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Quem politizou a pandemia? | Luiz Marques

Assim como uma gota de veneno compromete um balde inteiro, também a mentira, por menor que seja, estraga toda a nossa vida” – Mahatma Gandhi

– Breve histórico

Jair Bolsonaro foi eleito presidente no pleito em que a soberania popular foi sequestrada pelo Poder Judiciário, com um pé no conluio do ex-juiz Sérgio Moro com o procurador Deltan Dallagnol e, outro, no Tribunal Regional Federal (TRF-4). A cobertura da Rede Globo & satélites estaduais serviu aos propósitos da pantomima que afastou da disputa o candidato então na liderança das intenções de voto. Encarcerado, Lula da Silva foi proibido de manifestar-se no período da campanha eleitoral. Um claro cerceamento ao direito constitucional de liberdade de expressão. Hoje se reconhecem os erros cometidos em vários degraus do Poder Judiciário e do Ministério Público. Mas agora, que lástima! Inês é morta.

Na sequência, o país assistiu o magistrado corrupto, em sentido lato, “o que decompôs o interesse ou compromisso com o bem comum”, elevado à condição de Ministro da Justiça do novo governo. Com o autoritarismo típico da extrema-direita e um programa ultraneoliberal, o governo instalado incentivou a precarização do trabalho ampliando as terceirizações, a retirada de direitos previdenciários, a privatização a preço de banana de grandes empresas públicas, a entrega do verde da bandeira à sanha predatória do desmatamento que abala a cadeia ecológica, a devastação da institucionalidade ao entrar em choque com outros poderes e o descumprimento sistemático de normas civilizacionais pela celebração armamentista.

Esse conjunto de fatores carimbou o “modo bolsonarista de (des)governar”, caracterizado pela sucessão de disparates políticos (quebras de decoro) e diplomáticos (insultos aos próceres da França, China, Rússia). Daí o Brasil tornar-se um pária desprezível no tabuleiro da política internacional. Segundo o ex-antiministro olavista das Relações Exteriores, isso deveria ser “motivo de orgulho” (Cruz credo!). Orgulho era ver Barack Obama atravessar o salão para cumprimentar o popular presidente brasileiro em um encontro do G-20, e exclamar: “I love this guy!

Não causou espécie quando a chanceler Angela Merkel, no ano seguinte, alertou para a situação “dramática” da atuação brasileira em questões ambientais e de direitos humanos (Terra, 26/06/2019). Causou espanto a resposta de Bolsonaro ao abstrair o imenso Jacarezinho em que já se transformara a Pátria Amada: “Temos muito a ensinar a Alemanha” (sic). A réplica faria jus à expertise em perfurações em grande profundidade pela Petrobrás, à ótima logística dos Correios e demais empresas de excelência na mira das alegóricas águias multinacionais se, ao invés de depauperadas, estivessem robustecidas por um projeto político em prol da soberania nacional.

No que concerne à pauta mencionada pela expoente germânica, nada temos a ensinar, senão aprender. E o miliciano-mor ainda teve o desplante de lançar à adolescente Greta Thunberg, eleita Pessoa do Ano pela revista Time, uma desqualificação: “Impressionante a imprensa dar espaço a uma pirralha”. Por ironia e graça, a rebelde ativista ambiental trocou a descrição no Twitter por Pirralha, em português (kkk).

– Negacionismo, genocídio

A síntese do desgoverno esteve no negacionismo em face da propagação da pandemia, que já somou quase 500 mil óbitos pela idiotia presidencial e o viés equivocado de combate ao Coronavírus. A saber, a imunidade de rebanho. Imunidade que pode ser produto da vacinação massiva ou da infecção natural coletiva. O último cenário estimulou a (im)política governamental. É o que explica as sucessivas recusas em adquirir a vacina e as cartas de laboratórios esquecidas nas gavetas, sem resposta por meses. Até culminar no comunicado do ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que, em outubro, anunciou a compra de 46 milhões de doses antivirais para, a seguir, desdizer-se. “Um manda, outro obedece”, justificou com sorriso amarelo, de forma pusilânime. No conteúdo e na forma, um patético general da banda!

Assim, começou a politização da pandemia sob o bolsonarismo. Um, com o negacionismo alto e bom som. Dois, com a adoção de um estratagema sanitarista que, acenado pelos Estados Unidos e o Reino Unido, rápido foi posto no índex. Exceto pelo Brasil, o único país a persistir na marcha em direção ao precipício no concerto do mapa-múndi. Coisa, aliás, que não mereceu um mea culpa pelo primeiro-mandatário, conquanto as evidências sobre o genocídio tenham alastrado-se acima e abaixo da linha do Equador. “La mauvaise politique est une dangereuse gangrène!” (A má política é uma perigosa gangrena!), como dizem os franceses.

Bolsonaro percorreu o caminho da errância sabida de antemão. Sem dar mostras de um pingo de inteligência e capacidade para rever os procedimentos, à luz das estatísticas e das experiências desenvolvidas em outros quadrantes, ousou fazer a travessia da intempérie de olhos fechados para a bússola e as estrelas. Na pele do super-homem nietzscheano, ou melhor, do Superman dos quadrinhos, chegou a invectivar em ocasiões os aflitos tripulantes do barco nativo e, no ápice da soberba, disparar – “Maricas… Vão chorar até quando… Todo mundo um dia morre…

Em uma conhecida passagem da Bíblia, ao enfrentar as ondas do mar bravio: “Perguntou Jesus – Por que vocês estão com medo, homens de pequena fé? Então ele se levantou e repreendeu os ventos e o mar, e fez-se completa bonança” (Mateus 8:26). No relato bíblico deu certo. A diferença é que, lá, estava o verdadeiro Messias. Cá, arvora-se líder o covarde adorador de torturadores de vítimas indefesas, afastado das Forças Armadas por mau comportamento, só levado a sério entre terraplanistas e tíbios caracteres cívicos que refutam a maioridade democrática ao invocar a volta da tutela autoritária de uma ditadura pretoriana sobre a sociedade civil.

O negacionismo buscou desqualificar a CoronaVac, ideologizada sob a designação de “VaChina”. Declarações da besta fera no Palácio do Planalto corroboraram a postura negacionista e abriram o terreno à pretendida imunidade de rebanho: “Não vou me vacinar… Da China? Não oferece segurança… Não vai ser comprada… Vacina obrigatória só no (cachorro) Faísca… Pfizer? Vai virar um jacaré… Leva a mortes, invalidez, anomalias…” (Estado de Minas, 11/03/2021). Esse monte de merda foi dita enquanto inúmeros agonizavam nas Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs) dos hospitais, implorando pelo antivírus para curar-se e regressar ao convívio familiar.

Como se não bastassem os reiterados estrupícios, numa canetada autocrática o ficha um das vivendas milicianas reduziu em 80% o orçamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em todos os níveis. Repetiu a incúria que toca os recursos da pandemia. Victor Hugo, o advogado dos miseráveis, por seu turno, no século 19, ponderava na Assembleia Nacional Francesa: “É justamente quando a crise sufoca a nação que é preciso investir mais em educação – e pesquisa -, não menos”. Ou seja, o projeto nunca foi curar. Foi espalhar o vírus.

– Clima de Post-Truth

A politização aprofundou-se com a demarcação de um campo de competência alternativa às prescrições da ciência e da Organização Mundial da Saúde (OMS), com a propaganda oficiosa de medicamentos (hidroxicloroquina, ivermectina) inócuos e perigosos ao bem-estar dos pacientes. O presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), ao depor na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI do Genocídio), contestou as falácias medicamentosas. Quem não assistiu perorações pregando o tratamento precoce à doença pandêmica? O aparelhado Conselho Federal de Medicina (CFM), alinhado ao obscurantismo bolsonarista, observou impávido a corrupção da verdade sem tugir nem mugir. Subliminarmente, endossou a farsa.

O que Marilena Chaui (Cultura e Democracia, 1997) denominou “discurso competente”, a narrativa que exclui “outras falas” não reconhecidas socialmente, volatizou-se. Jovens continuaram desautorizados a falar de sexo, porque não são sexólogos. Pobres permaneceram interditados de falar da inflação, porque não são economistas. Não obstante, de repente, permitiu-se a qualquer um dissertar sobre a melhor profilaxia para proteger os humanos do vírus invisível. A direita, munida de receituário, apontava a ignorância dos especialistas. A esquerda argumentava pelo reconhecimento da ciência e dos cientistas. Jamais estivemos tão mergulhados na “preponderância das crenças e ideologias sobre a objetividade dos fatos e a consistência das provas”. Circunstância que o Oxford Dictionaries (2016) classificou de Post-Truth (Pós-Verdade). Criou-se a equivalência entre verdade e mentira como se usufruíssem de igual estatuto, em debates tensos com fictícios “dois lados”.

Redes sociais disseminaram mentiras toscas sobre doentes que teriam se curado ao tomar substâncias receitadas por profissionais mequetrefes. O objetivo sempre foi relativizar a competência dos porta-vozes científicos (infectologistas, imunologistas, epidemiologistas) e as instituições de Saúde (como o Sistema Único de Saúde / SUS), símbolos da Modernidade. Não raros, morreram pelas imposturas que remontaram ao curandeirismo da Idade Média. Aquelas foram mortes evitáveis. A teimosia e a imprudência contra o bom senso converteram-nas em inevitáveis, infelizmente.

No lusco-fusco, coube a Bolsonaro o papel de consciência crítica (ops) dos eixos sanitários para preservar vidas: máscara no rosto para tapar boca/nariz, álcool gel nas mãos, distanciamento sócio-corporal. Não tardou que desconstituísse as prédicas não-farmacológicas, dispensando o uso de máscara em cerimônias e promovendo aglomerações no cercadinho. Para arrematar, refugou a vacina que pela idade teria direito. Ministros, achados não se sabe em que desvão nos quartéis, confessaram terem vacinado-se “às escondidas” do chefe. Com tamanha frouxidão, é impossível dirigir pastas no escalão superior. Falta a exemplaridade aos titulares no mando.

O contra-senso não disse presente apenas à negação da gravidade da Covid-19, que revelou ser mais que uma “gripezinha”. Tampouco entregou os pontos ao deparar-se com a inoperância do vetor de ação escolhido, diante das consequências genocidas em curso no território nacional, com uma cachoeira de infortúnios para milhares de afetos subsumidos no trabalho de luto. Sequer estancou-se perante a constatação de que o anticientificismo militante e apaixonado não era um aliado na luta para domesticar o vírus, mas fiel escudeiro da tragédia espraiada, ininterruptamente.

O despautério contagiou também o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, e o prefeito da Capital, Sebastião Melo. Sem a cautela que deveriam apresentar os que detêm cargos no Executivo, os mesmos deixaram de reservar a segunda dose de vacina no processo (sim, é um processo) de vacinação. Na ânsia dos elogios fátuos das manchetes, para se situarem no topo das listas midiáticas sobre as vacinas aplicadas, na comparação entre os estados e os municípios, e na ausência de informações confiáveis que seriam atribuição do Ministério da Saúde, esqueceram de pensar o day after. Resultado: faltaram anticorpos neutralizantes nos postos de atendimento e, nas filas quilométricas da esperançosa cidadania, sobraram vitupérios com a tremenda imprevidência. Bem diz que “a pressa é inimiga da perfeição”.

– Não faças pular o teu cavalo

É criminosa a orientação de vacinar ao máximo com a primeira dose sem viabilizar a segunda, que é o que efetivamente concretiza a proteção evidenciada por estudos clínicos. Quem apregoa que está ‘tudo bem’ em atrasar a segunda dose, ou está mal informado, ou mal intencionado, ou ambos. A eficácia de cada vacina é baseada no intervalo usado no ensaio clínico Fase III. Fora disso, é achômetro, aliás muito usado no Brasil para gerenciar a pandemia… Quer estender para 12 semanas o intervalo entre doses da vacina Pfizer? Estende. Vai funcionar? Não. Ela é 95% eficaz se a segunda dose acontece após três semanas”, afirmou a professora de Imunologia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre / UFCSPA (Zero Hora, 09/05/2021). A citação é longa, porém, elucidativa. O curioso é que o dirigente imprevidente que relutou em comprar as doses, arrisca inutilizá-las.

Leite e Melo, para lembrar as lições clássicas de Max Weber, adotaram a “ética da convicção” (sustentada em valores íntimos, como numa seita), quando suas funções de representação pressupunham a “ética da responsabilidade” (amparada no cálculo das consequências dos atos administrativos para a comunidade). Caíram na tentação do conto do vigário Bolsonaro com falsa esperteza. Politizaram crenças subjetivas:

A) Na pandemia – por afastarem o lockdown, liberarem atividades comerciais além do recomendável na crise sanitária e descentralizarem medidas protetivas, diluindo as obrigações nas municipalidades. Mais, o modelo não prevê gatilhos de segurança com restrições em caso de agravamento abrupto da contaminação ou hospitalização. O Ministério Público Federal (MPF) manifestou “preocupação” com a proposta. A Federação das Associações de Municípios (Famurs), através do presidente da entidade, denunciou a “omissão” do governador na tarefa de centralização da pandemia. Aqui, o curioso é que os gestores que privilegiaram a retomada da economia antes do problema de saúde pública, acirraram a calamidade econômica.

B) Na vacina – por torrarem o estoque da primeira dose sem projetar a segunda. Colocaram em risco vidas, a propedêutica do esquema vacinal e o dinheiro público, se ultrapassado o tempo hábil de validade imunizadora. Mais, sem que os mecanismos de controle tenham racionalizado a distribuição dos imunizantes até o momento. Já a distribuição de hidroxicloroquina está garantida pelo prefeito que, recém-empossado no cargo, apressou-se em pôr o elixir na cesta de remédios de Porto Alegre para tratar… o Coronavírus (UOL, 14/01/2021). Subscreveu o embuste.

Aquerenciados no Sul do Brasil, deveriam ter prestado atenção ao sexto artigo de fé do gaúcho, arrolado com detalhes na pena de João Simões Lopes Neto: “Se tens viajada larga não faças pular o teu cavalo; sai ao tranco até o primeiro suor secar; depois ao trote até o segundo; dá-lhe um alce sem terceiro e terás cavalo para o dia inteiro” (Contos Gauchescos, 2004). Fizeram o tordilho correr logo na largada.

Melo desculpou-se pela barbeiragem. Leite fez cara de paisagem, como ao votar em Bolsonaro em 2018. A acusação, ouvida nas hostes do neofascismo, é de que a instrumentalização política da pandemia e da vacina foi obra sobretudo da esquerda e do leque democrata que não aceitaram a derrota nas eleições, bem como da mídia global et alli que perderam a mamata. “As aparências enganam”. Os delírios bolsominions, idem. Não é difícil descobrir por quê. A verdade não envenena.

  • Luiz Marques é professor universitário, UFRGS

Foto: CEPERS/Sindicato

 

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