Aurelio Alonso *
Eu diria que nos unem, nesta comemoração de 1810, um conjunto de coincidências. A primeira, talvez, quase evidente: as independências foram vulneráveis a uma síndrome de reversibilidade, desembocaram em outra dependência e, deste lado do Atlântico, o que resultou mais universal foi essa reversão. A única independência imune ao retrocesso foi a anglo-saxã, nascida com uma voracidade que trazia em si a marca de uma nova colonialidade.
A segunda coincidência seria, em minha opinião, a necessidade de estabelecer a distinção entre independência e emancipação. Emancipar-se é superar o “despotismo, a ignorância, a miséria” (A. Roig). Buscando dar nitidez a essa distinção: emancipar-se é algo diferente e de outra complexidade, mais profundo e definitivo que desprender-se de uma relação de dominação externa, ainda que estreitamente vinculado a isso.
A terceira convicção que trazemos à discussão é a constatação da lucidez dos Libertadores ao conferirem importância ao tema da união; explícito desde Bolívar, que buscava que esta surgisse do processo de independência do jugo colonial espanhol; e em Martí, que pôde perceber mais diretamente a vulnerabilidade de nossas nações frente ao império que já se havia formado no Norte, e proclamar que salvar as independências que ainda estavam pendentes – Cuba e Porto Rico – era imprescindível para salvar a independência da América Latina.
Os lideres da Revolução Cubana de 1959 puderam comprovar muito rapidamente, na prática, o peso que uma convergência entre o cenário latino-americano e o projeto cubano representava, como condição da proposta emancipatória. Por isso, relacionaram a consolidação da vitória cubana com o que pudesse ocorrer na América Latina (Segunda Declaração de Havana). Não queriam “exportar a revolução”: compreenderam o que Bolívar, Martí e outros também haviam compreendido.
Por isso, quando falamos de integração emancipatória como meta de nosso tempo histórico, como tarefa pendente desde 1810, não há que olvidar que ocorreram dois séculos de dominação e que o rumo histórico do Continente, supostamente descolonizado, sofreu, até pouco tempo atrás, com uma colonialidade quase impune. Somente nesta última virada de século, sob pressão dos efeitos da globalização capitalista, uma perspectiva de integração conseguiu retornar à agenda latino-americana com uma significação emancipatória.
Em termos de estratégia política, integração é o termo que define, nas condições de nosso tempo, o caminho de fortalecimento do projeto nacional – revolucionário ou reformista – que aspire contar com um suporte multinacional para resgatar a soberania, a governabilidade e os meios para dar respostas às urgências dos povos. Sem obter esse apoio, as possibilidades de se resistir às pressões hegemônicas são sumamente reduzidas, mas não inexistentes. Cuba tem demonstrado que, até nas condições as mais adversas, que não é impossível fazê-lo, e que a única opção é resistir, pois aderir à hegemonia não leva a saída alguma.
Quando caracterizamos esta integração como “emancipatória”, o fazemos para diferenciá-la de outras e isto não é um simples preciosismo de linguagem.
Pensamos em uma integração que supere o horizonte das experiências regionais surgidas na segunda metade do Século XX, algumas próprias da modernidade da dependência e outras construídas a partir dos filtros de um tecido social formado por relações de dominação. Essas experiências, frequentemente, tiveram uma aspiração pouco viável de se consolidarem como mecanismos jurídicos multinacionais de defesa – Mercosul, Pacto Andino, Caricom, etc. – e, na prática, foram debilitadas até o fenecimento no marco da globalização neoliberal. No entanto, sem dúvida, foram reanimadas com um novo alento graças às mudanças ocorridas no Continente no começo deste Século.
A outra expressão do conceito é um verdadeiro contrassenso. Refiro-me à noção de uma integração pan-americana – hoje se insinua entre os defensores do status quo a defesa de uma integração “pan-ibero-americana”.
Um dispositivo de acordos governamentais prefigura a integração pan-americana: a OEA. Não é que tenhamos de desconhecer que a mudança da correlação de forças em seu interior possa levar a consensos desejáveis, conjunturalmente, mas o conflito geopolítico e geoeconômico das duas Américas, se o temos como algo estrutural, não admite uma verdadeira integração.
Toda a história recente de nossa América demonstra que a integração – esse fato assinalado pela modernidade que a União Europeia propõe como paradigma – tem que ser emancipatória. Em outras palavras: tem de gerar o efeito da unidade que Bolívar reivindicava, pois, do contrário, carecerá de significado.
A integração emancipatória deve ser algo distinto de tudo isso ou não será.
Não há que se buscarem modelos “emprestados”, pois não podemos esquecer que nos colocamos um processo de integração de países que estão na periferia do sistema-mundo. A condição de emancipação supõe uma integração que não se limite a transformar o Sul, mas que também imponha sua legitimidade ao Norte, o que deverá fazer a partir da resistência. Além disso, em termos históricos, na perspectiva imediata, um processo de integração emancipatória entre países periféricos se apresenta unicamente na agenda da América Latina. A OPEP, talvez houvesse podido aportar um grão, nos setenta, a um projeto similar no Oriente Médio, mas a cobiça dos insaciáveis emires árabes e oligarcas venezuelanos conduziram seus passos a banca européia e norte-americana.
Quando coloco o espaço de Cuba nessa integração, tomo em conta o tempo histórico. A Revolução Cubana completou 50 anos. O novo cenário de transformações na América Latina, no qual a Revolução Cubana está legitimamente inserida, tem apenas dez anos e isto não é um detalhe.
O que destaco é que o cenário de hoje conta, por um lado, com um apreciável frescor, e adoece, pela outra parte, de uma falta de acúmulo experimental. Nós, cubanos, contamos com um acúmulo e uma experiência muito ricos, mas, às vezes, pode faltar o frescor para incorporarmos de forma flexível as transformações que os tempos demandam.
Como primeira experiência de mudança radical na América Latina, o processo cubano tem se caracterizado, sobretudo, por demonstrar sua capacidade de resistir a todo o tipo de pressões do Império. A todo o tipo de pressões! As diretas e as exercidas através de outros contextos geográficos. As econômicas e as armadas, as diplomáticas e as culturais. Diria que se obrigava Cuba a resistir solitária, praticamente isolada. Frente ao “caso cubano” se impôs, como nunca antes, o pan-americanismo imperial.
Nós, cubanos, não contamos com a referência de um modelo socialista viável de desenvolvimento, porque o modelo soviético, que identificava a socialização com a propriedade estatal (e outras coisas) contrapunha planejamento e mercado, consagrava o exercício do voluntarismo na planificação econômica, configurava uma nova burocracia e desestimulava o trabalho. Em suma, apresentava fortes contradições. Neste momento, em Cuba, estão colocadas mudanças que podem levar o sistema à constituição de um socialismo viável.
A experiência socialista desenvolvida em Cuba até nossos dias comporta, para Nossa América – para o futuro que vemos despontar no alvorecer do século presente –, o caráter de experiência precursora. Uma experiência cuja capacidade de resistência frente às pressões imperialistas, cujas realizações e frustrações têm que ser avaliadas com atenção na difícil tarefa de construir os caminhos. Todavia, é uma experiência sem a qual dificilmente o Século XXI latino-americano haveria iniciado como começou.
O desafio da economia segue sendo, para Cuba, o desafio essencial, aliás, como o foi nos primeiros dias. Hoje, temos certo nível de irregularidade no espectro das relações econômicas internas, geradas tanto pelos efeitos da queda dos anos noventa quanto por um conjunto insuficiente de reformas. Deformações na economia interna que não existiam antes da década de noventa.
No entanto, Cuba tem hoje um capital humano que não tinha antes. A experiência socialista cubana se acopla a este momento de mudança continental com esses recursos humanos, ao contar com mais de 12% ou 13% da população universitária. Há também a contradição expressa pela baixa capacidade de aproveitamento pelo sistema cubano desse capital humano.
Em uma perspectiva de integração emancipatória, julgo importante que Cuba tenha descoberto, pela primeira vez na América Latina, que soberania não é um tema jurídico e, também, que se acercasse de outra compreensão de sua verdadeira natureza.
Nós, de algum modo, acreditamos que, com a vitória de 1959 (e voltamos a crer quando derrotamos a invasão armada e apoiada pelos EUA em 1961), que a soberania estava plenamente assegurada, mas não é assim!
Evidentemente, a soberania há de ser defendida todos os dias, enquanto prevaleça uma ordem e uma hegemonia imperial. Nisso reside a chave da capacidade de resistir e de sobreviver dentro dessa resistência, com um projeto que aspire a construir a justiça social e a equidade acima da lógica do lucro.
Não falo de apagar a lógica do mercado, é evidente que não pode ocorrer desta forma: a questão é ampliar progressivamente os espaços da lógica de justiça social e de equidade frente à lógica do mercado. Se sacrificarmos o mercado, como vamos financiar os investimentos sociais? Seguramente, vai dar-se com exigências distintas em cada uma de nossas experiências. A questão é não perder o rumo.
Para encerrar, insisto que Cuba é uma demonstração de que não servem os modelos, mas sim, as experiências sistematizáveis. Temos uma experiência, há que ver em que medida essa experiência é capaz de autocorrigir-se, de melhorar-se, de se fazer sistematizável, de servir a outros como experiência, mas não como modelo. Recordo Fidel Castro em 1979, quando acautelava o sandinismo de que não nos imitasse: “não caiam em nossos erros”, disse ele em várias ocasiões.
Igualmente, acredito que também há conceitos que são muito importantes, essenciais, e que devemos relativizar, revisar, atualizar, submeter à crítica da história, pois reclamam uma conotação socialista crível como, por exemplo, são irreversibilidade, transição, democracia, desenvolvimento e outros tantos.
Temos de introduzir a flexibilidade, a diversidade, assim como a consistência nessa tarefa que há pela frente. Temos muito o que debater e refletir.
Muito obrigado.
* Aurelio Alonso é sociólogo, professor da Universidade de Havana. Pertenceu ao conselho de redação da revista cubana “Pensamento Critico”, e é membro do conselho de redação da revista “Alternatives Sud”, publicada na Bélgica sob a direção de François Houtard, sub-diretor da Casa de Las Americas.
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