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O desafio das “emendas impositivas” ao Orçamento | Raul Pont

A engenhosa forma de tratar o Orçamento Público inventada no Congresso Nacional já caiu nas malhas do Judiciário e das reportagens policiais do Fantástico, da Rede Globo. Principalmente, nos descaminhos das “emendas secretas”, onde não aparecem doadores nem beneficiários, mas acabam chegando em ONGs sem controle ou nas casas de apostas das Bets, nova febre fraudulenta da jogatina e do caça-níquel nacionais.

Foto: Jonas Tiago Silveira

A busca por influir e orientar o gasto público pelo Parlamento não é de hoje, e sempre existiu, mas de forma que não agredisse a Constituição e ocorresse nos limites de um regime presidencialista onde o Poder Executivo (presidente, governador e prefeito) é, explicitamente, o responsável pela elaboração e execução orçamentárias. Além de votar o Orçamento, é legítima a pressão parlamentar e sua influência nas reivindicações e prioridades no uso dos recursos públicos e a pressão sobre os Executivos nas demandas e prioridades sociais e territoriais das comunidades. Fora disso, é subverter o regime político ou torná-lo impraticável.

Nos anos 90, com o fim da ditadura e a nova Constituição, cresceu a pressão do Parlamento para incidir mais e diretamente sobre o Orçamento. O governo FHC, tratando a pão e água os demais entes federados, acirrou essa tendência de pressão sobre o orçamento via congressistas. Para o bem ou para o mal. Desde obras e serviços necessários até o início dos contrabandos e da malversação com episódios como “os anões do Orçamento”. Mesmo assim, as regras constitucionais eram, majoritariamente, mantidas.

Foi na oposição aos governos petistas que a tendência de usurpar o papel do Executivo foi exacerbada de forma crescente e insaciável. Na guerra aberta contra o segundo governo Dilma, sob a batuta de Eduardo Cunha (MDB) na presidência da Câmara, o Congresso aprovou em 2015 (na ante sala do Golpe) a Emenda Constitucional nº 86 dando caráter impositivo à crescente fatia das emendas parlamentares ao Orçamento Federal.

O governo golpista de Temer (MDB) e a condição subordinada e refém do governo Bolsonaro (PSL) à maioria conservadora, fisiológica e clientelista apenas ampliaram o controle do Congresso sobre o Orçamento em flagrante contradição com o regime político presidencialista. É claro que isso não decorre apenas do caráter individual do parlamentar mas também das outras distorções do sistema eleitoral e partidário vigente. Uma inflação absurda de Partidos que não se justificam por programas e ideologias e a excrescência do voto nominal, individualizado, que torna irresistível o clientelismo, a pulverização dos recursos e, como estamos vendo, a crescente corrupção escancarada nas manchetes e nos inquéritos policiais. Verdadeira farra corrupta com os recursos públicos.

No ano passado, em seminário organizado pelo Instituto Novos Paradigmas, em Porto Alegre, o ex-ministro do STF e ex-deputado constituinte (PMDB) de 88, advogado Nelson Jobim, questionado sobre o tema dessa prática, agora estendida aos estados e municípios, respondeu simplesmente: “O país é ingovernável”.

Em dezembro de 2024, ainda no exercício do mandato, a ex-prefeita de Pelotas, Paula Mascarenhas (PSDB), escreveu em artigo no jornal ZH (9.12.24) que, na busca de recursos e projetos nos ministérios para ações comuns em seu município, recebeu a recomendação de procurar deputados e senadores para apadrinhar as demandas necessárias. Escreveu a prefeita, “jamais saí de lá com a alma e o coração tão pesados”. E, mais adiante, “somos parlamentaristas no orçamento e nos investimentos e presidencialistas na responsabilidade”.

A extensão dessa prática aos estados e municípios, que no país pulveriza dezenas de bilhões de reais em práticas clientelistas, liquida com os pressupostos da administração pública, baseados na racionalidade e no planejamento dos gastos e investimentos. Diante dessa realidade, no artigo citado, a ex-prefeita Paula Mascarenhas cogita, quem sabe então, caminharmos para o regime parlamentar de vez. Assim, quem decide o gasto terá a responsabilidade de justificá-lo, de prestar contas de seus resultados.

Como fazer isso em um sistema partidário e eleitoral com mais de 30 partidos e através do voto nominal, essência do clientelismo e da tendência à corrupção?

Qualquer discussão séria no Brasil sobre a troca do presidencialismo tem que ser precedida de uma profunda reforma política que fortaleça os Partidos e o voto partidário programático, sem o qual não há possibilidade de governos efetivamente democráticos e com credibilidade.

Diante desse quadro, então, não há saída?

Claro que se pode construir outro caminho. As citações de destacados dirigentes partidários demonstram uma crescente consciência do desastre a ser evitado. A corajosa ação do ministro Flávio Dino, no STF, barrando os casos mais escabrosos de emendas secretas e sem controle, demonstra reações corretas e no bom caminho.

Cabe ao presidente Lula, apesar do cerco e das ameaças diárias que sofre do “centrão” e da direita parlamentar, assumir essa luta. Com certeza terá o apoio da maioria da população e até de setores da mídia neoliberal, ferrenhos defensores dos “arcabouços” e “teto de gastos”, mas que estão preocupados com os escândalos e a ilegitimidade dessa invenção corrupta de emendas secretas e impositivas.

O STF tem que ser suscitado sobre a incompatibilidade da EC nº 86 e o regime presidencialista que está na Constituição.

Mas, mais do que isso, esse debate tem que tomar as Assembleias, as Câmaras Municipais, a Universidade e as entidades associativas. Essa decisão compete à soberania popular e não à esperteza e ao interesse privado dos beneficiados.

Essa iniciativa de mudança de pauta do debate nacional precisa ser assumida pelo governo Lula. O presidente tem a autoridade de ter proposto na campanha substituir as “emendas secretas” pelo “orçamento participativo”. Tem audiência e respaldo para isso. A iniciativa, porém, não é só governamental. Os partidos que apoiam o governo, em especial as Federações do campo popular e socialista, precisam fazer disso uma pauta de mobilização e participação social. Principalmente pelo exemplo concreto das bancadas federais e estaduais desses partidos não se renderem à lógica individual e transformarem esses recursos em debate público aberto, direto com a população, para definir prioridades de obras e serviços para o país, estados e municípios. Essa é a prioridade que o governo deve ouvir e atender. Romper a lógica eleitoreira da clientela e fazer o debate público, aberto pelo interesse comum. Essa outra lógica, outra direção, abrirá também o questionamento e o cerco sofrido pelo ajuste fiscal. Retomar a mobilização, mesmo pequena, no início, é o caminho para sair do impasse, do cerco, da paralisia que torna toda população subordinada ao pensamento único neoliberal ou às fake news e à pauta de costumes que a direita quer manter viva.

Não faltará vontade nem participação, como ocorreu com as plenárias nas capitais sobre o Plano Plurianual de 2024, e certamente teremos apoio também dos setores que buscam fortalecimento da democracia e da soberania popular.

Raul Pont é ex-prefeito de Porto Alegre.

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