Um dos grandes intérpretes do Brasil, Caio Prado Jr., sublinha que a colonização esteve desde o início subordinada ao ritmo de desenvolvimento do capitalismo global. A modernização do país herdou um caráter dependente. Nos anos 1990, o protoneoliberal Fernando Collor de Mello deu a largada nas privatizações e aumentou a dependência dos centros dinâmicos. O “caçador de marajás” sintetizou no tema da corrupção a ruína da representação política e o caos econômico da ditadura. Fernando Henrique Cardoso assimilou o Consenso de Washington (1989) para obedecer os ditames da “nova ordem mundial”, retirando da alça de mira do Estado a regulação da economia. O laissez-faire afiava as unhas e domava o ego do intelectual que pediu para esquecessem o que escrevera.
Nossa inserção no “sistema-mundo”, conceito elaborado por Immanuel Wallerstein a partir da ideia de economia-mundo formulada pelo historiador das “longas durações”, Fernand Braudel, nos fez coadjuvantes das grandes potências. Situação que não mudou radicalmente na governabilidade do PT, embora os avanços sociais, educacionais e os polos navais. Mesmo com a conquista sincrônica de governos na região, os progressistas se restringiram a um desenvolvimentismo tecnocrático com um script social-democrata (Brasil, Uruguai, Argentina, Paraguai, Bolívia, Equador) para construir o Estado de Bem-Estar Social através do consenso, sem acirrar os ânimos de classe na luta contra as iniquidades. Os conflitos foram para debaixo do tapete, com exceção da bolivariana Venezuela.
A experiência contou com a adesão de 87% da população brasileira (Ibope, 2010), e apontou caminhos ao instigar os acordos comerciais do Mercosul, as articulações acima da lógica mercantil da Unasul e as demais iniciativas de integração continental para colocar em melhores condições as nações latino-americanas, no cenário da globalização. As ações em curso do presidente Lula 3.0 indicam que, com aprendizados a ferro e fogo, seguimos no encalço do Farol de Alexandria. Desta feita, com maior consciência sobre o boicote de elites incultas, com atávico complexo de vira-lata.
Setores associados ao capital estrangeiro perguntam pelo “Lulinha paz e amor”. No momento, outra persona celebra o Brics, interpela o imperialismo estadunidense, elogia a multipolaridade, inquire a dolarização do comércio transnacional e, em aliança com a China, cria grupos de facilitação do comércio, aplicação pacífica de tecnologias (satélite Cbers-6), cooperação de ciência e inovação em áreas de informação e comunicação, coprodução televisiva, investimento industrial, economia digital, evolução social e rural, e combate à fome e à pobreza. Os memorandos sino-brasileiros firmados implicam aportes de R$ 50 bilhões para a reindustrialização da nação. Ótimo recomeço.
Com a derrota eleitoral, mas não política, do projeto que acenava um regime de exceção iliberal – o Brasil voltou ao palco. Na Conferência Mundial do Clima (COP 27), o ativista ambiental Al Gore explicou aos líderes dos hemisférios Norte e Sul que, “ao eleger Lula, o povo resolveu preservar a Amazônia”. Uma decisão responsável para com o futuro do planeta e da humanidade. A hecatombe climática e a ameaça à biodiversidade descortinaram horizontes que transcendem o totalitarismo da mercadoria. Estamos vivendo entre dois mundos muito distintos, o unipolar e o multipolar. Um tarda em morrer, enquanto o outro já nasceu, para evocar a metáfora gramsciana. A incapacidade do Ocidente metabolizar em termos simbólicos a profunda transição de modelos sacrificou a Ucrânia.
A reconfiguração da geopolítica no mapa-múndi favorece países em crescimento, se aproveitarem a oportunidade para diminuir os laços de subordinação. Pela densidade demográfica, vigor do PIB e posição geográfica com extensão fronteiriça no Uruguai, Argentina, Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e o Departamento Ultramarino francês, o Brasil é a peça chave na equação. Em consequência, a própria América Latina voltou ao teatro político, econômico, cultural.
Na década de 1930 havia a disputa entre três alternativas ao liberalismo clássico (o nazifascismo, o comunismo soviético e o keyneisianismo), todas antiliberais. No primeiro quarto do século XXI, com a crise da democracia, disputam espaço o obscurantismo de extrema direita e o iluminismo de esquerda. É ilustrativa a resolução petista para mobilizar a sociedade civil organizada e reanimar os Comitês Populares de Luta com papel aglutinador nas últimas eleições, a fim de aproximar a base social do programa governamental. O reconhecimento às Conferências Nacionais pelo Estado-movimento, com ampla participação cidadã, funciona qual suplemento de vitamina institucional.
Compreende-se a assertiva de Emir Sader no artigo “A refundação do Estado e da política”, em A crise do Estado-nação, livro coordenado por Adalto Novaes. “O Orçamento Participativo foi o avanço democrático mais importante depois da queda da ditadura e do restabelecimento do Estado de direito no Brasil. Ele consiste no embrião de uma refundação do Estado para além da dicotomia estatal / privado, porque fundado na esfera pública”. Apesar da experiência do OP acontecer numa conjuntura política adversa, marcada pelo esboroamento da ex-URSS e situada fora das erupções revolucionárias dos compêndios de história em que subalternos rompem o ciclo da dominação, o fato é que o cerco da ideologia do monetarismo deixou brechas em aberto à criatividade plebeia.
Nada que impedisse o fiscalismo das flores do mal. “A informalização das relações de trabalho, junto a taxas recordes de desemprego estrutural, acompanhada das formas de precarização do trabalho, desestruturou o tecido social, afetando-o em sua totalidade, incluindo o segmento que se mantém dentro das relações de trabalho. A quebra dos contratos formais, com o que significam de via dupla de direitos e deveres entre indivíduo e sociedade, gera novas formas de exclusão”, acusa o conselheiro editorial da New Left Review. Então o ruim ficou pior. Os excluídos foram cancelados.
A crítica de Emir Sader data de 2003, muito antes da aprovação da Lei das Terceirizações (2017) que comemorou a superexploração do labor no governicho do golpista Michel Temer, ao construir uma ponte de retorno aos padrões do colonialismo no período escravista. O passado de horrores se estendeu ao presente, onde o racismo e o sexismo forjam sujeitos de não-direitos em um sistema social com predominância das oligarquias predatórias primário-exportadoras e financeiras.
O desafio está em recuperar a dignidade da política e superar o negacionismo neofascista: (a) do livre mercado, que converte cidadãos em consumidores passivos; (b) da mídia tradicional, que legitima a desobediência civil individual em detrimento das atividades coletivas de protesto; (c) do Judiciário, que em regra criminaliza as negociações interpartidárias para compor uma coalização com repartição de cargos, conforme ocorre em qualquer geografia para formar maioria parlamentar e; (d) dos ajustes fiscais, que erodem a democracia e desacreditam a política. Esses são os quatro cavaleiros capitalistas que contribuem para a despolitização e a desmoralização da política.
Hoje, o processo de hegemonia das classes dirigentes se traduz e consolida sob a batuta do rentismo nas finanças, a precarização das ocupações laborais e as desregulamentações. Prevalece a crença de que o perigo que paira sobre a liberdade não provêm da tirania, porém da igualdade. Prato cheio à pregação neoliberal de Friedrich Hayek, cofundador da Société du Mont-Pèlerin, que considera a desigualdade o valor por excelência (!) para o engrandecimento dos indivíduos e coletividades, em substituição das consignas consagradas pela Revolução Francesa. Restou à impolítica ir a reboque da acumulação e da destruição, avessas ao princípio da felicidade pública. Mas seu descrédito, se causa espanto, não configurou um destino incontornável. É possível redimensionar a política com o diapasão das garantias materiais para o exercício da cidadania plena. Os meios vinculam-se aos fins. Reza o provérbio português, “não existe bem que sempre dure, e nem mal que nunca acabe”.
Refundar a política com o participacionismo equivale a empoderar a democracia para dissipar a difusão antipolítica na sociedade e proteger as instituições republicanas. Para a pesquisadora do Instituto de Relações Internacionais da UnB, Danielly Ramos, “a parceria com o gigante asiático repõe nos trilhos a cooperação estratégica” – em moeda própria. Donald Trump associa o descarte do dólar das transações à derrota em uma guerra mundial. O jus esperniandi não para a marcha da múltipla polaridade. Como na canção de Ivan Lins e Vitor Martins, entramos num Novo tempo. Os cães de guarda da imprensa imperialista ladram, a caravana passa. O sonho não acabou, John.
Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul.
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