Por Paul Singer, na Teoria e Debate *
A ascensão do PT ao poder pelo voto popular, há dez anos, podia ser tudo menos um acaso. Em 2003, o partido já existia havia mais de duas décadas, tendo se proposto desde sua fundação, em 1980, a disputar o poder dentro das regras democráticas, num momento em que o regime militar ainda governava o país, e não havia garantia alguma de que aquelas regras de fato seriam restauradas. É verdade que, em 1980, os militares já haviam avançado bastante na senda da “abertura”, com a aprovação da lei da anistia e do pluripartidarismo. Mas isso não era suficiente para que as forças da oposição estivessem todas convencidas de que efetivamente o Brasil retornaria em breve à normalidade institucional democrática. O ceticismo de muitos era justificado pela atuação da chamada linha-dura militar, que se opunha por meio de atentados à plena acolhida na legalidade de forças por ela tidas como subversivas.
Foi nesse clima de incerteza que uma plêiade de líderes do novo sindicalismo, com Lula à frente, resolveu romper com a frente policlassista agrupada no PMDB e fundar um novo partido explicitamente de classe, que para evitar qualquer dúvida assumiu a denominação de Partido dos Trabalhadores. E, desde suas primeiras tomadas de posição, o PT explicitou sua adesão irrestrita à democracia e, portanto, seu repúdio a qualquer veleidade ditatorial ainda que pretensiosamente “do proletariado”.
O PT surgiu como um partido de massas em potencial, umbilicalmente ligado aos movimentos sociais dos excluídos e dos oprimidos. Grande parte de sua militância veio dos sindicatos, das Comunidades Eclesiais de Base e dos movimentos étnicos, de gênero e de jovens universitários e secundaristas. Sua heterogeneidade inicial não impediu que suas variadas correntes se identificassem com um projeto comum voltado ao socialismo, um socialismo que nada tinha em comum com o então crescentemente repudiado “socialismo realmente existente”, atrás de muros que em breve seriam derrubados pelos levantes dos povos por eles separados e oprimidos.
O partido, apesar de sua ampla base social, colheu resultados eleitorais decepcionantes nos primeiros pleitos que disputou. A grande massa popular continuou se identificando com o PMDB, no qual se habituara a votar. Enquanto isso, as correntes em que se dividiam as bases do PT se envolviam em diversas querelas ideológicas, que frequentemente desembocavam em sectarismos quase sempre estranhos a nossa realidade política e social. Esses embates iniciais espantavam os novos militantes, que não se identificavam com bandeiras que mal justificavam as disputas entre as correntes partidárias.
O que parecia um panorama partidário desesperador, na verdade encobria um profundo processo de aprendizado, que gerou em seguida o que se tornou conhecido como o modo petista de governar. Em 1986, foi eleita a Assembleia Constituinte que nos daria a atual Constituição, fruto de amplíssima mobilização social como jamais houvera antes no Brasil. Nela o PT teve forte participação por meio de seus militantes politicamente incorporados nos movimentos sociais. O processo constituinte foi prolongado e em parte hegemonizado pela esquerda, fortemente representada na grande bancada do PMDB e presente também nas bancadas dos outros partidos de esquerda. Para contrabalançar a hegemonia de esquerda, o presidente Sarney suscitou o Centrão, que reuniu bancadas de centro e de direita e, em algumas questões-chave, conseguiu fazer prevalecer suas posições. Não obstante, a Constituição de 1988 significou nítido avanço político e social do Brasil, e também o amadurecimento do PT. O partido começou a assumir seu papel de representante político e social da grande maioria popular excluída e empobrecida, produto da prolongada crise econômica e financeira que atormentou o mundo nas duas últimas décadas do século 20 e em particular os países da América Latina, sobrecarregados por pesadas dívidas externas, que a banca internacional subitamente deixou de financiar.
Em 1981, o governo brasileiro cortou todos os investimentos, paralisou obras públicas e lançou a economia numa crise descomunal da qual resultou um desemprego em massa de dimensões inéditas. Ao mesmo tempo, a inflação se acelerou cada vez mais, o que acarretou um arrocho salarial cada vez pior. A crise prosseguiu sob o primeiro governo civil, presidido por Sarney após o falecimento inesperado de Tancredo Neves. Em 1986, o Plano Cruzado decretou o congelamento dos preços, o que representou enorme alívio para o sofrimento popular, infelizmente por curto período de menos de um ano. Com o retorno da inflação violenta, os ganhos dos trabalhadores foram perdidos e a economia entrou numa sucessão de planos de estabilização com resultados efêmeros.
O PT viveu essa crise desempenhando o papel de principal partido do povo trabalhador, cujos interesses procurou defender consistentemente. Seus esforços foram coroados em 1988 com inesperados triunfos eleitorais em grandes cidades: capitais como São Paulo, Porto Alegre e Vitória, além de Santo André, Campinas, Santos e outros centros regionais. Foi sua primeira oportunidade de pôr em prática uma plataforma de inversão de prioridades, atendendo sobretudo os moradores mais carentes. Ficou evidente que o PT não tolerava a corrupção e era capaz de implantar orçamentos participativos nos municípios que governava – uma inovação política de grande importância que acabou sendo adotada por outras cidades de diversos países.
O partido passou por um duro aprendizado no enfrentamento de uma crise financeira mundial sem contar com os recursos necessários para aliviar o sofrimento sobretudo da grande massa de desempregados. Depois de ter perdido o comando da Prefeitura de São Paulo para Paulo Maluf, em 1993, começou a observar as táticas de autopreservação empregadas pelas comunidades operárias mais atingidas pelo desemprego. Amparadas pela ação da Cáritas e de sindicalistas de diversos setores, essas comunidades passaram a organizar grupos de produção autônomos, muitos dos quais acabaram se tornando cooperativas de trabalho. Em 1996, a CUT promoveu seminário em que essas experiências foram discutidas, assim como a recuperação de empresas em crise falimentar pelos ex-empregados organizados em cooperativa.
Sob os princípios socialistas
Uma parte dos desempregados originalmente trabalhadores agrícolas criou o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que inteligentemente aproveitou a conquista da legislação a favor da reforma agrária incluída na Constituição para ocupar terras mal ou pouco aproveitadas em latifúndios, criando fatos consumados que forçaram os governos federais do final do século a expropriá-las e entregá-las àqueles que já tinham começado a cultivá-las. Militantes exilados na Europa trouxeram de lá, depois que a anistia permitiu que voltassem ao Brasil, as experiências de socialismo autogestionário que floresceram na França – palco da grande insurreição estudantil em 1968 – e atraíram jovens trabalhadores também em outros países europeus. A epopeia do grande conglomerado sindical polonês Solidarność nos anos 1980 também impactou fortemente os militantes sindicais e estudantis do PT. Desse processo internacional de lutas emergiu finalmente a Economia Solidária, proposta inicialmente pelo economista chileno Luiz Razeto e em seguida captada pelo PT, quando a queda da URSS e do comunismo stalinista em toda a Europa Oriental desencadeou uma crise ideológica entre os que se identificavam com o socialismo como alternativa mais justa do que o capitalismo e do que o pseudossocialismo realmente existente detrás dos muros que estavam sendo derrubados.
Como não podia deixar de ser, essa crise atingiu em cheio o PT. Enquanto alguns propunham abandonar o socialismo como bandeira definitivamente fracassada, a maioria da militância reagiu veementemente em sua defesa como única alternativa ao capitalismo capaz de preservar as grandes conquistas da humanidade sintetizadas no lema imortalizado pela Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. A reação de Lula e demais membros da direção do PT foi consistente com seu compromisso democrático. Em vez de disciplinar os que podiam provocar uma cisão no partido, Lula convidou o mais eminente e respeitado intelectual do PT, o professor Antonio Candido Mello e Souza, a organizar uma série de seminários sobre o socialismo à luz das convicções e experiências acumuladas pelos quadros petistas ao longo dos anos em que o Brasil reconquistou a democracia e perdeu seu dinamismo desenvolvimentista em consequência da infindável crise financeira mundial.
Antonio Candido aceitou a incumbência e convocou outros intelectuais petistas para conduzir os seminários sobre socialismo, que transcorreram durante anos na passagem do século 20 para o 21. Entre esses seminários, que mobilizaram a dirigência do partido, um tratou da economia socialista, cuja apresentação ficou a meu cargo. Como eu já estava profundamente envolvido com a economia solidária, a apresentei como a única modalidade de economia que pode ser considerada congruente com os princípios historicamente consagrados do socialismo, desde suas origens nos primórdios do industrialismo capitalista até hoje. O debate que se seguiu revelou a amplitude do aprendizado que o PT acumulara, com suas próprias experiências, assim como as de outros países.
Naquele momento Lula estava se preparando para disputar pela quarta vez a Presidência da República. Acho que ele examinou com grande visão e agudez as razões por que havia perdido os três pleitos anteriores, em 1989, 1994 e 1998, e concluiu que para vencer era necessário que o PT abrisse amplamente o âmbito de alianças com outros partidos. Desse modo, a candidatura petista reuniria um conjunto de interesses que certamente não seriam idênticos, mas poderiam ser eventualmente conciliados, desde que os mais primordiais fossem contemplados. E assim foi feito. Para quem conhece a história do PT, essa postura significou uma ruptura completa com a visão que o PT elaborara de si mesmo desde sua fundação até aquele momento.
Basta lembrar que a única vez em que Lula havia disputado a Presidência em aliança foi quando Leonel Brizola, líder do PDT, foi o candidato a vice na mesma chapa. Sem dúvida, apesar da diferença de suas histórias, os dois candidatos representavam segmentos político-ideológicos muito próximos. Em 2002, o candidato a vice-presidente na chapa de Lula era José de Alencar, importante empresário industrial têxtil, portanto da classe patronal, antagônica à classe trabalhadora. Parecia uma ruptura com tudo o que a própria razão de ser do PT representava.
Um governo para todos
Fui uma das pessoas que discordaram da nova postura assumida por Lula e tive ocasião de discutir com ele antes mesmo que a campanha tivesse começado. A meu lado estava uma grande fatia dos quadros históricos do PT, e Lula respondeu a minhas indagações críticas com tolerância e paciência. O que ele nos disse foi que, para representar o povo na Presidência, Lula ou qualquer outro candidato não pode deixar de representar também a classe dominante, inclusive não dá para governar o país contra o empresariado, a não ser que o desígnio do governo fosse substituí-lo no menor prazo, o que não teria o apoio da maioria da população brasileira. Não tenho certeza se as palavras foram exatamente essas, mas o sentido que eu captei foi esse. E lembrei de quando fui secretário de Planejamento da prefeita Luiza Erundina, em São Paulo, entre 1989 e 1992. Escrevi um livro a respeito dessa experiência, que denominei Um Governo de Esquerda para Todos. Nesse volume defendi a ideia de que, para governar priorizando as necessidades dos mais pobres, era indispensável tomar em consideração também os interesses da classe dominante, embora sem lhes dar prioridade.
Tive a honra e o prazer de participar do governo do presidente Lula, como secretário Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho, cargo que continuo a exercer no governo da presidenta Dilma Rousseff. O que esses dois governos fizeram nestes dez anos foi considerar os diferentes interesses de classe que a sociedade brasileira abriga e não podem ser desprezados por nenhum governo que conscientemente queira representar todos os setores de classe que legitimamente pertencem à cidadania. Somente o crime organizado e violento se exclui pelo que faz e pelo que almeja da Nação. Essas considerações não contradizem o imperativo político e moral de dar prioridade aos que mais carecem, inclusive para reduzir a distância que separa os privilegiados dos que nem sequer conseguem satisfazer suas necessidades essenciais. É possível fazer justiça e eliminar a pobreza, como os governos do PT mostraram na prática, sem desconsiderar os interesses dos que hoje dispõem de privilégios.
É razoável aumentar a tributação dos que usufruem muito mais em renda do que de fato precisam, mas sem fazê-los sentir que deixaram de ser cidadãos. Essa talvez seja a questão crucial. É da essência da democracia o respeito devido a todos, mesmo os que defendem propostas ou medidas que ferem nosso senso de justiça. A diferença de ideias e de valores tem de poder ser expressa sem que aqueles que os sustentam sofram represálias. É claro que numa sociedade com tamanha desigualdade como a brasileira as disputas ideológicas e políticas tendem a ser veementes e não há como ficar alheias a todas. E é razoável coibir manifestações de ódio e discriminação de raça e de pessoas devido a sua orientação sexual ou por qualquer outro motivo.
O fundamental é não só preservar a democracia e os valores que a sustentam como fazer com que estes possam ser praticados e sobretudo desenvolvidos. O que os dez anos de governo petista demonstra é que é possível tornar a sociedade mais igual e mais justa sem dividi-la em grupos que se odeiam e/ou desprezam. A felicidade do povo brasileiro aumentou algo nesta década, e por isso Lula foi reeleito e a sucessora que ele escolheu e apresentou também foi eleita. No entanto, ambos tiveram de disputar um segundo turno para vencer seus adversários.
É bom lembrar que nós que governamos o Brasil em nome do PT não temos a aprovação unânime dos que são os cidadãos desta democracia. Talvez não seja necessário termos aprovação unânime de todos os brasileiros. Mas sem dúvida temos necessidade de tomar conhecimento de por que há tantos que não estão mais felizes com as realizações de nossos governos. Mesmo se as razões dos que nos desaprovam não nos convencerem, me parece indispensável tomar conhecimento delas simplesmente porque são cidadãos, e por isso merecem o mesmo respeito que os demais que eventualmente aprovam e apoiam as decisões de nossos governos.
* Paul Singer é secretário Nacional de Economia Solidária e integrante do Conselho de Redação de Teoria e Debate.
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