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Necropoder | Dr. Rosinha

No início da pandemia circularam comentários afirmando que o coronavírus era um vírus democrático: infecta a todas e todos independente de raça, sexo, religião e riqueza. Um dos argumentos usado era que o vírus chegou ao Brasil pelos que tinham dinheiro para viajar, sair de férias e fazer badaladas festas (casamentos, almoços, jantares, etc.).

No inicio se chamava a atenção à vulnerabilidade da população idosa e as portadoras de doenças crônicas, independente da condição social. Hoje sabemos que não é assim. O vírus até pode ser biologicamente democrático. Democráticas não são a distribuição da renda e as condições de vida.

A população pobre, cuja maioria é negra, é mais vulnerável à Covid-19. As condições de vida e a dificuldade de acesso aos serviços de saúde e educação os colocam como mais vulneráveis, inclusive em relação a outras doenças como diabetes, doenças cardiovasculares, traqueobronquites e, no caso especifico dos afrodescendentes, a anemia falciforme e o racismo estrutural que agride a saúde mental e consequentemente a saúde física.

Além da vulnerabilidade pelas condições de moradia, há a exposição pelo trabalho: são motoristas de ônibus, usuários do transporte público para ir ao trabalho, domésticas, trabalhadores e trabalhadoras no comércio em geral, nos serviços de atenção social e a saúde.

Dia 20 de maio passado a Universidade de Cambridge em parceira com a Universidade Federal do Espírito Santo divulgou uma pesquisa mostrando que fatores étnicos e sociais influem na taxa de mortalidade pelo Covid-19 (https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/rfi/2020/05/27/estudo-internacional-diz-que-covid-19-no-brasil-mata-mais-pardos-e-negros.htm). A pesquisa mostra que pessoas pardas e negras, principalmente no norte e nordeste do Brasil, têm mais chances de morrer vítima do coronavírus que os brancos.

Segundo o estudo os negros e, sobretudo pardos, estão mais sujeitos ao risco de morte. Uma das razões é que esta população apresenta mais comorbidades do que no resto do país, o que explica, em termos, o número de óbito nestes estados.

As comorbidades (a ocorrência de duas ou mais doenças relacionadas no mesmo paciente e ao mesmo tempo) resultam, na maioria das vezes, de fatores sociais.

Uma nota técnica divulgada, dia 2 de junho, pelo Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (NOIS) da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro informa que mais da metade dos negros que se internaram em hospitais no Brasil para tratar casos de SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave), com confirmação de covid-19, morreu. (https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/06/02/covid-mata-54-dos-negros-e-37-dos-brancos-internados-no-pais-diz-estudo.htm).

A pesquisa do NOIS foi feita usando dados do Ministério da Saúde. Estes dados mostram que os “pretos e pardos apresentaram maior percentagem de óbitos em relação aos brancos em todos os níveis de escolaridade: pretos e pardos sem escolaridade mostraram uma proporção quatro vezes maior de morte do que brancos com nível superior (80,35% contra 19,65%)”.

Para a doutora Emanuelle Góes, professora e pesquisadora da UFBA (Universidade Federal da Bahia), ouvida – na mesma matéria – sobre esta questão, são vários os fatores que contribuem para que o novo coronavírus seja mais letal entre negras e negros: “Negras e negros sofrem o impacto do racismo estrutural, e com isso apresentam os piores indicadores sociais e de saúde. Neste sentido o cenário já é desfavorável”.

Argumenta a doutora Emanuelle Góes que pretos e pardos estão mais expostos, por isso a maior letalidade. “Eles são maioria no mercado informal e no trabalho de serviços gerais e domésticos. A população negra também apresenta as maiores proporções de doenças do grupo de risco, a exemplo da diabetes e da hipertensão”.

Estudos de soroprevalência da infecção pelo vírus SARS-CoV-2 em adultos, no município de São Paulo, divulgado pelo Projeto SoroEpi MSP (https://www.monitoramentocovid19.org/), comparam distritos com maior renda e distritos com menor renda. Obtiveram o seguinte resultado:

1. A soroprevalência diminui com o aumento do nível educacional sendo 4,5 vezes maior nos indivíduos que não completaram o ensino fundamental quando comparada com os que terminaram o ensino superior (22,9% versus 5,1%);

2. A soroprevalência é 2,5 vezes maior nos participantes que se identificam como pretos do que nos brancos (19,7% versus 7,9%); e,

3. Participantes que vivem em habitações com 5 ou mais indivíduos apresentam uma soroprevalência quase 2 vezes maior do que aqueles que habitam com 1 ou dois indivíduos (15,8% versus 8,1%).

Os pesquisadores concluíram que a epidemia de SARS-CoV-2 no município de São Paulo pode ser entendida como sendo duas epidemias com dinâmicas de propagação distintas, refletindo a desigualdade social presente no município.

Todos os três estudos – Universidade de Cambridge, NOIS e Projeto SoroEpi MSP – indicam que os pretos/as e pardos/as são, pelas condições de vida, sociais e fruto do racismo estrutural, os mais vulneráveis.

Dr Rosinha é médico.

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