Por Bruna Rocha* e Marcela Ribeiro**
Há mais de dez anos temos vivenciado em algumas universidades a implementação de cotas raciais e sociais no acesso ao ensino superior brasileiro. Política essa institucionalizada a partir da sanção, em agosto de 2013, da Lei Nacional de Cotas no Ensino Superior, pela presidenta Dilma Rousseff, lei que formaliza e nacionaliza essa política de democratização de acesso em todas as universidades federais.
Por conta desse processo o Brasil vive um momento inédito em sua história: o acesso massivo de negros e negras aos espaços das universidades federais. A aprovação da Lei de Cotas, bem como a criação do ProUni e do fortalecimento do Fies, são grandes vitórias alcançadas pelo acúmulo de forças do Movimento Negro, do Movimento Estudantil, dos movimentos sociais antirracistas e do povo negro como um todo, cujos esforços de resistência e enfrentamento, muitas vezes subestimados pelas linhas da história, contribuíram e contribuem, substancialmente, para o Combate ao Racismo no Brasil.
A repaginação do modelo de entrada ao Ensino Público Superior, com o fortalecimento do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e a criação do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), também são iniciativas que jogam um papel positivo na democratização do Ensino Superior no país.
A União Nacional dos e das Estudantes sempre esteve na linha de frente das principais lutas travadas pela democratização do país. Através da Diretoria de Combate ao Racismo, ajudou a pressionar o governo para a aprovação da Lei de Cotas e vem formulando acerca do papel do povo negro para o Ensino Superior e vice-versa. O cenário pós-Lei de Cotas aponta ainda um processo lento de intervenção da negritude na academia, e portanto, coloca para a UNE uma agenda intensa de debates sobre qual modelo de universidade queremos construir daqui para frente.
Este período de transição existe porque há um desencaixe estrutural entre a vida do povo negro no Brasil e o modus operandi das Universidades Públicas, cuja construção do conhecimento é baseada em tradições, bibliografias e métodos eurocentrados e o arranjo institucional é hegemonizado por uma elite branca, orientada pelos princípios da meritocracia neoliberal.
O primeiro fator relevante para a análise é o profundo desnível social entre estudantes cotistas e não-cotistas na universidade, determinante para a sociabilidade e desenvolvimento nos cursos de graduação. O Censo 2010, que é o referencial institucional mais recente acerca dos dados etnográficos sobre a população brasileira, mostra como o povo negro ainda se encontra em situação de aberrante desigualdade no acesso aos bens e serviços públicos do país. A juventude negra se encontra na linha de coalizão destas desigualdades, estando nos postos mais precarizados de trabalho e sendo alvo prioritário da violência policial.
De acordo com os indicadores, em 2009, apenas 8,35% de jovens entre 18 e 24 anos, e 5,83% de jovens entre 25 e 29 anos, frequentava o Ensino Superior. Neste mesmo período, o número de jovens negros mortos por homicídio era de 71,8 para cada 100 mil habitantes, enquanto jovens brancos representavam 30,4 das vítimas de homicídio nesta mesma proporção. Em 2011, a Pesquisa das Características Étnico-Raciais da População: um Estudo das Categorias de Classificação de Cor ou Raça (PCERP), revelou que a relação com a Justiça e a polícia foi considerada por 68,3% dos entrevistados como um dos campos em que a cor ou a raça influencia a vida das pessoas (IBGE, 2011), ficando atrás apenas da categoria “trabalho”, onde 71% das e dos entrevistados apontaram como a dimensão mais racializada no acesso ao espaço social.
Estas especificidades negativas e estruturantes na vida dos e das jovens negras que acessam o Ensino têm impacto categórico nas oportunidades para estes atores e atrizes no espaço acadêmico.
As políticas de Permanência e Assistência Estudantil ainda são incipientes e não dão conta de reparar os contratempos enfrentados pela população negra nas universidades. Por um lado, os 400 reais destinados pelo MEC às e aos cotistas com o perfil socioeconômico mais vulnerável, são mais que insuficientes para sustentar a vida dentro e fora da universidade – levando em conta fatores básicos como moradia, alimentação e saúde – além de impeditivos para acesso a outros direitos. Por outro lado, a parcela que não se enquadra no perfil mais crítico exigido pelo MEC por pertencer à uma família negra de classe média baixa ou emergente, mas também sofre de vulnerabilidade e instabilidade socioeconômicas, tem dificuldade em acessar as políticas internas de permanência, cuja oferta quase sempre é desproporcionalmente menor que a demanda, devido à pequena fatia destinada a esta área do orçamento das universidades públicas.
O segundo fator imprescindível para a avaliação da conjuntura do Ensino Superior pós-Cotas Raciais, é a recepção política, institucional e epistemológica do povo negro pelas estruturas arcaicas da universidade brasileira. Estes e estas estudantes negras, ao ingressarem no ensino superior, se deparam com imponentes barreiras objetivas e subjetivas, que constrangem, isolam e limitam o caminhar destes atores na graduação: emendas curriculares eurocêntricas, maioria esmagadora de profissionais brancos nos postos de docência e administração, grupos de pesquisa despóticos, uma cultura embranquecida e um conhecimento colonizado.
Estes elementos do que identificamos aqui como segundo grande entrave na construção de uma universidade plural, que seja também uma construção do e para o povo negro, são o que fazem com que boa parte dos e das cotistas que acessam a Academia, não ouse disputá-la enquanto ferramenta de construção de uma nova sociedade e de emancipação intelectual, se limitando ao uso instrumentalista daquele espaço, apenas enquanto via de qualificação profissional e melhoria emergencial de renda.
A UNE compreende a necessidade do empoderamento financeiro imediato que, a partir de uma hierarquia construída no mercado de trabalho, é buscado pelos jovens negros, muitas vezes inadvertidamente, nos cursos do Ensino Superior. É legítimo e necessário que nós, jovens negros e negras ocupemos melhores postos de trabalho, ganhemos mais e sejamos respeitadas na sociedade, embora seja lamentável que para isso, precisemos de um diploma; para nos tornarmos visíveis, menos indigentes, menos marginais. Entretanto, a UNE luta há 75 anos por um modelo de universidade emancipador e libertário, que torne esse espaço um instrumento de revoluções sociais, artísticas, intelectuais, e queremos o povo negro no centro desta construção e disputa.
Por isso, estamos contentes em adentrar a universidade, mas não queremos mais ficar limitados entre a sala de aula, a fila do restaurante universitário, o ponto de ônibus e o balcão de telemarketing (por exemplo), onde somos explorados para conseguir sustentar nossa vida acadêmica, vida que pouco aproveitamos, geralmente, devido às nossas condições materiais.
A expressão empírica deste fator está na cara dos Programas de Pós-Graduação do Brasil: pouquíssimos negros acessam este espaço, considerado como a esfera mais legitimada para a construção ativa do conhecimento e não mais sua mera reprodução.
Um artigo de José Jorge de Carvalho, professor do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília, publicado no nº 68 da Revista USP (2005-2006), identifica um fenômeno conceituado como “Confinamento Racial no Mundo Acadêmico Brasileiro”. O estudo é fruto do esforço militante do autor em conjunto com professores e professoras negras das principais universidades públicas do país, que realizaram, em suas universidades, censos locais para mapear o número de docentes, pós-graduandos e pós-graduandas negras e negros das respectivas instituições de ensino.
A pesquisa referenciada foi feita de forma clandestina, por vias acadêmicas, visto que institucionalmente, as universidades em questão não possuíam mecanismos internos de monitoramento ou avaliação da segregação racial nestes espaços. Os censos apontaram um cenário alarmante: somando os docentes das principais universidades de pesquisa do país (entre elas a UFMG, a USP, a UFRJ, a UFSCAR, a UnB e a UFRGS) chegou-se a um número de aproximadamente 18.400 docentes, a maioria com doutorado. Na época da pesquisa, há dez anos, este universo estava racialmente dividido entre 18.330 brancos e 70 negros; ou seja, entre 99,6% de docentes brancos e 0,4% de docentes negros. Desconhecemos pesquisas mais recentes disponíveis sobre isso, mas percebemos no dia a dia de nossas universidades, que a situação mudou muito pouco.
Esta ausência de referencial negro na construção da trajetória acadêmica dos e das estudantes beneficiárias das cotas, influencia muito no seu relacionamento com as disciplinas, com o curso e com a construção do conhecimento como um todo, e, consequentemente, no seu horizonte de atuação e apropriação do espaço acadêmico.
Um terceiro elemento central para nossa reflexão é a racialização das diferentes áreas do conhecimento no Ensino Superior. Não existem dados precisos sobre isso, tampouco pesquisas consolidadas, mas a experiência universitária demonstra como há um acesso diferenciado entre negros e brancos aos cursos da graduação. Por contraste visual, podemos observar que estudantes brancos são maioria em cursos de alto reconhecimento e valorização profissional, como Medicina, Arquitetura, Engenharias e Direito. Enquanto a população negra é maioria esmagadora nas áreas de baixa remuneração e valorização, a exemplo das licenciaturas.
Além disso, a maior parte da população negra que tem acesso ao ensino superior está nas instituições privadas. Segundo o Censo 2010, Em maio de 2014, ao comemorar dez anos do ProUni, o ministro da Educação Paulo Paim, informou à Agência Brasil que metade dos e das beneficiárias do programa é negra. Em setembro, dados do MEC também disseram que 48% dos e das beneficiárias do Fies são negras. São 933 mil estudantes negros e negras, dentre os e as quais, 608 mil estão em instituições privadas – ou seja, 62,2% do total.
A situação destes e destas é ainda mais complicada, pois lidam diretamente com a mercantilização da educação. A não-regulamentação destes “empreendimentos educacionais”, aliada à pressão do mercado de trabalho por uma passagem pelo ensino superior, deixa os e as estudantes beneficiários do ProUni ou Fies reféns de uma perspectiva de conhecimento engessada, setorializada e pouco crítica. Além disso, o racismo, o machismo, a homofobia e as discriminações socioeconômicas são preponderantes nestas faculdades, sobretudo naquelas geridas pelos grandes grupos multinacionais, conhecidos como “Tubarões de Ensino”.
Se não foi fácil conseguirmos dar o primeiro passo, aqui entendido como o acesso ao Ensino Superior, mais complexo ainda se mostra o desafio de consolidar esta conquista enquanto uma grande oportunidade de modificar a estrutura interna do ensino superior brasileiro, e, como consequência, as diversas esferas sociais do Brasil.
Em agosto de 2014, aconteceu a primeira reunião do Comitê de Acompanhamento da Lei de Cotas, instituído pelo Decreto nº 7.824/2012, cujo objetivo é monitorar a implementação das cotas e gerar diagnósticos, em busca de seu aperfeiçoamento. A atividade foi acompanhada por representantes do MEC, da Seppir e da Fundação Nacional do Índio. Acreditamos que é preciso haver um grupo de trabalho mais robusto para uma tarefa tão grande como esta, com envolvimento amplo do Movimento Negro e com o devido protagonismo da União Nacional dos e das Estudantes, tendo em vista todo o acúmulo que geramos a partir da Diretoria de Combate ao Racismo.
Para alterar a correlação de forças na produção do conhecimento é necessário para além do auxílio-permanência, a desburocratização dos programas de assistência estudantil nas universidades, a ampliação dos recursos e programas de permanência, assim como cotas nas pós-graduações de modo que este aporte material possibilite que mais estudantes negras (os) tenham disponibilidade de participar das linhas de pesquisa, extensão, mestrados e doutorados. É imprescindível uniformizar a implementação das cotas nas universidades estaduais ao longo do território nacional. Desejamos o aperfeiçoamento do Programa Abdias do Nascimento e por consequência do intercâmbio de estudantes negros e negras das mais diversas áreas do conhecimento. A produção do conhecimento negro para intervir na sociedade faz parte de um projeto maior de disputa de hegemonia social. Novas culturas políticas e sociais antirracistas são necessárias para romper a lógica “casa grande-senzala” seguida por mais de 400 anos no Brasil e autorizada por nossas academias.
Também seremos nós, negros e negras, que vamos aproximar a universidade dos saberes populares, das comunidades nas pequenas e grandes cidades. A excelência universitária vem sendo discurso para valorizar o conhecimento acadêmico positivista e desvalorizar os aprendizados orais, o conhecimento comunitário, as ciências da natureza e da vida, tão estruturante para a comunidade negra, afrodescendente. Este é um muro simbólico e material que pretendemos romper, para construir uma universidade socialmente referenciada, a vera. Queremos participar, elaborar e tensionar o quanto for possível para que esta sensação de desencaixe social, político e epistemológico dos e das estudantes universitárias negras seja superada, dando lugar a uma sensação de engajamento, inovação e revolução nos pilares da Academia. Isto é combater o racismo. Isto é construir caminhos para a libertação plena de nossos irmãos e irmãs. Isto é reescrever a história do Brasil.
Para o povo negro, UNIVERSIDADE POR INTEIRO!
Referências: CARVALHO, JOSÉ JORGE DE. REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 88-103, dezembro/fevereiro 2005-2006
*Bruna Rocha é secretária de Mulheres do ENEGRECER e diretora de Mulheres da UEB pelo campo Kizomba.
**Marcela Ribeiro é secretária de Organização do ENEGRECER e diretora de Combate ao Racismo da UNE pelo campo Kizomba.
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