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Participação popular como eixo estruturante de um plano para o país | Ubiratan de Souza

Artigo do NAPP Estado, democracia e instituições e de Ubiratan de Souza (Bira).

Existe um consenso dos limites da democracia representativa e sua crise de legitimidade política e de burocratização. Há um crescente divórcio entre a população e seus representantes no executivo e no parlamento. Além de política, essa também é uma crise fiscal do Estado contemporâneo, dominado pela capital financeiro. O Estado liberal burguês em seu estágio neoliberal agravou o processo de exclusão social e a concentração dos assentamentos humanos nos médios e grandes centros urbanos, onde milhões de pessoas se encontram sem oportunidade de emprego e renda, e em condições precárias de vida em sociedade, evidenciando o fracasso das chamadas políticas compensatórias para a resolução dos problemas da sociedade capitalista. A hegemonia do capital financeiro e das grandes empresas multinacionais criaram um sistema globalizado, que suga recursos através das dívidas públicas dos países e das famílias, situação que Ladislau Dowbor, em título do seu livro “A era do capital improdutivo”, sintetizou de forma muito clara e objetiva “A nova arquitetura do poder: dominação financeira, sequestro da democracia e destruição do planeta”.

A luta contra exclusão social, a falta de democracia, a defesa do meio ambiente, exigem um outro modelo alternativo de vida em sociedade com políticas públicas que modifiquem a distribuição da renda e do poder nas cidades e nos países, concretizando formas de participação direta da população nas gestões públicas. Por isso, a experiência do Orçamento Participativo (OP) é tão reconhecida nacional e internacionalmente, porque responde de maneira embrionária e simbólica aos desafios da modernidade e sobretudo, à crise de legitimidade do Estado contemporâneo. A nossa experiência do OP, também, aponta o caminho para a superação, de maneira contemporânea, da crise do socialismo burocrático, respondendo de maneira criativa e original à principal questão política da decadência e da derrocada do Leste Europeu, ou seja, a relação autocrática do estado com a sociedade.

Neste sentido, se coloca na ordem do dia, a radicalização da democracia, a partir das relações do estado com a sociedade, com a implementação de práticas de democracia participativa em todas as esferas públicas: municipal, estadual, federal. Desse modo, ao mesmo tempo, se reforçam as condições para implementar uma ampla reforma política que nosso país tanto necessita, modificando as estruturas que tornam o sistema político vigente obsoleto e dominado por oligarquias e elites econômicas. Dentre outros pontos, por exemplo, o financiamento público exclusivo das campanhas eleitorais, a introdução da lista partidária fechada de candidatos(as) proporcionais, a fidelidade partidária, dentre outras medidas que visem combater a corrupção, a dependência do financiamento privado e fortalecer os programas e os partidos políticos.

Neste momento, em que os partidos de esquerda, os movimentos sociais e setores democráticos da sociedade buscam unir forças para construir uma maioria política e social para o “Fora Bolsonaro” com eleições diretas para presidente, é fundamental a construção de um programa democrático popular, que tenha como um dos seus eixos estruturantes a participação direta da população através de um processo de democracia participativa.

Não podemos repetir os erros do passado e continuar acreditando numa frágil e equivocada política de alianças com partidos de centro e de direita, temos necessidade de uma nova governabilidade que vá além do parlamento, sem excluí-lo, com uma aliança direta com a população. Para isso é preciso implantar mecanismos de democracia participativa: Orçamento Participativo nacional, conferências setoriais e temáticas com caráter deliberativo e garantia da execução das suas deliberações. Não precisamos de nenhuma lei para fazer democracia participativa, pois a Constituição Federal prevê a participação popular em seu artigo 1º, parágrafo único “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes ou diretamente, nos termos desta Constituição”. O Orçamento Participativo Nacional, sem dúvida nenhuma, seria um processo dos mais politizadores para a formação de uma consciência social na defesa da soberania nacional e para construção de um novo modelo alternativo de desenvolvimento econômico e social sustentável para o nosso País.

Nos processos de implantação e desenvolvimento do Orçamento Participativo (OP), tanto no País como no exterior, duas questões têm se mostrado de fundamental importância: a vontade política dos governantes e a organização social. Nas experiências pioneiras dos governos do PT e da Frente Popular na criação do OP em Porto Alegre, em seu início em 1989 e no processo de implantação do OP no Rio Grande do Sul, em 1999, o movimento social e comunitário teve um papel importante de organização, mobilização e reivindicação de políticas públicas. Por outro lado, o governo teve a sensibilidade e a vontade política para abrir o orçamento e passar a debater e decidir a receita e a despesa com a população. Por isso, podemos afirmar que os processos de implantação e desenvolvimento do Orçamento Participativo (OP), tanto no Brasil como no exterior, terão sempre três questões importantes a serem observadas para o seu bom desempenho: a vontade política dos governantes de verdadeiramente compartilhar o poder com a sociedade; organização da sociedade com a sua capacidade de organização, consciência social, mobilização, reivindicação de suas demandas e sua autonomia e um efetivo processo de co-gestão do estado entre governo e sociedade.

Nesse sentido, a proposta de um processo de Orçamento Participativo Nacional (OP-BR), deve levar em conta toda a experiência acumulada nos processos de OP no Brasil e no exterior. É com base neste acúmulo de conceitos, princípios universais e metodologias de democracia e planejamento participativo, que estamos formulando esta proposta.

Um dos princípios fundamentais a ser observado é a participação direta, voluntária e universal dos cidadãos no processo do Orçamento Participativo. Para isso, é necessária a existência de uma metodologia de democracia direta e de planejamento participativo que garanta o caráter deliberativo da participação cidadã nas assembleias públicas do OP em todos os municípios do país. Este princípio é que faz a diferença do processo deliberativo e de construção da cidadania do OP com outras formas tradicionais de consulta popular.

Outro princípio é o da auto-regulamentação do processo do Orçamento Participativo, elaborado pelos próprios participantes. O orçamento público é uma lei de iniciativa do executivo por previsão constitucional. O governante eleito adquire o direito de elaborar a proposta orçamentária para depois encaminhá-la ao Legislativo. Por isso, para se implementar o OP, não se precisa de nenhuma lei específica, basta a vontade política do governante eleito pela democracia representativa. O Poder Legislativo continua com todas as suas prerrogativas, transformando em lei a proposta orçamentária encaminhada e construída pelo Executivo, com participação popular. Este princípio da auto-regulamentação possibilita que, a cada ano, os participantes do OP realizem uma avaliação crítica da experiência concreta e possam introduzir inovações no regulamento do processo, tanto na metodologia da democracia direta como na de planejamento participativo.

A discussão de todo o Orçamento e das políticas públicas é um princípio importante a ser observado. Não se pode separar uma parte do orçamento para discussão com a comunidade, pois é preciso ter uma visão de totalidade para tomar as decisões. É preciso abrir todo o orçamento, os gastos de pessoal, dívida pública, serviços essenciais, investimentos e atividades-fim, projetos de desenvolvimento — bem como os recursos extra-orçamentários disponíveis para financiamento através do sistema financeiro estatal. Deve, também, ser discutida a receita pública e a política fiscal, buscando uma reforma tributária com progressividade e justiça fiscal, baseada no principio de quem tem mais paga mais e quem tem menos paga menos. Dessa forma, a população vai se apropriando da receita, da despesa e das políticas públicas em geral, criando condições para sua participação efetiva na totalidade da gestão pública.

O principio da Transparência e Prestação de Contas do governo sobre tudo o que for decidido no Orçamento Participativo. Para que o OP seja um processo de participação popular com caráter deliberativo e de controle social sobre a execução do orçamento, é necessária a publicação de um Plano de Investimentos e Serviços, com as decisões tomadas pela população e governo.

Cabe destacar também, que a partir da experiência do OP no governo Olívio Dutra (1999 – 2002), no Estado do Rio Grande do Sul (OP-RS), foi respondida a crítica dos setores conservadores e daqueles que se orientam por uma gestão concentradora, de que o OP só era possível na esfera municipal. Ao contrário, na experiência da esfera do Estado, o OP aumentou sua potencialidade em recursos financeiros orçamentários e extra-orçamentários. O BANRISUL viabilizou, com linhas de crédito com dinheiro próprio, do BNDES e do Banco do Brasil, importantes recursos para financiamento de programas nas áreas da agricultura, geração de trabalho e renda e de desenvolvimento econômico e regional, discutidos no OP-RS. Também ampliou a competência legal para a atuação em políticas públicas mais complexas de caráter macro-social e de abrangência estadual, que não podiam ser realizadas na esfera municipal. Desta maneira aprofundou-se o processo de gestão e planejamento participativo, co-gestão e auto-gestão.

A partir da práxis do processo do OP, podemos dizer que o OP nacional (OP-BR) tem viabilidade. Porque terá mais potência, com a ampliação da competência legal na esfera federal, para realizar políticas públicas de desenvolvimento econômico e social, combinado também com a ampliação dos recursos financeiros orçamentários e extra-orçamentários. Por último, as novas tecnologias da informação, também, são importantes aliadas no fortalecimento da democracia participativa. A formação de redes sociais e espaços virtuais de interação são facilitadores do processo de comunicação, mobilização, fiscalização e acompanhamento do processo de participação popular, os quais não substituem a participação direta e presencial, mas complementam, reforçam e ampliam seu potencial.

A socialização da política e a socialização do poder estão na raiz do processo do OP, condições fundamentais na construção de um novo modelo alternativo de desenvolvimento econômico e social sustentável para o nosso país, com soberania e liberdade.

Publicado originalmente pela Fundação Perseu Abramo como parte do Observa BR: caminhos da reconstrução e transformação do Brasil que surgiu da união de dois projetos da Fundação Perseu Abramo: o Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil e o Observatório da Crise do Coronavírus.

 

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