Paul Singer (1932-2018) nasceu na Áustria, aos oito anos veio com a mãe para o Brasil, a fim de escapar da máquina de moer carnes e almas do nazismo, na Europa. Em São Paulo, trabalhou como operário e tomou contato com o ideário socialista. Atuou no Sindicato dos Metalúrgicos. Ingressou na Universidade de São Paulo (USP), em 1956. Formou-se pela Faculdade de Economia e Administração (FEA), onde lecionou até à aposentadoria em 2002, ano em que outro metalúrgico guardava de recordação o macacão azul, para envergar com dignidade a faixa presidencial.
Foi secretário do Planejamento do município de São Paulo (1989-1992) e secretário de Economia Solidária do governo federal (2003-2016). Como pensador e como gestor público teve uma atuação de destaque. Escreveu 24 livros próprios e seis em coautoria, mais dezenas de artigos científicos publicados em diversos países, centenas de textos, entrevistas a jornais, relatórios e comunicações orais, hoje guardadas no acervo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da USP. Trata-se de uma referência incontornável do pensamento crítico e da prática política e econômica socialistas.
Singer foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980. Trouxe do veterano Partido Socialista Brasileiro (PSB), que teve o registro cassado pela ditadura militar em 1965, a tese defendida por Karl Kautsky e também por Rosa Luxemburgo, em polêmica contra o bolchevismo soviético, de que o socialismo e a democracia são indissociáveis. Um não vive sem o outro.
Coube ao cientista político André Singer a apresentação da primorosa edição conjunta, pela Fundação Perseu Abramo (FPA) e pela editora da Universidade do Estado de São Paulo (Unesp), da obra intitulada Paul Singer: uma utopia militante, lançada em 2022. A mesma inaugura a Coleção que homenageia-o com o seu nome. O autor foi um intelectual com militância em favor de um “socialismo democrático revolucionário” – regime político capaz de preservar as garantias individuais. Na orelha do livro, Carlos Henrique Árabe reitera o esforço desbravador do generoso lutador em “atualizar a noção clássica de unidade entre democracia e socialismo, a partir da base”.
No PT, manteve sempre hasteada a bandeira do socialismo, contribuindo para o aprofundamento do tema nas sociedades semiperiféricas do capitalismo. Ao estudar a experiência do Chile, no governo de Salvador Allende, concluiu que o erro foi estatizar as grandes empresas, quando deveria ter implementado a autogestão dos trabalhadores, porque a estatização burocrática não é o caminho para o socialismo democrático. Esta seria a lição da extraviada Revolução Russa (1917).
Fernando Haddad, em uma intervenção transcrita nas páginas de encerramento do livro, em tela, após confessar que se sente confortável no PT que abriga uma ala comprometida com os ideais socialistas, uma ala comprometida com os ideais republicanos e um centro majoritário social-desenvolvimentista, fundamental em países fora do núcleo central do capitalismo, – classifica a reflexão de Singer de “socialismo republicano”. E explica. “A tentativa de mostrar aquilo que ele chama de socialismo vindo da base é a ideia de se construir, republicanamente, uma nova forma de organização econômica e social. Não vejo incompatibilidade entre republicanismo e socialismo”.
Embora não tenha participado da Quarta Internacional, as posições de Singer tinham pontos de intersecção com as elaborações de Ernest Mandel, em obras como Control Obrero, Consejos Obreros, Autogestión – Antología (Era) ou Sobre la Historia del Movimiento Obrero (Fontamara), ambas editadas originalmente em francês e logo traduzidas para o espanhol, na década de 1970. Se não compartilhavam as posições sobre a exigência de um “partido de vanguarda” para levar a cabo as tarefas de uma revolução, comungavam da importância dos passos para a constituição de uma dualidade do poder, que abrisse perspectivas libertárias em face da opressão e da exploração.
Não à toa, Singer foi o reponsável por apresentar (com uma notável erudição) um clássico redigido pelo luminar belga aos leitores brasileiros, O Capitalismo Tardio, na Coleção Os Economistas da editora Abril, em 1982. “A visão da história do capitalismo, que nos oferece Mandel, é sugestiva, sobretudo quando combinada com a tese de que, no capitalismo monopolista, a caça ao superlucro substitui a procura da maximização do lucro, pressuposto que também se encontra em Marx”.
A questão da transição, do sistema capitalista para o sistema socialista, mereceu sempre cuidado por parte do velho professor, que não via com bons olhos a passagem da Crítica do Programa de Gotha (1875), de Marx, em que está mencionada a “ditadura do proletariado” cujo destino antidemocrático era a ditadura sobre o proletariado, como a história dos Gulags revelou com horror e em detalhes.
A hiperestatização, como meio para efetivar a centralização das decisões econômicas conduziu ao “fracasso”. A ditatorialização das atribuições políticas nas mãos de um “partido único”, idem. O socialismo deve se pautar pela liberdade de expressão, com igualdade de oportunidades a todas as correntes de pensamento. Por sua vez, “a legalização dos sindicatos, a regulação das cooperativas, a instituição de uma previdência pública”, precisam vir acompanhadas de fóruns de participação da cidadania nas deliberações sobre os rumos do Estado e da sociedade, na concepção singeriana.
Nada disso se acha nos manuais ou na “imaginação utópica” (Fourier, Owen, etc), criticada por Marx ao final do Manifesto de 1848. O socialismo se baseia na experiência real, ajustado de forma permanente ao nível crescente de consciência das classes trabalhadoras, em cada intervalo. Nesta perspectiva, Singer chegou a avançar a proposta de um “parlamento econômico” para democratizar as discussões sobre a esfera econômica, estendendo o processo democrático a unidades econômicas, mas le pensée unique do neoliberalismo impediu que a proposta pudesse se materializar. A conjuntura era adversária da proposição progressista. E, hoje, restringe ainda mais o acesso do povo à economia (vide a autonomização do Banco Central e o teto de gastos). O que era ruim, ficou pior.
O livro é composto de três ensaios sobre o socialismo. No primeiro, Uma utopia militante: repensando o socialismo (1998), Singer extrai da experiência fracassada do socialismo, enquanto modo de produção, que ele precisaria se desenvolver ainda sob o garrote do capitalismo, aproveitando os espaços vazios como um modo de produção subordinado. Teoricamente, o experimento socialista começaria não de uma maneira ruidosa, mas no silencioso “modo avião” não-hegemônico no interior da formação capitalista, entre complexos articulados de modos de produção. Esse seria o papel das cooperativas da “economia solidária”, junto ao precariado.
Para os céticos, com uma percepção hollywoodiana das revoluções, se não há multidão nas ruas, grito e espetáculo de cores, parece que nada digno de atenção aconteceu. Se não surge no radar das mudanças os sinais visíveis ou audíveis, parece que nada existiu. Condicionados pelo cinema, com o espírito desconectado, apenas os sentidos parecem servir de medida das coisas. Parafraseando, no entanto, os versos de T. S. Eliot, no poema Os Homens Ocos (1925): “Assim expira o mundo / Não com uma explosão, mas com um suspiro”. A economia solidária é o modo avião da transformação.
Levantamentos entre 2003 e 2007, por exemplo, indicaram cerca de 22 mil empreendimentos solidários no país, que envolveram perto de 1,7 milhão de batalhadores. No censo, entre 2009 e 2013, registraram-se 20 empreendimentos, com 1,4 milhão de aderentes ao programa. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) reputou pequena a queda, à luz da forte diminuição do desemprego, no período. Em média, os empreendimentos tinham 70 associados e faturamento mensal de R$ 28 mil. 605 não chegavam a R$ 5 mil. O setor englobava 2% da força de trabalho. O efeito demonstrativo em uma crise revolucionária, com poder dual, teria sentido pedagógico.
André cita um expoente do Partido Vermelho, do Nordic Socialism (2021), para respaldar no plano internacional o pertinente legado intelecto-militante do pai, Paul, com razão. Na Dinamarca, o setor público e cooperativo que abrange a segunda maior rede nórdica de supermercados, qual amostras bem sucedidas dos experimentos socialistas, é uma evidência que incomoda os adeptos do livre mercado – legitimados graças às manipulações das mídias corporativas. “Singer está em linha com certo debate internacional, como aliás atesta a inclusão, post-mortem, de artigo seu na coletânea Reflections on Socialism in the Twenty-First Century, organizada pelo sueco Claes Brundenius”.
O segundo ensaio, Sobre o que é socialismo, hoje? (1979), escrito em um tempo midiático que glorificava os nouveaux philosophes franceses (Alain Finkielkraut, Bernard-Henri Lévy, André Glusksmann), os quais abjuraram a militância maoista / trotskista da juventude, que se exprimira no Maio de 1968, e passaram a torpedear os fundamentos do marxismo. O totalitarismo do “socialismo realmente existente” estaria contido em embrião na própria “Filosofia da Práxis”, pregavam, evocando a imagem da Madalena Arrependida no quadro do pintor barroco, de Caravaggio. Singer, ao invés de colocar alhos e bugalhos no mesmo saco, pergunta de que socialismo se está falando.
O tipo de sociedade que queremos no futuro importa e influencia o rumo de nossas lutas, no presente. Táticas e estratégias imbricam os meios e os fins, ética e politicamente. O padrão para a tomada do poder pode não ser o padrão necessário para alcançar o socialismo democrático. “A conquista do poder não levou ao socialismo”, argumenta. “Os socialistas têm hoje a obrigação de se posicionar claramente diante dos ‘socialismos realmente existentes’ e de definir com muita precisão o que entendem por uma alternativa superior não só em relação ao capitalismo existente, mas tanmbém diante das potencialidades de sua evolução”, desafia. Como um exímio espadachim da utopia, Singer põe na defensiva em simultâneo o socialismo autoritário e o reformismo.
O último ensaio versa sobre a Economia Socialista (2000). Fruto dos Seminários: Socialismo e Democracia, promovidos pelo Instituto Cidadania em parceria com a FPA e a Secretaria Nacional de Formação do PT. O texto é apresentado por Luiz Inácio Lula da Silva, prefaciado por Antonio Candido e comentado por João Machado. Lula explicita o objetivo dos encontros: “Despertar a criatividade e reanimar o ímpeto de uma esquerda que, mesmo representando o que há de mais promissor em nossa terra, nunca está imune aos vícios do acomodamento e ao apego à rotina”.
Candido é assertivo: “Sabemos que o pragmatismo das ações políticas deve ser equilibrado pela referência constante aos princípios teóricos, que para nós se encarnam na palavra socialismo. Sabemos também que no momento há muita hesitação e muita dúvida a respeito do socialismo. O socialismo é algo mais vasto que suas manifestações históricas e continua a ser o caminho mais adequado às lutas sociais que tenham como finalidade estabelecer o máximo possível de igualdade econômica, social, educacional como requisito para a conquista da liberdade de todos e cada um. O socialismo é conceito e realidade válidos e legítimos, tornando necessário estudá-lo, debatê-lo, ajustá-lo ao tempo. Só assim um partido como o PT evitará o risco de perder sua bússola ideológica na dispersão das necessárias operações táticas. A referência à reflexão e ao debate é indispensável”.
João Machado corrobora a importância dos encontros para irrigar as organizações de esquerda e a oportunidade de debater com Paul Singer, “quem mais tem se empenhado para renovar essa discussão, para manter a questão do socialismo sempre atual”, reconhece. Machado enfatiza que “o problema hoje não está num apego a ideias socialistas do passado, está na aceitação pouco crítica das ideias antissocialistas do presente”, dispara. A seguir, defende que a centralização do planejamento poderia ocorrer até em escala internacional, com poucas orientações centralizadas: relativas ao esgotamento de recursos naturais não renováveis e a destinação de recursos para a pesquisa científica, sem segredos comerciais, nem direitos privatizados de propriedade intectual. Porém, a maioria das decisões políticas poderiam ser descentralizadas. Igual, em escala nacional.
Talvez não seja viável prospectar mercados integrados em uma economia socialista consolidada, pela natureza mercantilista dos mercados que agem como o escorpião na anedota da rã que lhe serve de balsa na travessia do rio. Mas como esse é um cenário longínquo, no ínterim, os “implantes socialistas” teorizados por Singer em uma economia – ainda captalista – cumprem importante função de aprendizado autogestionário, aos moldes da seguridade social no Pós-Segunda Guerra, das cooperativas da economia solidária e do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), bem como do Orçamento Participativo (OP). Eis ilustrações do que sejam os implantes socialistas.
A Cooperativa de Trabalho, Produção e Comercialização dos Trabalhadores Autônomos das Vilas de Porto Alegre (Cootravipa), foi uma das pioneiras da coleta seletiva em uma metrópole, no país. Organizou-se e manteve-se de pé, cercada pela racionalidade neoliberal que desde 1980 prevalece na economia e na sociedade, lutando pela sobrevivência há quase 40 anos. Reúne 2.500 sócios em defesa do cooperativismo e daquelas / daqueles discriminados no mercado formal de trabalho. Leonardo Boff refere-se a tais indivíduos como “os novos profetas”, na acepção bíblica, por sinalizarem caminhos alternativos ao desperdício anti-ecológico. “Somos a união que deu certo”, comemora a presidenta da associação. A semente do socialismo pela base se enraíza. “Cooperativas operárias podem realizar em alto grau todas as condições para a desalienação do socialismo no plano da produção”, escreve Singer. Ali se desenvolve o novo habitus socialista nos trabalhadores.
Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul.
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