Fórum tem o papel de debater a superação do neoliberalismo
A gênese do Fórum Social Mundial está diretamente ligada à trajetória da esquerda nas últimas décadas. Mundialmente, foram duros reveses entre finais dos anos 1980 e inícios da década seguinte, e um conjunto de fatos puseram em evidência uma derrota política profunda das esquerdas no mundo.
Vista desde nossa região, as últimas décadas do século XX foram a fase em que ao lado do impacto da queda do muro de Berlim (1989) e a dissolução da URSS (1991), os sandinistas foram derrotados eleitoralmente (1990) e os processos de insurgência popular em El Salvador e Guatemala foram detidos.
Para completar o quadro, o neoliberalismo virou programa de governo de dezenas de países em nosso continente, imposto desde os países capitalistas centrais e os organismos financeiros internacionais com a anuência das oligarquias locais. A esquerda, herdeira de definições adotadas nas primeiras décadas do século XX, perdia as referências de experiências concretas e iria entrar num período de desorganização.
Foi nesse período também que os sucessivos governos dos EUA colocaram os alicerces de uma nova ordem mundial sob sua dominação unilateral. Na primeira guerra ao Iraque, com o cínico e mentiroso discurso da “precisão cirúrgica” e “sem mortos civis”, o governo dos Estados Unidos estreou o “mundo unipolar” sob sua hegemonia militar exclusiva.
O quadro ao final do século
O neoliberalismo alterou as bases materiais de nossas sociedades produzindo altas taxas de desemprego e precarização, junto com uma onda ideológica consumista e individualista. O socialismo saiu do horizonte do debate, as organizações populares viram suas bases sociais tradicionais serem deterioradas e a idéia de solidariedade foi colocada em questão. Em suma, os valores e referências que tínhamos construído na fase anterior estavam sob intenso ataque.
Houve, ao longo do período de ascenso do neoliberalismo, inúmeras lutas sociais de resistência, mas num contexto de isolamento. O primeiro clarão de um novo momento foi a simpatia internacional e nacional conquistada pelo levante indígena zapatista em Chiapas, México, em janeiro de 1994. Mas teríamos de esperar até finais da década para que processos mais amplos de contestação surgissem, já num marco de visíveis dificuldades mundiais do neoliberalismo desde a eclosão da crise do sudeste asiático em 1997.
Essa história começa internacionalmente com a repercussão que tiveram as manifestações de novembro de 1999 em Seattle (EUA), ainda que em cada país a data nacional certamente seja diferente. O Fórum Social Mundial surgiu nesse momento, e foi uma das várias tentativas de retomar em larga escala a construção de alternativas à ordem conservadora reinante. Mas era isso: uma ferramenta das primeiras tentativas. Não deveria dar espaço a otimismos fáceis. Em sua curta vida já fez muito, mas ainda é muito pouco em relação à deconstrução operada pela crise 15 anos atrás.
Esta retomada, por outro lado, não é mera continuação da história anterior. Os sujeitos sociais foram transformados pela crise ideológica e pelas mudanças nas estruturas sociais operadas pelo neoliberalismo. O FSM vai aproveitar as potencialidades criadas pela nova situação, mas não terá respostas prontas para problemas estratégicos deixados pela crise.
As perspectivas de hoje
Na última década do século, a onda neoliberal chega a seu auge num momento de perda de referenciais das esquerdas. Pior: foi um momento de “conversão” de importantes setores das esquerdas ao neoliberalismo e assemelhados. Para enfrentar o novo desafio neoliberal, o que as esquerdas tinham acumulado programaticamente desde começos do século passado mostrou-se insuficiente. A “desorganização programática” nos atingiu em cheio.
O deslocamento de antigos setores de esquerda em direção ao neoliberalismo só diminuiu ou parou já na segunda parte da década passada. Naquele momento, a seqüência de crises econômico-financeiras iniciada em 1997 nos “tigres asiáticos” impactou negativamente a credibilidade do programa neoliberal e alimentou assim a resistência popular contra seus efeitos sobre as condições de vida da população. Mas a crise neoliberal não resolveu a nossa própria crise, ainda que não sejam de menor importância os avanços políticos conseguidos nas urnas ou em rebeliões populares em diversos países da nossa América nos últimos cinco anos na esteira da crise política dos setores conservadores.
O período em que estamos é o da reorganização programática das esquerdas, sem sínteses. Isso se expressava no início no método do FSM, que tinha como valor central a visibilização da diversidade, sem hierarquias. Mais recentemente o mesmo método incorporou também o estímulo às convergências, mas sem que elas sejam compulsórias. A questão do(s) programa(s) tem seu próprio tempo de maturação. E estamos longe de ter chegado a ele.
O tema, contudo, ganha cada vez mais urgência. Por um lado, a crise de legitimidade do programa neoliberal levou a uma série de expoentes do pensamento conservador a fazer “críticas” e “autocríticas” ao realizado nas últimas duas décadas. Nessa condição estão George Soros e alguns documentos do Banco Mundial. Há todo um esforço desses setores em dizer que as preocupações deles e as nossas são comuns; tratar-se-ia então de se estabelecer “pontes” entre esses dois mundos, de buscar soluções comuns (até o momento tal idéia foi corretamente rejeitada pelo Conselho Internacional do FSM).
Por outro lado, a questão mais importante é que a chegada aos governos centrais de partidos e movimentos de esquerda e os impasses aí vividos colocam o tema do programa de superação do neoliberalismo na ordem do dia. O Fórum Social Mundial é um dos espaços estratégicos para esse debate.
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