Da Carta Maior
Criação, encerramento e falência de empresas constituem um processo dinâmico e intrínseco ao capitalismo. Particularmente as empresas de maior porte, ao encerrar as atividades, geram perdas significativas para agentes econômicos e, dependendo de sua abrangência, alteram até a dinâmica de uma localidade. Perdem-se, também, conhecimentos acumulados, competências desenvolvidas e, normalmente, ocorre o desmonte da estrutura produtiva com a venda de ativos para o pagamento de credores, inviabilizando a possibilidade de retomada das atividades.
O Direito Falimentar brasileiro disponibiliza instrumentos que visam minimizar os danos e preservar as atividades empresariais, recuperar o empreendimento, salvaguardar interesses de credores e maximizar o valor dos ativos. Para tanto, o instrumento de recuperação judicial abre a possibilidade aos trabalhadores, enquanto credores, de buscar alternativas para o encaminhamento da situação.
Nesses casos destaca-se a possibilidade da organização coletiva dos trabalhadores em um empreendimento de autogestão (cooperativa), como forma de viabilizar o arrendamento da massa falida para o grupo constituído e a continuidade das atividades produtivas. Essa solução, entretanto, não automática nem regulamentada, resulta, na maioria das vezes, de um processo de luta encampado pelos trabalhadores, apoiados pelos respectivos sindicatos.
Esse processo, muitas vezes longo e penoso, é assumido, em geral, pelos trabalhadores mais antigos, com menores chances de recolocação no mercado e que atuam no chão de fábrica. Ainda assim, em cada caso, o grau de dificuldade enfrentado dependerá, em última instância, de decisões da Justiça do Trabalho.
Essas experiências foram mais significativas no Brasil na década de 1990, em uma época em que os postos de trabalho escasseavam em todo o mundo e vaticinava-se a drástica e progressiva redução do emprego formal. No país, a mudança cambial e a abertura comercial agravaram a situação. O movimento sindical brasileiro, que nessa ocasião teve contato com a autogestão e o cooperativismo internacional, incorporou essa bandeira à sua luta, com a perspectiva de preservar os postos de trabalho e a renda dos empregados das empresas falidas.
Acreditando na importância econômica e social da manutenção do emprego e da renda – função social da empresa – e considerando um desperdício permitir que empresas com potencial produtivo encerrem suas atividades, Thiago Figueiredo Fonseca Ribeiro, elaborou dissertação de mestrado em que discute a viabilidade atual da autogestão dos trabalhadores como alternativa para a recuperação de empresas falidas ou em processo falimentar no Brasil. O trabalho foi apresentado ao Instituto de Economia (IE) da Unicamp, orientado pelo professor Rodrigo Lanna Franco da Silveira.
Pontos de partida
Do ponto de vista microeconômico são analisadas as experiências de recuperação de empresas em processo de autogestão dos trabalhadores e verificada sua viabilidade. No sentido mais amplo, das políticas públicas, o autor procura entender como outras experiências de autogestão dos anos 1990 desaguaram no movimento da Economia Solidária e culminaram, em 2003, na criação da Secretaria Nacional de Economia Solidaria (SENAES), ligada ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que concentrou a maioria das ações públicas relativas ao tema. Explicita as características e funções do órgão, explica os óbices que impediram avanços na construção de uma política mais efetiva e analisa sua contribuição para a recuperação de empresas autogestionárias.
Baseado em duas experiências empíricas, o autor procura responder a duas perguntas básicas: a recuperação de empresas industriais falimentares, através da organização do trabalho e dos trabalhadores de forma coletiva e autogestionária (cooperativas), constitui-se em uma alternativa economicamente viável? Em sendo positiva essa resposta, quais as possibilidades de se reproduzir as experiências estudadas para a recuperação de outras empresas nos dias atuais?
Para responder a estes questionamentos, ele estudou a evolução das políticas públicas na construção das possíveis bases de sustentação para essas iniciativas (apoio técnico, capacitação, marco legal e financiamento) e se concentrou em duas experiências em andamento. Uma na Unipol (Cooperativa da Indústria de Polímeros de Joinville), em Santa Catarina, e a outra na Metalcoop (Cooperativa de Produção Industrial de Trabalhadores em Conformação de Metais), localizada em Salto, interior de São Paulo.
Constatações
Thiago chega a duas conclusões importantes. Se por um lado, do ponto de vista econômico, essa forma de organização é capaz de recuperar parte das empresas em falência, por outro lado, não se conseguiu avançar no país, na última década, nos aspectos que envolvem suas bases de sustentação. Em decorrência disso e ainda do fato de hoje se desenvolver um novo ciclo econômico, com aumento de postos de trabalho e de salários, a força política dos defensores dos modelos alternativos se reduziu.
Para ele, perdeu-se o bonde da história e a oportunidade de avançar no estímulo de iniciativas dessa natureza no Brasil. As taxas de sucesso relativamente baixas dessas experiências decorrem das deficiências estruturais oriundas de processos pelas quais passaram essas empresas ao serem recuperadas, agravadas pela ausência de leis e financiamentos, de apoio técnico e de competência em seus quadros. E constata: “Com poucos casos bem-sucedidos em andamento e em vista do atual ciclo virtuoso de nossa economia nos últimos anos, o que se verifica atualmente é um quadro de abandono dessas poucas experiências pelo setor público e uma grande morosidade no trâmite de uma legislação condizente com a realidade desses empreendimentos”.
Os estudos de caso, segundo o pesquisador, o credenciam a afirmar que os trabalhadores são capazes de assumir os novos papeis e que o processo é viável: “Embora olhados com descrença e sem apoio, os trabalhadores correm atrás do que precisam, aprendem, estudam e dão conta da gestão. Um dos presidentes de uma das cooperativas era estoquista, hoje tem MBA, senta-se à mesa com o BNDES. Tive oportunidade de observar transformações realmente fenomenais e emocionantes dentro do grupo dirigente”. Ele conta que na mesma empresa os diretores realizam há onze anos uma gestão eficiente. Pagaram praticamente todo o passivo dos trabalhadores que não permaneceram na cooperativa e compraram a massa falida com fundo do BNDES, tornando-se assim, efetivamente, autogestores, já que isso pressupõe, simultaneamente, a participação nos processos decisórios e à propriedade dos meios de produção.
Os insucessos acompanham os empreendimentos que começam mal financeiramente e, em decorrência, não conseguem se recuperar. Ele defende então uma boa análise financeira inicial, oferta de linhas de crédito, apoio técnico em termos de gestão, criação de legislação coerente, aspectos que poderiam ter sido encaminhados pela SENAES, que encampou as políticas públicas de Economia Solidária e a quem também estava afeta a recuperação de empresas.
A Secretaria iniciou um trabalho de diagnóstico, de legislação, mas avançou pouco. No atual governo o ciclo negativo da economia se transformou em positivo, passou-se do desemprego estrutural ao pleno emprego e a Economia Solidária, que foi criada para pensar alternativas do modelo capitalista tradicional, perdeu força. O modelo, que nasceu como resposta a uma crise e envolve um processo duro, demorado, cansativo, estressante se exaure, porque não conta com apoio público, não tem financiamento, não tem apoio técnico. O autor comenta com tristeza: “A Economia Solidária volta à pauta na próxima crise de emprego com tudo a construir”.
Dilemas
Para Thiago Ribeiro, mesmo com a maioria das variáveis examinadas conspirando contra as possibilidades de sucesso das iniciativas de recuperação de empresas pela autogestão dos trabalhadores, as experiências estudadas surpreendem pelos resultados alcançados e pela capacidade de organização e gestão dos trabalhadores envolvidos. “A manutenção dos postos de trabalho e a significativa contribuição para o pagamento do passivo trabalhista das antigas empresas, garantidos pelo arrendamento dos meios de produção, constituem fatores que justificam o investimento de tempo e energia dedicados a essas experiências e demonstram tratar-se de uma possibilidade concreta para o encaminhamento de crises e recuperação de empresas falimentares”, enfatiza ele.
Embora o processo se mostre viável em casos particulares, atualmente apresenta grande risco e exige enormes sacrifícios dos envolvidos, não configurando alternativa com possibilidades de reprodução em termos de políticas públicas.
O pesquisador considera que o dilema está em conseguir com a autogestão maior produtividade, eficiência, segurança e felicidade do que na empresa capitalista convencional: “Essa é a luta, mesmo porque o mercado comprador continua o mesmo. Pode haver um nicho de pessoas que se disponha a pagar um pouco mais por um produto de uma empresa autogestionada, mas em geral o consumidor quer padrão e qualidade por preço menor.”
Para o pesquisador, as empresas estudadas são tão boas ou melhores que as concorrentes e por isso sobrevivem. Para ele “a Economia Solidária não está criando um novo mundo, não está fazendo uma revolução operária. Está propiciando a criação de um ambiente mais saudável, mais democrático, com melhores condições de evolução pessoal”.
O estudo o leva a uma crítica ao fazer político no Brasil, que não constrói: “Criamos uma Secretaria que não deu respostas aos problemas enfrentados pela Economia Solidária e que se extinta não vai deixar praticamente nenhum legado”. Considera, por sua vez, que o movimento popular também precisa realizar uma autocrítica.
Na sua visão, as empresas em recuperação não deveriam estar no mesmo arcabouço da Economia Solidária porque, face ao menor número, não têm expressão política nem condições de influir em negociações. E conclui: “Cerca de 500 empresas em recuperação não conseguem conversar com outras vinte mil que constituem o grupo, com a agravante de que estas se dividem em grupos com interesses bem diversos, do que resulta enfraquecimento do movimento”.
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