O protagonismo garante a cidadania

Santos Fagundes e Ottmar Teske

O Dia Internacional das Pessoas com Deficiência foi estabelecido pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1992 (Resolução 47/3). A data não é um ritual vazio. É um convite para lembrar uma história longa e ainda inacabada. A trajetória moderna da luta pelas vidas com deficiência tem raízes já no século XIX. Quando pessoas com deficiência inventavam, adaptavam e socializavam suas próprias tecnologias e estratégias de sobrevivência e que de forma coletiva, organizaram a política pública no século XX.

Mas somente em 1981, foi proclamado pela ONU o Ano Internacional das Pessoas com Deficiência. Foi um ato importante pois a partir daí consolidou um salto simbólico para esse movimento, que um bom tempo depois, já no século XXI garantiu a conquista coletiva da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência tornando-se o primeiro tratado de direitos humanos do século XXI.

Podemos dizer que foi um marco jurídico que traduziu em norma o horizonte ético da igualdade e da dignidade. Nesse mesmo período, aqui no Brasil estava sendo construído o Estatuto das Pessoas com Deficiência.

A luta de hoje não pode ser apenas por rampas ou legislação técnica. Insistimos por uma transformação de paradigma. A Sociologia da Acessibilidade parte do pressuposto de que a deficiência não está no corpo ou na mente, mas nas barreiras arquitetônicas, comunicacionais, atitudinais e institucionais produzidas pelo próprio estado e sociedade.

A acessibilidade universal é, portanto, uma mudança estrutural. Ela deve estar em todas as áreas e estruturas do Estado e Sociedade, como por exemplo em todos os ministérios, secretarias e outros órgãos sejam eles estatais ou da sociedade em geral.

Por isso entende-se que precisa ser a base de uma política pública fundamentada na ética social, que desloca a chave da ação do indivíduo para o coletivo.

Quando as políticas acompanham esse deslocamento, aquela velha equação do “defeito/normalidade” perde sentido pois defendemos a pessoa,em primeiro lugar.

No Brasil, o movimento das pessoas com deficiência dialogou com as experiências internacionais, mas produziu seus saberes, estratégias e documentos próprios. Esse protagonismo é testemunhado em relatos, legislações e em inúmeras teses, obras, livros como o recém lançado “Enxergando a Política com os Olhos do Povo”, de autoria de Santos Fagundes. Nessa obra o leitor encontrará registros que recolhe memórias, documentos oficiais e análise crítica da trajetória do Movimento Nacional das Pessoas com Deficiência.

É por meio dessa produção política e intelectual que se construiu o caminho do modelo social e das vitórias legais que temos hoje, como o Estatuto das Pessoas com Deficiência (LBI) respeitando os princípios da Convenção Internacional.

O protagonismo que se defende significa algo mais que presença. É a capacidade decisória, a representação social, a voz efetiva na elaboração das políticas que dizem respeito à pessoa com deficiência e quando essas são protagonistas se pratica a cidadania.

Por isso nossa inquietação. Existem forças que transformam essa pauta em oportunidade de negócio. Não podemos permitir que a vida das pessoas com deficiência seja tratada como mercadoria de alto valor. O risco é duplo: (1) retirar das pessoas o controle sobre suas próprias demandas e (2) diluir em interesses privados os objetivos de justiça social que deveriam orientar o estado e a sociedade.

A crítica não é automática contra o mercado. É contra o oportunismo que captura fundos, conselhos e narrativas, apagando a participação substantiva das comunidades envolvidas com a temática.

O Estatuto das Pessoas com Deficiência (LBI) prevê o FUNDO NACIONAL DOS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA. Esse é um instrumento crucial para transformar palavras em políticas públicas. Esse fundo precisa ser apresentado e debatido no Congresso Nacional com transparência absoluta e dois compromissos inegociáveis: (1) priorizar FORMAÇÃO, CAPACITAÇÃO e SENSIBILIZAÇÃOdas lideranças e entidades de e para pessoas com deficiência; (2) garantir que sua gestão seja coordenada pelo CONADE e pelos Conselhos Estaduais e Municipais, com UNICIDADE, UNIVERSALIZAÇÃO e CONTROLE SOCIAL SUBSTANTIVO. Só assim esse Fundo cumprirá seu papel humanista de financiar projetos que sensibilizem o estado e a sociedade sobre a Acessibilidade Universal como direito de todas as pessoas.

Acessibilidade universal é, acima de tudo, conscientização. Quando a sociedade compreende, reconhece e age, as estruturas se transformam. A conscientização não é espetáculo, é prática educativa contínua, produção de saberes, formação profissional e escuta permanente das pessoas com deficiência.

É preciso atenção e discernimento diante de grupos que se apresentam como representantes legítimos, mas não correspondem às categorias previstas na Convenção Internacional e no Estatuto das Pessoas com Deficiência, nem aos critérios republicanos de participação. A defesa da integridade do movimento é também defesa das políticas públicas.

Lembra se que as conquistas não são bens para serem apropriados por falsos protagonistas. O movimento histórico das pessoas com deficiência é plural e diverso, mas não pode ser diluído por oportunismos que enfraquecem a legitimidade coletiva.

Hoje celebramos para lembrar que a cidadania é uma construção contínua. Celebremos o protagonismo e a resistência. Mas celebrar sem organizar-se é mera festança.

A política desejada exige engajamento crítico. É preciso exigir que o Fundo Nacional das Pessoas com deficiência exista, funcione e seja operacional. Que as entidades e o movimentos possam cobrar do Estado políticas de formação e sensibilização, ocupar espaços de deliberação e liberdade para denunciar práticas mercantis que desviem recursos e vozes, pois protagonismo também é vigilância.

Afirmar a pessoa em primeiro lugar é uma decisão ética. Por isso a recusa que a deficiência é identidade totalizante de alguém. Politicamente é exigir estruturas que permitam à pessoa existir em igualdade. Socialmente, é trabalhar para que a acessibilidade universal seja um princípio operativo, não um adendo, um apêndice.

Ao olharmos para trás, reconhecemos feridas e conquistas. Ao olharmos para o presente, vemos tarefas urgentes. Ao projetarmos o futuro, sonhamos uma sociedade onde a diferença político-cidadã seja reconhecida e celebrada e que a data de hoje seja um elo entre a memória do que se fez, a lucidez do que falta e a coragem de quem não abre mão do protagonismo.

VIVA O DIA INTERNACIONAL DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA. VIVA O PROTAGONISMO. VIVA A CIDADANIA.

Santos Fagundes é Cientista Político

Ottmar Teske é Sociólogo

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