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Os intelectuais e a luta de classes

Os intelectuais do PSDB têm abdicado de todo o pudor teórico e conceitual ao tratar da política no Brasil.

LUIZ MARQUES

Os intelectuais do PSDB têm abdicado de todo o pudor teórico e conceitual ao tratar da política no Brasil. Nas últimas eleições municipais, o filósofo José Arthur Gianotti defendeu a tese de que o voto no PT implicava um “enfraquecimento da democracia brasileira” (Folha de São Paulo, 26/09/04). O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso seguiu no mesmo diapasão acrescentando que, na hipótese de vitória petista nos grandes centros urbanos, a nação corria o perigo de se fazer “caudatária de um partido único” (O Globo, 03/10/04). Argumentavam em prol da alternância no poder como condição para a existência do pluralismo. Em São Paulo e em Porto Alegre, o estratagema foi explorado à exaustão. Vide a aparição cara-de-pau do senador Pedro Simon (PMDB/RS), com uma cadeira cativa desde priscas eras no Senado, ao afirmar que 16 anos era tempo demasiado para a Frente Popular na Capital gaúcha. Como se observa, o terrorismo da intelectualidade neoliberal antecedeu o terrorismo do PCC.

O emblemático J. A. Gianotti volta à carga, agora, recorrendo às categorias do jurista nazista Karl Schmitt para preconizar uma redução da política ao momento da força. Lamenta que “as oposições”, em acepção ampla porque engloba o P-Sol, sejam “incapazes de demarcar o campo dos amigos e dos inimigos… na medida em que nada mais propõem do que substituir os descalabros do atual governo por uma administração bem-comportada” (FSP, 14/05/06). Não à toa, o título do artigo do emérito tucano, “Autoritarismo mole”, soa como uma reprimenda. A saída seria a politizar o pleito: “se o voto não for politizado, se a imoralidade não for mostrada como fator a desintegrar o governo… a reeleição de Lula é mais que provável”. Curiosamente, no dicionário gianottiano politizar é sinônimo de despolitizar. A idéia é evitar a disputa programática, trocar a discussão sobre projetos públicos pela avaliação da moral privada dos atores políticos.

O que sustenta a tese é o reconhecimento de que “os índices sociais do atual governo são em geral melhores do que aqueles dos governos anteriores”. Caberia às oposições elaborar uma agenda efetiva com base nos resultados já obtidos. Se ao PT interessa cotejar administrativamente o presente com o passado, ao PSDB interessa associar um “julgamento ético” do presente a uma plataforma voltada para o futuro. A intenção é retirar o neoliberalismo da cadeira dos réus para, nela, colocar a representação política dos trabalhadores e convencer o eleitorado de que foi a chegada do PT à Presidência que fundou a corrupção sistêmica no país. A sentença é “obviamente delirante”, denunciou o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos. Para quem, o PSDB e o PFL, “partidos com expressão séria na sociedade”, têm escorregado para “um tipo de política de baixo nível” (Leituras da Crise, 2006). Mas, se depender do senador Tasso Jereissaiti (PSDB/CE), é daí para pior: “teremos de fazer uma grande campanha negativa para mostrar que Lula estava ciente da corrupção… só assim Alckmin poderá ganhar” (FSP, 20/05/06).

Não resta dúvida sobre a estratégia em curso dos adversários do povo: desqualificar com um moralismo baseado em suspeições as realizações do governo. Se referentes a obras de infra-estrutura, como na Operação Tapa Buracos nas BRs que não sofriam uma intervenção há duas décadas, diz-se que houve “irregularidades” sem que tenham sido confirmadas; a acusação foi levantada por um membro do TCU, o ex-deputado Augusto Nardes (PP/RS), aquele mesmo que os fotógrafos flagraram quando saía sob disfarce da residência do ex-presidente da Câmara Federal, Severino Cavalcanti (PP/PE), dias antes da renúncia deste.

Se referentes aos poderes constitucionais, igualmente sem provas cabais, diz-se que houve “mensalão” na relação do Executivo com o Legislativo para garantir a governabilidade; a acusação do escroque ex-deputado Roberto Jefferson (PTB/RJ) acabou encampada pelos editorialistas. Se referentes à política internacional, por pura bravata, diz-se que houve “covardia” em face da atitude tomada por Evo Morales ao efetuar a anunciada nacionalização das riquezas do subsolo da Bolívia; o epíteto foi usado pelo ex-ministro da Justiça, Paulo Brossard (PMDB/RS). Vale tudo para fazer soçobrar moralmente o PT e, por extensão, toda a esquerda “nos próximos trinta anos”. A expectativa das classes dominantes é que “com o fim do governo Lula – sua corrupção acintosa, a falsidade ideológica, a mentira, até o crime político – este país respirará”, conforme a mais recente dramatização do senador-banqueiro Jorge Bornhausen (PFL/SC).

Há nisso, além do cálculo eleitoral, uma interpretação do caráter nacional. Age-se, no caso, com a crença de que o brasileiro é um “homem cordial”, no sentido conferido pelo historiador Sérgio Buarque de Hollanda (Raízes do Brasil, 1936). “Cordial”, palavra que etimologicamente deriva de coração, não porque o brasileiro seja bondoso mas porque supõe-se que em nós predominam os comportamentos de aparência afetiva avessos aos ritualismos da polidez. Nossa marca seria a ampliação das modalidades de tratamento do círculo familiar para o Estado, como se entre um e outro houvesse apenas uma gradação e não uma descontinuidade. Daí decorreria nossa inadequação às relações impessoais, – republicanas. E a tendência à familiarização que subsome tudo na espiral das emoções próprias da esfera do privado.

“O desconhecimento de qualquer forma de convívio que não seja ditada por uma ética de fundo emotivo representa um aspecto da vida brasileira que raros estrangeiros chegam a penetrar com facilidade”, reitera o pai do Chico. A escolha de um vocabulário carregado emocionalmente para descrever o governo Lula e do PT tem como pano de fundo então uma resposta à pergunta sobre quem somos. Talvez funcionasse também na Itália ou em Portugal, mas com certeza seria impensável na França ou na Suécia. Os shows sob os holofotes das CPIs, muito embora encenados por péssimos comediantes, eram mais que a conversão da política em espetáculo graças à grande mídia, em especial a televisão. Eram tentativas de interpelações dirigidas ao atavismo, isto é, ao inconsciente coletivo dos telespectadores para obstruir-lhes a razão e, assim, sensibilizar e seduzir o coração dos eleitores de baixa renda e escolaridade. Saudou o affaire do caseiro Francelino pelo alcance que sua manipulada magnificação prometia socialmente.

Para os subsidiários das autodenominadas “elites”, os fatores explicativos para os elevados índices de Lula nas pesquisas não têm a ver com o fato de que, no presidencialismo, a figura abstrata do presidente é preservada pela opinião pública ao passo que as instituições que o cercam, o Congresso e o Judiciário, são responsabilizados pelos obstáculos às mudanças estruturais. Ou com programas governamentais concretos de transferência de renda e oportunidades, como o Bolsa Família e o Prouni. Ou com o efeito cascata da recusa consciente, pelos movimentos organizados, ao retrocesso civilizacional que significaria a volta ao modelo neoliberal. A direita atribui sua adversidade, ora às “falhas de comunicação” para superar o “despreparo” e a “desinformação” da senzala, ora ao mau-caratismo macunaímico do pobretariado brasileiro.

É um erro imaginar que a estratégia das oposições consista simplesmente em fugir do debate programático. Nenhuma competição política esgota-se no plano da objetividade, com a fria exposição de estatísticas sobre o desemprego, a saúde e a educação. Não basta bater na tecla que remete à mensuração do teor público e social das políticas implementadas pelos diferentes partidos, no período em que exerceram do poder. As forças democráticas e populares, para usar um pleonasmo (afinal, se são democráticas são, por definição, populares), já amargaram derrotas apesar de constituírem experiências festejadas mundialmente. A esperança extrapola os balanços de gestão. Dela não se deve esperar gratidão, senão que novos desafios.

Do outro lado da propaganda dita gratuita estão receptores multidimensionais para os quais o real não se esgota no cotejamento das ações ou inações de uma administração, ainda que o critério das políticas públicas sirva para impor limites à demagogia. O real é um caleidoscópio complexo, configurado também pela tradição, a cultura, a ideologia, os mitos, as crenças populares e os padrões de conduta que compõem o habitus e a percepção de cada segmento na sociedade. Esta percepção nas classes médias, por exemplo, depois da desagregação de valores levada a cabo pelo neoliberalismo, obedece atualmente a uma subjetividade antipública que se exprime num antipetismo por identificar justo no PT, para evocar a metáfora de Gramsci, o “moderno príncipe” do republicanismo. Para atenuar seus efeitos negativos nas urnas, há que acenar com a qualificação dos serviços públicos e com políticas indutoras da inclusão social para reverter o clima de insegurança que ameaça os laços societários dos indivíduos.

É a capacidade de estabelecer uma contra-hegemonia intelectual e política, a partir de um diálogo com o imaginário nacional, o que fará a diferença em outubro. A proposta de um segundo mandato deve apontar para a desfinanceirização do Estado, fazendo da diminuição das metas de superávit primário e dos juros uma alavanca para a majoração dos investimentos sociais no combate às desigualdades. A crítica à política macro-econômica cumpre um papel decisivo, em tal perspectiva, ao reatualizar as demandas pela universalização de direitos e permitir que a Frente Popular trabalhe as três dimensões temporais da história no processo eleitoral. Sim, é preciso comparar o passado (1995-2002) ao presente (2003-2006). Porém, sem deixar de descortinar horizontes utópicos para a cidadania no futuro (2007-2010).

Luiz Marques é professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

 

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