1) Sobre o caráter do governo Lula
Se imediatamente após a posse de Lula cabiam dúvidas sobre qual seria o caráter de seu governo, hoje este caráter está muito claro.
É fato que o governo está atravessado por muitas contradições, e vive muitos conflitos internos, alguns deles muito importantes (por exemplo, com relação às negociações da ALCA, com relação ao cumprimento da promessa de reforma agrária). Mas há uma orientação geral expressa claramente na política econômica e na política de alianças — e as características conservadoras de ambas têm sido amplamente reforçadas. O governo Lula tem uma orientação geral neoliberal, ou social-liberal, levando em conta que aplica uma política neoliberal apoiando-se sobretudo num partido de tradição socialista. É um governo de colaboração de classes, que subordina os interesses populares a uma aliança privilegiada com a burguesia, tanto brasileira quanto imperialista.
Ainda que os setores críticos à ALCA no interior do governo venham a impedir sua implementação (embora o que estejam encaminhando seja a proposta dita da “ALCA Light”, e não a sua rejeição), e os setores favoráveis à reforma agrária consigam efetivar o PNRA previsto (que está muito aquém do que era reivindicado pelos movimentos agrários), a orientação geral da política econômica não será alterada. Tampouco isto seria suficiente para reverter o caráter de subordinação dos interesses populares à ampla aliança realizada com setores burgueses.
Os conflitos no interior do núcleo do governo não questionam a política econômica neoliberal, e nem as alianças amplas com todos os setores burgueses, que levam à garantia por parte do governo de seus interesses básicos. O núcleo do governo é muito mais identificado com os ministros mais conservadores e burgueses (Palocci — ele próprio membro do núcleo de governo — e sua equipe, Rodrigues, Furlan) do que com ministros como Miguel Rosseto ou Marina Silva. Estes têm um papel claramente limitado e subordinado, e foram escolhidos (e são mantidos) como concessão à base social tradicional do PT, para evitar que ela vá toda para a oposição. Sua permanência no governo tem cumprido o papel de legitimar diante de setores da população a orientação conservadora geral do governo; tem contribuído para a política geral do governo de desmobilizar e cooptar os movimentos sociais.
Em geral, costuma-se avaliar que o Itamaraty é o ministério que mais se aproxima da linha defendida pelo PT na campanha, e que mais se diferencia da linha do governo F. H. Cardoso. Entretanto, não podemos deixar de registrar, em contraposição, que ele está encaminhando uma ação conservadora, de colaboração com o EUA, inaceitável, que é a participação na ocupação militar do Haiti.
A rigor, o governo não tem uma oposição pela direita, porque coloca em prática, no fundamental, o programa da direita. De fato, as iniciativas políticas centrais do governo Lula continuam e aprofundam projetos anteriores do governo de F.H.Cardoso, seguem o modelo do FMI e do Banco Mundial, e são desenhadas principalmente para agradar aos mercados financeiros.
Fábio Konder Comparato chamou a atenção (em artigo na Folha de S. Paulo e em entrevista ao jornalista Elio Gaspari) para a “ruína moral” do governo Lula. Não há dúvida de que tem razão. O problema não é tanto o que tem vindo à tona com as diversas informações sobre má conduta de membros do governo, ou de gente associada ao PT com trânsito no governo, a partir do chamado “escândalo Waldomiro”. O que tem vindo à tona, naturalmente, vai muito além da revelação do caráter corrupto deste ex-amigo íntimo e assessor do ministro Dirceu — de fato, diz respeito aos métodos com que o governo constrói sua maioria parlamentar, e à natureza desta maioria. Mas o problema maior é o terrível estelionato eleitoral que está sendo praticado por Lula e pelo governo (com apoio integral da direção do “campo majoritário” do PT) — e junto com isso a traição ao programa histórico do PT e aos interesses dos trabalhadores e do povo. Ou seja, é a mudança de lado na luta de classes de Lula e dos que definem junto com ele a política do governo.
2) Sobre o PT hoje
Desde os primeiros anos da década de 1990 o PT vem passando por um processo de afastamento de algumas das características mais importantes que tinha no início: transformou-se crescentemente em um partido institucional, que gira quase que completamente em torno das disputas eleitorais, e veio perdendo progressivamente o caráter de partido militante. Além disso, parte de sua direção vem demonstrando desde então seu distanciamento da perspectiva socialista.
No entanto, durante todos estes anos existiu uma disputa de rumos no partido. Grande parte dos lutadores sociais que formam a base do partido continuaram identificados com o socialismo. Nas direções do PT, os setores de esquerda sempre lutaram contra este processo de involução.
Com a campanha eleitoral de 2002, e sobretudo a partir do início do governo Lula, entretanto, ao mesmo tempo em que os espaços de democracia interna foram drasticamente reduzidos, a descaracterização do PT enquanto partido socialista deu um grande salto (o que é atestado pela filiação ao partido de personalidades claramente de direita, sem nenhum vínculo com qualquer tradição progressista), e tornou-se irreversível.
Todo o encaminhamento da reforma da Previdência (e de outras questões), em claro desrespeito às decisões dos Encontros do partido, bem como a imposição às bancadas do PT do caráter de correia de transmissão das decisões do núcleo de governo e a expulsão dos parlamentares rebeldes, são exemplo disso.
O PT tem dado apoio incondicional a um governo social-liberal.
É certo que o próximo Encontro Nacional do partido estará inchado, tanto pelos novos filiados de direita, quanto pela manipulação de muitos filiados a partir do governo; ele não será democrático. Mesmo ainda tendo muitos lutadores sociais, socialistas sinceros, nas suas fileiras, não há possibilidade de o PT se constituir num instrumento de luta capaz de corrigir os rumos do governo.
3) Sobre a impossibilidade de mudança da natureza de classe do governo Lula
Os conflitos no interior do governo, pela sua natureza mostrada até agora, e dada a correlação de forças, não têm possibilidade de levar a uma mudança fundamental de orientação. Tampouco o PT, dados o processo de transformação por que já passou e por que está passando, e a correlação de forças no seu interior, pode ser um instrumento de luta pela mudança da orientação geral do governo.
O movimento social tem pressionado, e tende aumentar a pressão. Mas não tem mostrado capacidade de influir de maneira decisiva nos rumos do governo. O governo tem sido capaz de cooptar uma parte dos movimentos sociais e de neutralizar outros setores. A CUT, que talvez seja a entidade com maior influência no conjunto do movimento, tem feito críticas a determinados aspectos da política do governo; mas tem predominado na sua direção (e a partir daí na prática da Central) um comportamento de colaboração com o governo, muito mais do que de luta intransigente em defesa dos interesses dos trabalhadores.
Apenas um crescimento explosivo da insatisfação, e a eclosão de uma crise grave, poderiam levar a uma mudança. Mas aí já seria um processo contra o governo Lula, e contra a direção do PT.
4) A necessidade para a esquerda socialista de não participar do governo Lula
O governo Lula aplica no geral uma orientação neoliberal. Não há possibilidades de mudar qualitativamente esta situação a partir das contradições internas do governo, ou da pressão do PT, ou da pressão dos movimentos sociais (a não ser que esta última dê um salto de qualidade e se transforme em mobilização massiva contra o governo).
Além disso, o governo Lula tem sempre pedido paciência à população e vem tentando desinformá-la e manipulá-la, através das técnicas mais desonestas de propaganda, da sua influência sobre as redes de TV e sobre a grande imprensa, etc. Aposta, portanto, na desmobilização. É um governo que se caracteriza como adversário dos trabalhadores e dos movimentos populares.
A participação no governo Lula se contrapõe de forma cada vez mais antagônica à defesa dos interesses populares e do socialismo. A esquerda socialista do PT (e de outros partidos) está posta diante da necessidade cada vez mais premente de romper com este governo. Os ministros que quiserem manter com coerência sua condição de militantes de esquerda, de socialistas, devem deixar o governo.
5) Sobre a necessidade de construir uma alternativa
A única alternativa à esquerda do PT existente hoje — o PSTU — não tem capacidade política de se contrapor ao PT, e de se transformar numa referência forte para os militantes que vem se desiludindo com o governo Lula.
É, portanto, necessário construir uma nova ferramenta política que recupere a perspectiva militante e socialista que o PT abandonou; que possa ser vista como uma alternativa pelos militantes e pelos setores sociais que se desiludem com o PT (e com os outros partidos de esquerda que apóiam o governo Lula). Ou seja, um partido com a vocação de unificar toda a esquerda socialista. Caso contrário, o acúmulo que a construção do PT representou por mais de vinte anos (desde a sua fundação até as eleições de 2002, ainda que tivesse problemas crescentes nos últimos anos) será perdido.
Este partido não poderá apenas tentar repetir o PT dos primeiros anos. Esta deverá ser uma referência central; será importante disputar a herança do PT. Mas será necessário fazer um balanço da trajetória do PT, avaliar o que deu errado, identificar os erros que foram cometidos. Queremos aprender com os erros do PT, tanto como com os acertos de sua história, e ir além.
Será preciso levar em conta o que mudou no mundo e no Brasil. A partir daí, retomar a atualidade do socialismo. Deverá merecer especial destaque a incorporação do novo internacionalismo que vem se desenvolvendo na luta contra a globalização neoliberal.
Há um prazo que deve ser levado em conta para a construção desta alternativa: as eleições de 2006. Ainda que um partido socialista não deva centrar sua atividade em disputas eleitorais, não pode abandoná-las. Ora, o caráter do governo Lula, e os encaminhamentos já em curso para a campanha eleitoral de 2006 (especialmente a aliança do PT com o PMDB e com quase todos os partidos de direita), indicam que a esquerda socialista não poderá, de maneira alguma, apoiar a candidatura Lula novamente. É fundamental a esquerda socialista participar das eleições de 2006, para denunciar a traição do governo Lula aos interesses populares, e para demonstrar que existe alternativa ao neoliberalismo e ao sistema capitalista. Nossa participação na campanha eleitoral deve ser coerente com nossa defesa do socialismo como alternativa política e nossa crença em uma sociedade socialmente igual, humanamente diferente e totalmente livre. É necessário, portanto, criar as condições para apresentar uma candidatura própria.
Por todas estas razões, estamos participando da construção de um novo partido socialista no Brasil, através do movimento Esquerda Socialista e Democrática, lançado com o documento intitulado Por Uma Esquerda Socialista e Democrática no dia 19 de janeiro. Por meio deste movimento, respeitando as mais diversas experiências e trajetórias presentes no seu interior, lutamos pela construção de um partido democrático e militante, mas acima de tudo classista, anticapitalista, antiimperialista, socialista e internacionalista, constituído por todos os setores da classe trabalhadora. Por um partido que assuma a luta pela libertação das mulheres, o combate a todas as formas de discriminação racial, o fim da opressão aos GLBTs e a luta por um meio ambiente realmente sustentável (impossível no contexto capitalista) como pilares sem os quais não conseguiremos nos opor à dinâmica do sistema.
A esquerda socialista e democrática tem em nosso país o desafio de construir um novo partido político que rejeite a construção política comum com a burguesia e enfrente não somente as políticas neoliberais, mas que questione a legitimidade do regime capitalista; que defenda as mobilizações sociais e a auto-organização democrática dos trabalhadores.
6) Somos militantes da DS e da IV Internacional
As resoluções da VII Conferência Nacional da DS, realizada em novembro, tiveram limites, uma vez que foi feita uma opção geral por restringir o alcance das discussões, buscando o maior acordo possível. Apesar destes limites, no entanto, a conferência realizou um balanço muito crítico dos 11 primeiros meses do governo Lula e da situação do PT no fim de 2003. Apontamos então que a orientação econômica do governo Lula é conservadora e neoliberal, e que ela condiciona toda a atividade do governo; e que a política de alianças estratégicas com partidos burgueses, bem como a entrada no próprio PT de personalidades incompatíveis com um partido de esquerda, vinham descaracterizando o PT como partido socialista e ameaçando gravemente todo o seu projeto histórico. Salientamos ainda a redução drástica dos espaços democráticos no PT, e sua transformação em correia de transmissão das decisões do governo, e em particular das decisões mais impopulares.
Nos meses que se seguiram à conferência todas as características negativas do governo e do PT se agravaram.
Em primeiro lugar, foi efetivada a anunciada expulsão de parlamentares rebeldes, contra a qual lutamos, e que caracterizamos na Conferência como completamente inaceitável. Isto apesar de um amplo movimento de solidariedade aos parlamentares ameaçados, desenvolvido no Brasil e internacionalmente — neste caso, o movimento foi impulsionado por companheiros e companheiras da IV Internacional.
Em segundo lugar, consolidou-se a aliança conservadora com partidos burgueses, inclusive com a indicação de uma aliança para a disputa eleitoral de 2006, com o PMDB no cargo de vice-presidente.
Em terceiro lugar, consolidou-se e reforçou-se ainda mais a política econômica conservadora e neoliberal, elogiada e citada como exemplo por Anne Krueger, representante da linha mais dura do FMI e do governo Bush, dentre muitos outros porta-vozes da direita mais reacionária. Esta consolidação conservadora está se traduzindo agora num novo e brutal contingenciamento dos recursos orçamentários. Suas conseqüências antipopulares estão se tornando ainda mais evidentes nos primeiros meses de 2004.
Em quarto lugar, a partir do “escândalo Waldomiro”, os métodos de fazer política, de aglutinar maiorias parlamentares, através do uso de dinheiro ou de outras vantagens, de barganhas e atendimento de interesses distintos do interesse público, ficaram muito mais expostos.
Diante da expulsão de uma companheira da DS, Heloisa Helena, um conjunto de militantes da DS se desfiliou do PT. Posteriormente, participaram juntamente com a companheira do lançamento do movimento por um novo partido político.
Entendemos que, na situação atual, a decisão de participar de um movimento por um novo partido não coloca os que a tomam fora dos marcos programáticos da DS e da IV Internacional. Pelo contrário: esta participação é perfeitamente coerente com estes marcos.
Temos uma tática de construção distinta da que está sendo adotada pela maioria dos companheiros da DS. Esta situação de distintas táticas de construção não é em geral desejável; é uma situação excepcional na nossa história. Mas, diante das brutais transformações do quadro da luta de classes no Brasil, e especialmente da mudança de lado nesta luta decidida pela direção do PT, que tem se colocado a serviço de interesses do capital financeiro, fomos obrigados a isto. Os militantes da DS que participam do movimento por um novo partido não podem atender ao apelo para se refiliarem ao PT, votado pela maioria da direção da DS.
A VII Conferência Nacional da DS não decidiu começar um movimento por um novo partido. No entanto, ela apontou a necessidade de reforçar a luta contra as orientações neoliberais do governo Lula e da maioria da direção do PT. Acreditamos que, dada a aceleração dos acontecimentos que a expulsão de companheiros e companheiras do PT provocou, e dado o endurecimento conservador das posições do governo Lula, nossa posição pode ser entendida como um desdobramento legítimo das resoluções da Conferência.
7) Para os companheiros que continuam a luta no interior do PT.
Não podemos deixar de observar que a maioria da direção da DS tem estado na contramão da disputa de rumos que foi decidida na conferência. A posição que ela assumiu no episódio do “escândalo Waldomiro”, de defesa das posições do governo e da direção do PT, opondo-se à instalação de uma CPI, e mesmo de uma comissão parlamentar de acompanhamento das investigações; e o fato de não ter apoiado o seminário Queremos um Outro Brasil, são incompreensíveis.
De fato, a maioria da direção da DS não tem encaminhado uma disputa de rumos do PT e do governo de acordo com o que foi decidido na nossa VII Conferência. Mais do que uma luta clara contra as posições do “campo majoritário” do PT, tal como as resoluções da conferência definiam, está prevalecendo uma postura de colaboração com o conjunto da direção do PT, isto é, com o “campo majoritário”.
Esta postura da maioria da direção da DS coloca em sério risco nossa tendência. Se pelo menos desde a expulsão da companheira Heloísa Helena do PT a DS já convivia com grandes tensões internas, a nova posição assumida pela maioria da direção da nossa corrente leva à ameaça de que ela viva o processo de dilaceramento que vem desagregando outras correntes da esquerda do PT.
Somos favoráveis à convergência entre a esquerda socialista do PT e o movimento da Esquerda Socialista e Democrática. Lutaremos para garantir relações fraternais entre estes dois setores em que se divide hoje a maior parte da esquerda socialista brasileira — especialmente entre os militantes da DS que estão de um lado e do outro.
Assinam: Ana Sílvia Laurindo da Cruz, Anderson Mancuso, Bruno Velasco, Carlos Alberto Almeida, Daniel Velasco, Francisco Conte, Heloísa Helena, João Machado, Luciana Sá, Luciano da Silva Barbosa, Luiz Belmiro Teixeira, Luiz Felipe, Mário Agra, Nilo Aragão, Pérola Engelaum, Reginaldo Costa.
Comente com o Facebook