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Paralisia do Estado Centauro | Marcio Pochmann

A reforma do Estado produzida pelo receituário neoliberal se mostrou compatível com as exigências de ingresso passivo e subordinado do Brasil na globalização a partir de 1990. Com isso, a herança da administração pública moderna concebida pelo desenvolvimentismo dos anos de 1930 a 1980 foi submetida tanto à força do dinheiro como ao patrimonialismo eleitoral.

A exitosa retórica anti big government disparada pelos porta-vozes do dinheiro serviu ad nauseam para o enfraquecimento da resistência do serviço público e de sua tecnocracia desenvolvimentista. Simultaneamente, o avanço da cultura privatista  terminou substituindo o atendimento ao público enquanto exercício de cidadania por renovadas práticas de clientelas próprias do patrimonialismo eleitoral.

Ilustração: Mihai Cauli

Para tanto, a emergência de uma nova tecnocracia antidesenvolvimentista e de mentalidade neocolonial somente se mostrou possível através da contratação pelo setor público de escolas privadas pagas a “preço de ouro” para a “deformação” de especialistas que tendem a saber cada vez mais de coisa nenhuma. Exemplos disso abundam no interior do conjunto das elites dirigentes nos três poderes da República que foram capazes de contrapor o projeto do desenvolvimento nacional pela via da regressão neocolonial (M. Pochmann, Neocolonialismo à espreita, 2021).

Nesse sentido, deu-se a configuração do Estado Centauro*, cuja cabeça dirigente forjada pelo neoliberalismo se voltou prioritariamente ao atendimento de interesses do rentismo financeiro e dos proprietários dos recursos naturais atrelados à exportação. O resultado foi a ascensão do poder econômico a conduzir políticas públicas predominantemente orientadas à privatização do setor produtivo estatal e à inoculação da lógica gerencialista no interior da administração pública.

Além disso, a prática recorrente de governos nos pagamentos de juros do endividamento público e das desonerações e isenções fiscais favoreceu acentuadamente o andar de cima da sociedade. Assim, os ricos, poderosos e privilegiados absorveram do orçamento público o equivalente, em média, a 12% do Produto Interno Bruto (PIB) desde os anos 1990.

No Estado Centauro brasileiro, a cabeça e membros superiores assumiram a feição neoliberal. Na sustentação do processo de monopolização de benefícios aos ricos, o Brasil passou a gerar crescente população sobrante aos interesses dominantes das atividades econômicas tipicamente capitalistas.

Em consequência, a configuração de multidões de brasileiros sem destino no interior da sociedade permitiu recuperar ação renovada e recorrente do patrimonialismo eleitoral. Diante da subordinação da esfera política ao poder econômico, o processo eleitoral se viu crescentemente contaminado pela lógica mercantil operada por sistema partidário de maioria fragmentada e impulsionadora de intensa instabilidade governamental.

Neste contexto, o soerguimento de um amplo corpo do Estado Centauro se mostrou estratégico para a produção de best practices na gestão das multidões sobrantes e sem destino em profusão no país. Ao contrário de sua cabeça neoliberal, o corpo do Estado Centauro operou expandindo o gasto público nas ações de emergência social para o andar de baixo da sociedade por meio de duas diferentes frentes governamentais.

A primeira, mais ampla e perceptível politicamente, foi a inédita incorporação no fundo público de amplas parcelas da população empobrecida. Em 2020, por exemplo, cerca de 40% dos brasileiros faziam parte de algum programa de transferência de renda do governo federal, enquanto em 1985 não chegava a 3% da população.

O significativo e exitoso processo de monetização dos pobres se mostrou fundamental para o importante alívio do sofrimento de ampla parcela da base da pirâmide social. Ao mesmo tempo, a modernização no padrão de consumo dos pobres esvaziou a prioridade formativa da cidadania política permitindo a ascensão do fanatismo religioso e do banditismo social.

Sem que a estrutura produtiva tivesse sido recomposta, o país passou a depender de importações crescentes de bens e serviços e intermediários ao consumo popular. De maior valor agregado e conteúdo tecnológico, as compras externas favoreceram a geração de melhores empregos no exterior, restando ao mercado interno a generalização de ocupações de baixa produtividade e rendimento, equivocadamente vistas inicialmente como “ascensão brilhante” de uma nova classe média.

A segunda frente governamental pertencente à configuração do corpo do Estado Centauro permaneceu secundarizada e pouco conhecida, embora eficiente na atuação sobre as multidões sobrantes e sem destino. O processo de encarceramento massivo e de violência extrema se consagrou pela absurda evolução na taxa de homicídios que expressou o perfil de atuação estatal sobre a parcela mais rebelde do andar de baixo da sociedade (L. Wacquant, Punir os pobres, 2003).

De um lado, a passagem de um país que detinha baixo índice de encarceramento até os anos 1980 para assumir mais recentemente a terceira posição no ranking mundial de população encarcerada. De outro, a prevalência de 40 a 50 mil assassinatos oficialmente registrados em média por ano que, ainda subestimado, não deixa de apontar uma espécie de “guerra civil contra pobres insurgentes” no país.

Diante de tudo isso, cabe destacar que neste primeiro quarto do século 21, a hegemonia neoliberal se encontra crescentemente desgastada. Mesmo que a força do dinheiro e do patrimonialismo eleitoral continuem a exercer papel ativo, o Estado Centauro revela a sua paralisia funcional enquanto “compra de tempo” necessária a postergar a ruptura com o atual cenário nacional.

A reconfiguração do Estado Centauro brasileiro é urgente e impostergável. Isso é evidente pelo menos para quem acredita que há na profunda assimetria entre a cabeça e o corpo do Estado gigantesca dissonância com a democracia, o desenvolvimento sustentável e a justiça social.

* Na mitologia grega, o centauro é uma criatura composta por cabeça e braços humanos no corpo e dorso de um cavalo.

Via Terapia Política

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