Por Leonardo Avritzer | publicado em Carta Capital
A presidente Dilma Rousseff assinou, no último dia 21, um decreto que institui a Política Nacional de Participação Social. De acordo com o decreto “fica instituída” a política, “com o objetivo de fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil”.
Com este objetivo o governo reforçou institucionalmente uma política que vem desde 2003, quando, ainda em 1º de janeiro, o ex-presidente Lula assinou a medida provisória 103, na qual atribui à Secretaria Geral da Presidência o papel de “articulação com as entidades da sociedade civil e na criação e implementação de instrumentos de consulta e participação popular de interesse do Poder Executivo na elaboração da agenda futura do Presidente da República…”
A partir daí, uma série de formas de participação foram introduzidas pelo governo federal, que dobrou o número de conselhos nacionais existentes no país de 31 para mais de 60, e que realizou em torno de 110 conferências nacionais (74 entre 2003 e 2010 e em torno de 40 desde 2011). Assim, o decreto que instituiu a política nacional de participação teve como objetivo institucionalizar uma política que já existe e é considerada exitosa pelos atores da sociedade civil.
Imediatamente após a assinatura do decreto iniciou-se uma reação a ele capitaneado por um grande jornal de São Paulo que, em sua seção de opinião, escreveu o seguinte: “A presidente Dilma Rousseff quer modificar o sistema brasileiro de governo. Desistiu da Assembleia Constituinte para a reforma política – ideia nascida de supetão ante as manifestações de junho passado e que felizmente nem chegou a sair do casulo – e agora tenta por decreto mudar a ordem constitucional. O Decreto 8.243, de 23 de maio de 2014, que cria a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS), é um conjunto de barbaridades jurídicas, ainda que possa soar, numa leitura desatenta, como uma resposta aos difusos anseios das ruas.”
Assim, segundo o jornal paulista, o Brasil tem um sistema que é representativo e este foi mudado por decreto pela presidente. Nada mais distante da realidade.
Em primeiro lugar, o editorialista parece não conhecer a Constituição de 1988, que diz no parágrafo único do artigo primeiro: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Ou seja, o legislador constituinte brasileiro definiu o país como um sistema misto entre a representação e a participação. Se é verdade que as formas de representação foram muito mais fortemente institucionalizadas entre 1988 e hoje, isso não significa que temos no Brasil um sistema representativo puro, tal como ele existe em um país como a França. Pelo contrário, a verdade é que o espírito da Constituição fica muito melhor representado a partir do decreto 8243, que institucionaliza uma nova forma de articulação entre representação e participação de acordo com a qual a sociedade civil pode sim participar na elaboração e gestão das políticas públicas. Mas, ainda mais importante do que restaurar a “verdade constitucional” é se perguntar qual sentido faz instituir um sistema de participação?
A resposta a esta pergunta é simples e singela. A temporalidade da representação está em crise em todos os países do mundo. Por temporalidade, deve se entender a ideia de que a eleição legitima a política dos governos durante um período extenso de tempo, em geral de quatro anos. Hoje vemos, no mundo inteiro, pensando em Obama nos Estados Unidos e Hollande na França, uma enorme mudança na maneira como a opinião pública vê os governos.
Temos um novo fenômeno que o filósofo francês Pierre Rosavallon classifica da seguinte maneira: a legitimidade das eleições não é capaz por si só de dar legitimidade contínua aos governos. Duas instituições estão fortemente em crise, os partidos e a ideia de governo de maioria. É sabido que a identificação com os partidos cai em todo o mundo, até mesmo nos países escandinavos onde ela era mais alta. É isso o que justifica a entrada da sociedade civil na política, não qualquer impulso bolivariano, tal como alguns comentaristas pouco informados estão afirmando.
A sociedade civil traz para a política um sistema de representação de interesses que os partidos não são mais capazes de exercer devido a sua adaptação a um sistema privado de representação de interesses e financiamento com o qual a sociedade não se identifica. O mais curioso é que ninguém mais do que os órgãos da grande imprensa adotam o exercício de mostrar como o poder da maioria pela via da representação não é capaz de legitimar o governo. Lembremos alguns exemplos recentes: a rejeição da nomeação do deputado Marco Feliciano (PSC-SP) para a Comissão de Direitos Humanos da Câmara ou o apoio às manifestações populares pelo Movimento Passe Livre em junho de 2013. Em todas estas questões o que esteve em jogo foi a capacidade da sociedade civil de apontar uma agenda para o governo. O que o Sistema Nacional de Participação faz é institucionalizar esta agenda reconhecendo que existe uma representação exercida pela sociedade civil.
Vale a pena desenvolver um pouco mais este ponto. A representação é uma autorização dada por uma pessoa para alguém atuar em nome dela. Este é o fundamento do seu exercício que existe em todos os países. Mas existe uma questão adicional que reside no fato da representação das pessoas se dar através de uma autorização ampla que não consegue alcançar temas que não são majoritários ou que têm uma agenda mais volúvel. Assim, o sistema representativo é sempre ruim para representar questões tais como direito das minorias ou temas importantes como o meio ambiente ou até mesmo políticas públicas como a de saúde. Exemplos sobre a incapacidade do Congresso Nacional de agir nestas áreas abundam no Brasil. Lembremos a incapacidade de votar a união homoafetiva, a ação afirmativa, de aprovar o Código Florestal, todas legislações com fortíssimo apoio na sociedade, mas que não conseguiram tramitar no Congresso devido a lobbies muito fortes. No caso da união homoafetiva e da ação afirmativa sua legalidade acabou sendo determinada pelo Supremo Tribunal Federal. No caso do Código Florestal este contou com um veto da presidente e mais uma medida provisória bastante polêmica no interior do Congresso. Todos estes episódios mostram que há uma incapacidade do legislativo de se conectar com a sociedade, devido à maneira como o sistema de representação opera no país. Em geral tem cabido ao Supremo preencher esta lacuna, mas o mais democrático e o mais adequado é um envolvimento maior da sociedade civil nestes temas por via de instituições híbridas que conectem o executivo e a sociedade civil ou a representação e a participação.
Este modelo, que está longe de ser bolivariano, está presente, na verdade, nas principais democracias do mundo. Os Estados Unidos tem o modelo de participação da sociedade civil no meio ambiente por meio dos chamados “Habitat Conservation Plannings”. A França tem o modelo de participação da sociedade civil nas políticas urbanas através de contratos de gestão nos chamados “Quartier Difficile”. A Espanha tem a participação da sociedade civil no meio ambiente através de “juris cidadãos”. A Inglaterra instituiu mini-públicos com participação da sociedade civil para determinar prioridades políticas na área de saúde.
Todas as principais democracias do mundo procuram soluções para o problema da baixa capacidade do parlamento de aprovar políticas demandadas pela cidadania. A solução principal é o envolvimento da sociedade civil na determinação de políticas públicas. A justificativa é simples. Ninguém quer acabar com a representação, apenas corrigir as suas distorções temporais em uma sociedade na qual o nível de informação da cidadania aumentou fortemente com a internet e as redes sociais e na qual os cidadãos se posicionam em relação a políticas específicas. Ao introduzir uma participação menos partidária e com menor defesa de interesses privados na política tenta-se reconstituir mais fortemente este laço. Assim, o que o decreto 8243 faz não é mudar o sistema de governo no Brasil por decreto e nem instituir uma república bolivariana. O que ele faz é aprofundar a democracia da mesma maneira que as principais democracias do mundo o fazem, ao conectar mais fortemente sociedade civil e Estado.
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