O vocábulo niilismo aparece no romance do escritor russo Ivan Turguêniev, Pais e filhos, em 1862, época que a servidão foi abolida na Rússia e em que se formou o movimento Terra e Liberdade contra o czarismo. A geração que participou da Revolução de 1905 leu o livro. O niilismo designa a negação das tradições e também a rejeição das ideias que pretendem substituir os antigos valores. Com o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, a renúncia radicalizou-se pela refutação do projeto de civilização moderna, in totum. Há similitude importante com o comportamento de apatia política.
Objetivamente a conduta niilista e a apatia duvidam da capacidade da política intervir na sociedade, com sucesso. Subjetivamente resultam do que o pensador greco-francês Cornelius Castoriadis considera a essência da alienação: “a privatização da existência dos indivíduos”. Isto é, o modo de ser/estar da classe média que nutre uma visão de shopping center sobre a cidadania, indiferente ao sofrimento do povo. O consumo de grifes confere a “distinção”, na acepção bourdieusiana, antes atribuída pelos títulos nobiliárquicos. Se não supre o vazio existencial, ao menos serve de distração.
Não espanta que o intermezzo social acampasse o alheamento junto aos quartéis, implorando pelo golpe de Estado enquanto rezava para pneus e enviava mensagens a ovnis. Como as personagens do Mito da Caverna, o gado confunde as sombras no fundo da gruta com a realidade e tacha, de loucos, os denunciantes das teorias conspiratórias do rebanho antissistêmico. Uma perfeita insanidade.
Por “sistema”, entenda-se a ciência e as universidades que desautorizam a liberdade de expressão dos comuns em favor do prescrito pelas “elites” – os especialistas, os intelectuais, os professores. Bolsominions repelem produtores e divulgadores de conhecimento, acusados de “doutrinadores marxistas” na cartilha olavista, assim como são chamados de “imbecis” os que levaram a sério a pandemia do Covid-19, que o guru de Virginia reputou uma “farsa” – afrontando 700 mil óbitos.
Os pseudopatriotas desfilam o antimodernismo, apoiados em um anticientificismo e em um anti-intelectualismo, com vistas à desqualificação do Estado e das religiões civis, tipo o Instituto Butantan e a Fundação Fiocruz cujos templos são os laboratórios de pesquisa. O desconforto com a modernidade deve-se ao reconhecimento da igualdade de gênero, de raça e da homoafetividade. Daí a corrida aos braços de um regime medieval. A metafísica de hospício, porém, não convence. Os segmentos penalizados nas impolíticas neoliberais exigem respostas concretas, aqui e agora.
Conforme levantamento do grupo “Food for Justice”, da Universidade Livre de Berlim, o Brasil tinha 60% da população em situação de segurança alimentar, em 2004. Chegou a 77%, em 2009. Em 2022, ao revés, 60% padecia de insegurança alimentar em grau leve, moderado ou grave, o que perfaz 125 milhões de habitantes. Sem vínculos com sindicatos e associações, a sua preocupação é não fenecer de desnutrição. Contudo, esboçam resiliência. Os trabalhadores presos ao “reino da necessidade”, da informalização do trabalho, da precarização e da fome já esboçam em embrião uma organização incipiente. O “reino da liberdade”, representado pela renda com um trabalho formal, não pode ser privilégio de uns poucos. Com a luta coletiva, “outro mundo é possível”.
O ciclo se fecha
Segundo Marx e Engels, em A ideologia alemã, a práxis humana decorre: (a) da produção dos meios que satisfazem as necessidades vitais; (b) satisfeitas as demandas iniciais, surgem novas tão fundamentais como as primeiras, o que caracteriza o fato histórico; (c) a reprodução das relações sociais se dá via a família; (d) transcorre em determinado estágio de desenvolvimento industrial e; (f) o momento de construção da consciência tem caráter empírico, não abstrato, e irrompe na exigência de contatos humanos, pois “a consciência é um produto social e continuará a sê-lo”.
“A coexistência melhora a existência nas cidades”, reforçam os urbanistas encarregados pela transformação de Lisboa. Os laços de sociabilidade restaurados fizeram da capital portuguesa uma referência para o turismo e a qualidade de vida na Europa. A degeneração dos laços sociais favorece as manifestações psíquicas antissociais, nas ocorrências em que indômitos saem da toca para se vingar em inocentes: as mulheres, os negros, os grupos lgbtqia+ e estudantes. Incapazes de lutar por uma nova sociedade, as feras miram os bodes expiatórios de suas feridas. A redução dos espaços de diversidade elide a noção de público nas urbes, com a entrega de parques à iniciativa empresarial.
A implosão da convivialidade pluralista, somada à complacência das instituições com o discurso de ódio, converte a alteridade em uma ameaça. A desigualdade entre as classes sociais, filtrada pela insensatez, está na origem do sentimento de não pertencimento individual captado no radar dos grupelhos neonazistas. Permitiu-se que hordas de extrema direita, sem nenhum apreço pelo Estado democrático de direito, migrassem de fóruns obscuros (deep web) para redes sociais. A desatenção abriu caminho ao frenesi escolar. As autoridades não viram se formar a perfect storm da barbárie.
A pregação odiosa é ancorada na difusão de aplicativos com troca de mensagens criptografadas, como WhatsApp ou Telegram, e em sites a exemplo do True Crime Comunity (TCC), uma comunidade de crimes reais onde o apelo consiste no fascínio pela morte e pelos criminosos. Dos nove envolvidos em investidas violentas nas escolas, ano passado, seis frequentavam a TCC ou similares do submundo on-line. Para o pesquisador da Faculdade de Educação (USP), Daniel Cara, a escalada revela que o poder público e as big techs não monitoraram as manifestações misóginas, racistas e sexistas. Quem paga a conta pela incúria são as crianças e adolescentes – os novos judeus.
“Memes, piadas e jogos virtuais estão entre as ferramentas mais utilizadas por núcleos extremistas ao aliciar a juventude e estimulá-la a agir como ‘lobos solitários’ para cometer atentados. O perfil transparece nos apontamentos policiais depois dos massacres: rapazes brancos, do sexo masculino e com mágoas de frustração, rejeição, reação ao bullying”, alerta o Conselho de Direitos Humanos da Assembleia Geral da ONU. O pronto atendimento psicológico e a assistência social nas escolas públicas ajudariam na prevenção. Mas os benefícios foram vetados pelos podres poderes de plantão, em 2019. A meta era provocar o caos total. Não basta o neoliberalismo ao apetite da necropolítica.
A influência de tribos tóxicas e do neonazismo é notória. Símbolos do reich foram utilizados pelo pubescente que lançou bombas na escola de Monte Mor (SP). Outro fez quatro vítimas a tiros em Aracruz (ES). O moço de 14 anos detido em Maquiné (RS), suspeito de planejar o ataque a um colégio, guardava materiais nazi e a bandeira com suástica em casa. Para o Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil, houve 171 casos de violação comprovados neste século, mais da metade a partir de 2022. Os atos terroristas e antissemitas simplesmente dispararam no quadriênio do genocida. Se nem todos vinculam-se às bolhas ultradireitistas, unem-se no ódio e intolerância.
A boa notícia é que denúncias de ataques a escolas despencaram após prisões e punições às redes, graças à operação preventiva Escola Segura (dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública / Safernet), que inclui a suspensão de serviços pelas plataformas e a cobrança de multas. Avalia-se que o expediente evidencia o quão relevante é a aprovação do Projeto de Lei (PL) das Fake News para regular a interação virtual e impedir que se espalhe conteúdos com apologia à violência contra vulneráveis. Recentemente, nota-se um agito em torno dos tópicos da “machosfera”, ecossistema patriarcal que inclui portais de discussão, influenciadores digitais, pod-casts e canais de falas preconceituosas e machistas. Para identificar o antro feminicida, vale o verso de Cecília Meireles, no poema Descrição: “Há um gesto acorrentado e uma voz sem coragem”. Até ser tarde demais.
Existe um paralelo entre o aumento de registros ativos de Caçadores, Atiradores Desportivos e Colecionadores (CACs), que saltaram de 117 mil em 2018 para 673 mil em 2022, e o crescimento de quase seis vezes no período em que as escolas viraram alvos. A coisa recrudesceu com a política armamentista do desgoverno, que foi do agrado das organizações criminosas, do narcotráfico e das milícias que puderam legalizar a aquisição de armas. A contribuição para a propagação do niilismo só foi menor do que a avalanche da antipolítica. Assim, fecha o ciclo da insanidade à barbárie.
Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul
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