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O Marxismo vivo de José Carlos Mariátegui | Daniel Chacon

“Tinha o rosto impecavelmente andino, uma cabeça universal e um coração suficientemente grande para se colocar ao lado dos operários, dos camponeses, dos indígenas com outras línguas e culturas, dos condenados da terra, dos sem-terra de todo o mundo”.
Rodrigo Montoya Rojas

Em que pese à permanência do pouco conhecimento ou influência, de maneira geral, na produção intelectual e no centro das discussões políticas da esquerda brasileira, o pensamento crítico do Peruano José Carlos Mariátegui continua a exercer larga influência na identidade política e na ação de diversos movimentos sociais e organizações de esquerda em toda América Latina, desde o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ao Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN).

Considerado por Michael Löwy o “mais importante e inventivo dos marxistas latino-americanos, Mariátegui se destaca pela originalidade da sua escrita e pela vitalidade das suas ideias. Na sua grande obra Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, traduzida para mais de setenta idiomas e cuja leitura é obrigatória para compreensão do pensamento mariateguista, o autor afirma: Meu pensamento e minha vida constituem uma única coisa, um único processo”.

Nascido em Moquegua, Sul do Peru, em 1894, José Carlos Mariátegui foi profundamente influenciado pelo pensamento crítico latino-americano de José Martí e González Prada, mestres que abriram caminho para “uma nova geração americana”. Trabalhou como jornalista e na década de 1920 se aproximou da luta estudantil em defesa da reforma universitária e do movimento operário limenho, apoiando suas greves. O então presidente peruano, Augusto Leguía, irá impor o seu exílio de forma velada. José Carlos segue para a Itália e assiste de perto a ascensão do fascismo, participará de encontros e conversas com intelectuais como Benedetto Croce e terá o privilégio de participar em 1921, como observador internacional, do histórico congresso do Partido Socialista Italiano (PSI) em Livorno, quando a corrente de esquerda rompe para a fundação do Partido Comunista Italiano.

Quando regressou a Lima em 1923, já se considerava comunista. Na volta ao seu país não buscou aplicar automaticamente o que viu e aprendeu. Enxergou a Europa com os olhos americanos. Fez uso do método marxista de análise da realidade na tentativa de compreender o Peru e a “Indo-América”por dentro, sendo considerado o primeiro marxista latino-americano. Aproxima-se ainda mais do movimento operário, e publica em 1926 a revista Amauta¹ (um marco para o pensamento político e artístico latino-americano) rompe com Haya de La Torre e a APRA (Aliança Popular Revolucionária Americana) para dar vida ao Partido Socialista Peruano e participa ativamente da criação da CGTP (Confederación General de Trabajadores Del Perú).

Em 1928 é publicada pela editorial Minerva a primeira análise marxista e sistemática do conjunto da evolução histórica de um país latino-americano: Os Sete ensaios de interpretação da realidade peruana.

Convicto de que a teoria marxista não poderia ser limitada a uma visão estagnada e pré-estabelecida da realidade, refuta as teses etapistas dos partidos comunistas europeus. Afirmava que “Não existe no Peru, como jamais existiu, uma burguesia, com sentido nacional”. As massas indígenas representavam 3/4 da população total do país, o desenvolvimento capitalista era raquítico, o proletariado diminuto e a realidade social peruana profundamente marcada por um conflito espacial desagregador (Costa x Andes) e pelo Gamonalismo². Como proceder para fazer avançar a perspectiva marxista em uma realidade em que nenhuma de suas premissas clássicas estava desenvolvida?

A revolução Peruana era um projeto que só poderia existir por vontade, por paixão. Sendo assim, Mariátegui não se limitará apenas ao estudo do desenvolvimento das estruturas econômicas, busca compreender também os processos de mobilização dos oprimidos (com forte destaque para as grandes manifestações indígenas que varriam o Peru) e o surgimento da convicção militante e o que convida os explorados a se organizarem coletivamente. A partir da compreensão desses pontos, apresenta um elemento como eixo mobilizador: O mito. 

Para Mariátegui a força do mito não se constitui como uma pílula de otimismo ou um subterfúgio para escapar da realidade e, portanto, não deve ser entendida como uma construção irreal ou equívoco que abre precedente para a utilização instrumental das massas. Ela é a expressão exata dos processos históricos e das tensões criativas presentes no interior de cada sociedade. No caso da realidade peruana, Mariátegui apresentará com centralidade a questão indígena, reivindicando a herança da tradição coletivista incaica e o mito do Ayllu³.

Esse texto se constitui como um recorte superficial da sua vida e da sua obra, mas busca fortalecer a difusão de um legado ainda pouco conhecido em nosso país, valorizando a força de um pensamento vivo e que sobrevive ao transcurso do tempo, sendo chave em qualquer tentativa de compressão da realidade nuestra americana.

O resgate do pensamento mariateguista é assustadoramente atual diante da conjuntura brasileira; pois nos reabastece e revigora com a mística e a radicalidade necessária para travar o bom combate. Em tempos marcados por fortes retrocessos e avanço do fascismo, coloca na ordem do dia a urgência de retomarmos um horizonte de esperança na construção de um outro padrão civilizacional.

O forte protagonismo das lutas indígenas nos últimos anos e as recentes lutas anti-racistas e decoloniais têm muito a nos ensinar e se configuram como grande oportunidade para que a esquerda brasileira assimile e passe a experimentar novos formatos de mobilização e organização. Uma cultura política menos vertical, mais horizontal e coletiva, e, portanto, mais radical e potente. Um pensamento vivo, plasmado no contato e pela resistência ancestral do nosso povo.

Afinal de contas, como afirmou Mariátegui: “Não queremos, certamente, que o socialismo seja na América decalque e cópia. Deve ser criação heroica. Temos que dar vida, com nossa própria realidade, em nossa própria linguagem, ao socialismo indo-americano. Eis aqui uma missão digna de uma nova geração.”

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¹ No império Incaico o Amauta era o responsável pela educação dos filhos da nobreza. Em quéchua, significa mestre/sábio/pensador/conhecedor.

² Gamonalismo vem de Gamonales, como são chamados os latifundiários na serra andina peruana. Gamonalismo, portanto, se refere a um sistema latifundiário.

³ Unidade familiar existente na serra andina durante o período Inca e que sobrevive até hoje. Se constituia como base fundamental do sistema coletivo de cooperação Incaico.

Daniel Chacon é Historiador e Bolsista no Observatório de Cultura e Política das Américas (OCUPA-UFRN).

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