Por Vicenç Navarro *
A Europa, com todas as suas limitações, era o ponto de referência internacional para aquelas forças progressistas que aspiravam alcançar um elevado nível de bem-estar social através da via democrática. Essa identificação da Europa com o Estado do Bem-estar e democracia era sua marca. Na Espanha e em outros países do sul da Europa, todos eles submersos em ditaduras fascistas ou fascistoides, a Europa era o lugar de destino para as forças antifascistas que lutavam para conseguir liberdade, justiça social e bem-estar. A Europa era o sonho que aspirávamos.
Pois bem, este sonho se converteu em um enorme pesadelo. E a grande maioria da população espanhola já expressa, através de pesquisas, que esta não é a Europa que desejavam e haviam sonhado. Hoje, pertencer à Europa representa alguns enormes sacrifícios (o desmantelamento do já escassamente financiado Estado de Bem-estar, a redução dos salários e da proteção social, e a enorme destruição de empregos, passando a ser a Espanha, junto com a Grécia, os países com maior desemprego, alcançando índices nunca vistos antes, mais de 50% entre os jovens).
E todos esses sacrifícios estão sendo promovidos precisamente por aqueles que são responsáveis pela enorme crise financeira e econômica que a Europa e a Espanha experimentaram em sua história recente. E estou me referindo ao que costumava clamar-se a classe capitalista (hegemonizada pelo capital financeiro, baseado na especulação) e que agora, utilizando uma narrativa mais americana (na verdade, estadunidense) chama ao establishment financeiro e grande patronal. É uma guerra de classes (class war) que estão vencendo em bases diárias, à custa de um enorme sacrifício humano por parte das classes populares e que aparece em toda variedade de indicadores (níveis de pobreza e exclusão social, número e taxa de suicídios, taxas de desnutrição infantil, estresse social – tanto individual como coletivo -, doenças mentais, deterioro das taxas de novos casos de doenças cardiovasculares, infartos e ataques de coração, e muitos outros) que estão sendo documentados em uma longa lista de trabalhos científicos de grande credibilidade e que estão sendo publicados em várias revistas de prestígio internacional. E essas deteriorações estão sendo mais acentuadas nos países do sul, onde as políticas neoliberais tem sido impostas com maior intensidade. Estas são as consequências do ataque mais frontal que o “modelo social europeu” está experimentando.
As condições para que o ataque seja exitoso
Ataque esse que exigiu uma série de mudanças que debilitaram os instrumentos que tradicionalmente defendiam os interesses das classes populares, que incluem os sindicatos, os movimentos sociais e os partidos de esquerda.
Assim, o establishment neoliberal que controla a União Europeia e seu governo (o Conselho Europeu, a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e a Corte Suprema Europeia, entre outros) foram impondo toda uma série de medidas com as que exitosamente levaram a alcançar estes objetivos. Vejamos algumas destas medidas:
1. A decisão da Suprema Corte Europeia (EU Court of Justice) nos casos Laval, Rütter e Luxemburgo, que anulou e/ou reduziu consideravelmente o direito de greve.
2. As recomendações da Troika que debilitam significativamente os convênios coletivos, tanto no setor privado como no público.
3. As imposições, também da Troika, como condição dos famosos resgates (que facilitam o pagamento das dívidas públicas aos bancos responsáveis pelas crises financeiras) que implicam no desmantelamento dos serviços públicos, com grande destruição de emprego nestes setores.
4. As imposições, também da Troika, de reformas dos mercados de trabalho, que têm como objetivo a criação de desemprego e a redução dos salários e da proteção social, com o fim de debilitar o mundo do trabalho.
5. A aprovação por parte do establishment neoliberal europeu (que governa a Eurozona) de toda uma bateria de tratados e acordos (o Pacto pelo Euro Plus, também chamado “Competitiveness Pact” e o Pacto Fiscal) que têm – todos eles – como objetivo diminuir, a ponto de anular, o poder da população (e muito em particular da população trabalhadora) de opor-se ao desmantelamento do modelo social. Todos esses pactos foram aprovados sem que se oferecesse à população a possibilidade de participar ou debater as medidas draconianas que tais pactos ou tratados preveem contra o Estado do Bem-estar em seus países. Na verdade, o ataque ao modelo social requer também a redução, quando não a eliminação da democracia nestes países. A eliminação do modelo social requer a diluição, quase o aniquilamento, da democracia na União Europeia. A única instância democrática no espaço europeu é o Parlamento Europeu, que tem jogado um papel marginal no desenho e aprovação desses tratados. E, a nível de cada Estado, ditas medidas – como foi o caso na Espanha – foram aprovadas por elites muito pouco representativas da maioria do eleitorado, ao qual se mantém marginalizado.
A eliminação do modelo social requer a destruição da democracia. E isso ocorreu com a cumplicidade dos maiores meios de difusão e de outras instituições geradoras de opinião e persuasão, que estão à serviço dos poderes financeiros e empresariais que os possuem ou influenciam. Hoje estamos assim, vendo a desaparição da democracia e do Estado social.
*Vicenç Navarro é catedrático de Políticas Públicas, Universidade Pompeu Fabra e Professor de Public Policy em The Johns Hopkins University. Artigo publicado originalmente na coluna “Domínio Público” no jornal publico.es, em 18 de julho de 2013.
Comente com o Facebook