável presidente e toda a caterva que o sustenta.
O isolamento me tirou dos sebos, mas quem me rouba – nos rouba – a vida é o Inominável.
- Dr. Rosinha é medico pediatra, foi deputado federal pelo PT-PR.
Ilustração: Benett
Publicação original: www.plural.jor.br/cronicas/florisvaldo-fier/namoros/
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